:: ‘Encontro Com os Livros’
“FLUXO E REFLUXO” XXIII
“INCENTIVO OFICIAL DAS AUTORIDADES BRITÂNICAS AOS IMIGRANTES “BRASILEIROS”
De acordo com a obra “Fluxo e Refluxo”, de Pierre Verger, os imigrantes de Serra Leoa formavam em Lagos uma classe média de comerciantes e de funcionários subalternos na administração britânica.
A formação que recebiam em seu pais, a adoção da língua inglesa, o protestantismo que exibiam e a sua condição de cidadãos britânicos os tornavam mais próximos dos funcionários e comerciantes ingleses vindos da metrópole do os imigrantes brasileiros, separados dos britânicos pelos seus hábitos do Brasil, pela religião católica e pela própria condição de estrangeiros.
Os “brasileiros” simplesmente eram vistos como parentes pobres ao lado dos habitantes de Serra Leoa. A administração britânica adotava um certo preconceito com relação ao Brasil e aos brasileiros. No entanto, africanos emancipados que voltavam para Lagos eram bem-vindos, e o cônsul Benjamin Campbell procurava estimular os navios da Bahia a irem para Lagos e não para Uidá.
A mesma linha de conduta foi também seguida pelos governadores de Lagos até fins do século XIX, mas eles consideravam “iorubás repatriados” e não “imigrantes brasileiros”.
Em 1871, o governador de Lagos, John Hawley Glover, dizia que a terra estava destinada a ser povoada e cultivada pelos escravos emancipados de volta do Brasil e pelos imigrantes do interior. Em 1872 ele escrevia sobre as constantes chegadas de imigrantes brasileiros. John recomendava que esses brasileiros, para ele semicivilizados, fossem acolhidos por serem bons agricultores.
Em mensagem entre autoridades brasileiras, o governador afirmava que o repatriamento de seus artesãos e agricultores qualificados é particularmente desejável e deveria receber incentivo geral. Em 1887, o inglês parlamentar Cornelius Alfred Moloney foi um dos maiores incentivadores para a ida de brasileiros para Lagos. Na época ele sugeriu uma linha direta de navios a vapor saindo da Bahia para Lagos, ao invés da viagem ser feita por veleiros.
Sobre os “brasileiros”, Cornelius dizia que eram os nascidos na região iorubá que foram capturados e enviados para o Brasil como escravos; ou os seus descendentes; ou, em certos casos, alguns que, tendo sido levados também como escravos para o Brasil de outros pontos da África, fixaram-se em Lagos.
Segundo Cornelius, os brasileiros começaram a ser estabelecer em Lagos por volta de 1847, desde que passou a haver certa segurança, em consequência do incentivo e das garantias dadas aos negros do Brasil por uma visita do chefe tapa, conhecido como Osodi, sob a autoridade de Kosoko, então rei de Lagos.
Em 1871 havia 1237 repatriados do Brasil. Dez anos depois esse número passou para 2.732. A mão-de-obra do Brasil naquela época era constituída sobretudo de ex-escravos e seus descendentes e de negros escravos. Só na Bahia, segundo relatório consular de 1884, existiam 108 mil escravos de todo Império do Brasil, a maioria nas culturas de cacau, café, arroz, índigo, tabaco e algodão. Todos esses produtos podiam ser aclimatados em Lagos.
Foram criadas linhas de navios a vapor da Bahia para Lagos em comum acordo com os governos e companhias particulares, mas não deram bons resultados, sem bem que muitos continuaram a fazer esse caminho de volta através de veleiros. O sr. Conerlius acreditava que o retorno dos trabalhadores africanos do Brasil proporcionaria a criação de novas culturas em Lagos.
Os “brasileiros” e os cubanos formavam um grupo homogêneo e compunham uma sociedade em que as preocupações mundanas não estavam ausentes. A abolição da escravidão, em 1888, foi bastante festejada nas colônias em Lagos, conforme descreviam os jornais locais africanos.
“FLUXO E REFLUXO” XXII
“NO DAOMÉ, DECADÊNCIA PROGRESSIVA DOS DESCENDENTES DOS GRANDES COMERCIANTES BRASILEIROS; LENTA FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE DE PEQUENOS COMERCIANTES E DE ARTESÃOS QUE RETORNARAM DO BRASIL”.
Como vimos em comentários anteriores, a partir de 1835, com a Revolta dos Malês, muitos africanos escravos e libertos fizeram a viagem de retorno para o Golfo do Benin e lá se estabeleceram como comerciantes e artesãos (pedreiros, carpinteiros, marceneiros e outras profissões). Na África, para os nativos e indígenas eles eram chamados de “brasileiros brancos”.
Em “Fluxo e Refluxo”, de Pierre Verger, nas cidades de Uidá, Agoué, Porto Novo e Lagos, os “brasileiros” emancipados que tinham voltado encontravam-se até 1850 diante de um grupo numeroso de brasileiros e portugueses. Viajantes calculavam em duzentos, todos mais ou menos envolvidos no tráfico de escravos e integrados na vida da região.
Alguns eram até mesmo dignitários do reino de Abomé (Daomé), com direito a guarda-sol e uma escolta de músicos, carregadores de redes e servidores armados, como os chefes daomeanos. Eram submissos às leis do país e, quando morriam, todos seus bens passavam para o rei, que transmitia apenas uma parte aos herdeiros.
Pierre Verger relata que quando o Xaxá Francisco Félix de Souza, o todo poderoso, morreu, em 1849, os cargos por ele desempenhados foram divididos entre os três filhos Isidoro, que se tornou Xaxá, Inácio, o cabeça e Antônio que recebeu o título de amigo do rei.
Sobre o Isidoro, o cônsul inglês Beecroft escrevia que este homem está agora vendido ao rei do Daomé, por toda vida e não ousará sair do país. “É um personagem aborrecido, e eu não gostaria de me encontrar em seu caminho”.
Tanto o comandante Forbes como o cônsul ressaltam a forte autoridade que o rei de Daomé exercia sobre os brasileiros e de quanto eles lhes eram submissos. Numa relação entre os ingleses e o rei, afirmavam que o Xaxá parecia contrariado e não sabia exatamente qual era a sua posição.
A partir de 1863, com o fim do tráfico de escravos em Cuba e com a morte de Domingos José Martins (grande traficante), a situação dos “brasileiros” sofreu um eclipse durante uns trinta anos. O comércio de azeite de dendê era praticamente monopolizado pelos comerciantes franceses Regis. Somente os Xaxás (Isidoro tinha morrido em 1858) possuíam algum prestígio.
Quanto ao comércio, o Journal Officiel dava uma dimensão da importância ocupada pelos “brasileiros”. Citava, por exemplo, que em 1882, sete dos 25 negociantes instalados em todo país eram “brasileiros”, e que 78 dos 154 comerciantes também o eram. Quase um terço dos negociantes e metade dos comerciantes.
Em Lagos, segundo o cônsul Benjamin Campbell, existiam 130 famílias emancipadas por seus próprios esforços no Brasil que faziam parte da população desta cidade, isto em 1853. Esses africanos, outrora escravos, trabalharam nas plantações e minas do Brasil. “Eles souberam com sua capacidade e conduta resgatar a própria liberdade e a de suas mulheres e filhos”. Eram todos originários da região iorubá, da província dos egbás.
“FLUXO E REFLUXO” XXI
“FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE BRASILEIRA NO GOLFO DO BENIN NO SÉCULO XIX”
Neste capítulo do seu livro “Fluxo e Refluxo”, Pierre Verger observa que após a Revolta do Malês, em 1835, uma grande leva de negros africanos libertos, por conta próprio (pressão dos senhores patrões) e outros por expulsão das autoridades e da polícia (sublevações e rebeliões) decidiu retornar para suas terras de origem e lá formaram colônias brasileiras nas cidades de Agoué, Uidá, Lagos e Porto Novo, adotando costumes hábitos, religião e cultura.
Verger cita em sua obra que “em discurso sobre reexportação dos negros, Miguel Calmon du Pin e Almeida, deputado da Bahia, declarava que um dos chefes de um país da Alta Guiné, exatamente onde o tráfico de escravos era mais florescente, mostrava-se mais esclarecido do que os outros: Ele não só tinha acolhido muito bem os africanos libertos e expulsos da Bahia, mas também lhes havia concedido terra onde se instalarem; e como existia entre eles um bom número de pedreiros e carpinteiros, parece que construíram uma aldeia e passaram a cultivar a terra”.
LIGADOS AO MODO DE VIDA
Os que voltaram para a África permaneceram ligados ao modo de vida adquiridos no Brasil. Ao saberem da boa acolhida dos emigrantes, muitos africanos da Bahia começaram a organizar, voluntariamente, o seu transporte (um dos líderes foi Joaquim d´Almeida) para a nova colônia no Golfo do Benin. Mais de quatrocentos passaportes foram expedidos pelo governo da província às pessoas e famílias que os requeriam – relatava o deputado.
Miguel du Pin dizia: “Vejo nesse estabelecimento não somente um lugar em que os nossos africanos libertos podem viver sem despesas, mas também um núcleo de população, talvez mesmo um novo Estado, que, participando da nossa língua e da mesma civilização, contribuirá um dia para a extensão de nosso comércio e de nossa indústria nascente”.
O retorno era resultado de duas influências, a espontânea, feita pela lealdade à terra de onde tinham sido arrancados à força, e a outra involuntária, provocada pelas medidas tomadas pela polícia em consequência das revoltas e sublevações dos africanos, escravos e emancipados.
Sobre essa questão, o estudioso Gilberto Freyre destaca que esses africanos vindos do Brasil (grande maioria da Bahia) se tornaram “brasileiros” (abrasileirados) por meio da natureza e da cultura vigorosamente mestiça. Voltaram com costumes, hábitos, modos de vida, abaianados, aportuguesados e até mesmo nos vícios. Levaram o gosto pela farinha da mandioca, da goiabada e até mantiveram devoções como a do Senhor do Bonfim, além de festas, danças e cantos.
Muitos se estabeleceram na região Mahi, ao norte de Abomé, na cidadezinha de Agoué, na fronteira entre Daomé e o Togo. Viajantes estrangeiros descreviam esses negros como de aparência cristã, mas muitos tinham suas próprias religiões (islamismo e dedicação às suas divindades negras). Eles chegaram a construir uma igrejinha em Agoué. Por volta de 1842/43, Joaquim d´Almeida, crioulo brasileiro emancipado, estava prestes a deixar a Bahia. Adquiriu objetos necessários à celebração da missa.
Ele levantou uma capela, em 1845, e foi dedicada ao Senhor Bom Jesus da Redenção, em lembrança a uma capela da Bahia. As origens cristãs de Agoué remontam há mais de trinta anos da nossa chegada definitiva – descrevia o abade Pierre Bouche.
O abade Laffite constatava em sua narrativa, que “foi nesse momento que chegaram muitos negros que reconheci serem escravos libertos do Brasil, por causa de suas roupas de camisões estampados de flores. Os “brasileiros” me conduziram a uma pequena capela que o mais rico deles (Joaquim) tinha mandado construir nos limites de sua propriedade”.
No entanto, Pierre Bouche observava que eles de cristãos só tinham o nome, e aqui retornaram às práticas do paganismo ou da religião muçulmana. Na verdade, havia um sincretismo religioso entre o cristianismo e o fetichismo. Laffite dizia que os africanos “brasileiros” só tinham de cristão o batismo e que continuavam a invocar as divindades negras.
OS GRUPOS
O governador do forte de São João Batista de Ajudá classificava os libertos como “passageiros” (aqueles que foram para o Brasil nos navios negreiros e depois voltaram). Afirmava que esses “passageiros” eram considerados brancos de uma nova espécie em que a cor da pele não interferia em nada para a classificação.
A sociedade brasileira que se formava em algumas cidades do Golfo do Benin, como Agoué, Porto Novo, Uidá e Lagos era composta de comerciantes de escravos vindos de Portugal e do Brasil, de seus descendentes mulatos, de capitães de navios negreiros estabelecidos na África e de africanos libertos, que tinham retornado do Brasil, principalmente da Bahia.
Um outro grupo era constituído de escravos libertos em Serra Leoa, iorubás em sua maioria. Eles eram chamados de akus em Freetown por causa de várias saudações que começavam por oku e salôs ou sarôs, diminutivo de Serra Leoa. Os sarrôs separavam-se dos “brasileiros” por sua conversão ao protestantismo e pela língua crioula, baseada no inglês. Os que vinham do Brasil e Cuba falavam o português ou o espanhol. Os muçulmanos do Brasil formavam outro grupo, mas eram próximos dos hábitos e o modo de vida dos católicos.
“FLUXO E REFLUXO” XX
DO TRÁFICO DE ESCRAVOS AO COMÉRCIO DO AZEITE DE DENDÊ APÓS 1810
Por volta de 1850/51 os ingleses “engrossaram o caldo” com seus potentes cruzadores para impedir de vez o tráfico ilegal de escravos e chegaram a invadir as águas brasileiras. Na África, derrubaram à força os reinos de Lagos e Daomé, no Golfo do Benin. Nessa época estava em ascensão o comércio do azeite de dendê no lugar do tabaco e da cachaça.
Os aprisionamentos de navios negreiros eram levados a julgamento para a colônia de Serra Leoa e lá os libertos não tinham muita opção a não ser irem para as ilhas britânicas (Jamaica, Barbados, Demerara, Trindad) para o trabalho da cana de açúcar como “trabalhadores livres”, com salário reduzido. Pelos tratados, os negros capturados deviam ser fixados nas colônias da nação de origem. Muitos eram empregados na marinha e no exército, sem suas próprias vontades.
De qualquer forma, os ingleses aproveitavam da situação. Essa emigração era confundida pelas potências estrangeiras como tráfico de escravos. Os inglese ofereciam casa e um terreno para cultivar seus vegetais e cada trabalhador recebia meio dólar, meia libra de peixe e uma pequena quantidade de rum. Assim eles reduziam custos se os negros ficassem em Serra Leoa. Além do mais, vendiam fuzis e armas. As outras nações aproveitavam para fazer seus negócios, inclusive de bíblias. O capitão Canot dizia que o tráfico dos negros é a abominação das abominações, mas o ouro não traz o cheiro de onde vem. Os tratados são legais e pagos pontualmente.
Um estudo do Select Commitee apontava que os produtos manufaturados serviam para facilitar o comércio de escravos. Indiretamente, através do Brasil e Cuba, pelas mercadorias da Inglaterra vendidas às pessoas que as utilizavam para trocá-las por escravos. Entretanto, o impedimento do comércio seria um sério prejuízo para o povo da África. Não havia meio de distinguir o que era legal do ilegal. O único meio de lutar contra o tráfico era o bloqueio, segundo as autoridades inglesas.
O homem mais rico da terra, o baiano Francisco Félix de Souza, o Xaxá de Souza, foi o único a resistir na negociação de escravos, ao lado de Joaquim Pereira Marinho, Domingos Martins e José Cerqueira Lima. Ele, o Xaxá, sempre aparece no livro “Fluxo e Refluxo”, do etnólogo e fotógrafo Pierre Verger como maior protagonista da história da escravatura. O navio Brasileiro Relâmpago foi o último a atravessar o Atlântico na prática do tráfico ilegal por volta de 1851.
Mesmo com o abandono dos fortes inglês, francês e português, na cidade de Uidá, o maior porto africano a transportar escravos e outras mercadorias, o Xaxá de Souza continuou lá com seus interesses na Bahia, mesmo com as explosões feitas pelo rei de Daomé, Abandozan.
Apesar do tratado de 1810 com os portugueses que permitia realizar seu “diabólico comércio”, os navios examinados em Porto Novo e Onim (Lagos) eram levados para Serra Leoa e acabavam condenados. Na época havia 45 navios da Bahia fazendo o tráfico entre Palmas e Calabar. Todos partiam para a Costa da Mina e traficavam em Popo, Ajudá (Uidá), Porto Novo, Badagri e Onim.
Mesmo com a proibição, o tráfico continuou florescente no século XIX até por volta de 1851. A Bahia era o porto principal de onde os navios partiam sob as cores brasileiras e estrangeiras para burlar a vigilância inglesa. Colocavam como destino Molembo, mas iam para Lagos. Usavam falsos livros, passaportes e bandeiras diferentes. A bandeira brasileira desapareceu do tráfico pela entrada em vigor, em 13 de março de 1830, do tratado de 1826, mas o comércio permaneceu sob bandeira portuguesa.
Verger relata que em 1835 quatro vasos portugueses e doze espanhóis foram julgados e condenados, quando 4.645 escravos foram libertados. O total desde 1819 é de 37.248 africanos. Após o tratado com a Espanha, em 1835, um grande passo foi dado em direção á abolição. No entanto, no futuro os espanhóis obtiveram documentos portugueses.
Em 1839 houve uma diminuição do tráfico por causa da vigilância dos cruzadores ingleses e pelos incêndios das feitorias em Onim que continham bens de valor. Por volta de 1840, os britânicos começaram também a destruir instalações e depósitos de escravos na costa da África. Os navios presos e condenados eram por vezes recomprados pelos comandantes dos cruzadores ingleses que os transformavam em auxiliares da esquadra ou pelos próprios donos e capitães dos vasos.
O autor da obra também fala das lucrativas negociações com mercadorias encontradas a bordo dos navios negreiros condenados. Eram vendidas em leilão a um preço baixo. Graças a isso, a população negra de Serra Leoa se beneficiava das vendas e os moradores se tornavam mascates e comerciantes ambulantes em países vizinhos. Eles eram bons comerciantes e chegaram a acumular bens. Os akus, por exemplo, eram os judeus da África e fizeram fortunas, retornando para seu país.
O COMÉRCIO DO AZEITE DO DENDÊ
A conversão do tráfico de escravos para o azeite de dendê, do algodão, de peles e outros produtos que vinham se juntar ao comércio estabelecido de ouro, da goma arábica, da pimenta, da cera e do marfim foi, no começo, mais o resultado de iniciativas privadas de alguns comerciantes de Londres e Marselha, do que de uma política deliberada dos governos. Foi criado o Comitê dos Mercadores de Londres.
Do lado francês, armadores de Havre, Bordeaux, Marselha e Nantes enviavam navios para fazerem trocas na costa. Os irmãos Regis Victor e Louis tinham o monopólio e chegaram a fundar feitorias em Uidá, em 1841, o maior centro do tráfico de escravos.
“FLUXO E REFLUXO” XVIII
ACEITAÇÃO DAS CULTURAS BRASILEIRA E AFRICANA E O RETORNO DOS ESCRAVOS À SUA TERRA NATAL.
Em sua pesquisa que resultou no livro “Fluxo e Refluxo”, Pierre Verger mostra duas tendências dos escravos, alforriados, mulatos e crioulos, com foco especial na Bahia. Um grupo preferia manter suas origens, costumes e religião africana e outro procurava se adaptar à cultura brasileira.
Outra questão por ele abordada foi a do retorno dos africanos para sua terra natal, principalmente para o Golfo do Benin (jêje-mahi) e para a região de Lagos, no caso povos das nações nagôs-iorubás, tapas e haussás.
Esse refluxo começou a partir do meado do século XIX com as sublevações e a chegada de colonos brancos que passaram a ocupar o trabalho dos negros. Os senhores pagavam bem mais pelos serviços prestados pelos brancos. Muitos se resignavam com a situação, mas outros se rebelavam.
LEIS DE DEPORTAÇÃO
Existiram até leis brasileira e municipais no sentido de deportar os negros, obrigando a pagar suas despesas. Os patrões abusaram dos escravos e depois resolveram abandoná-los à própria sorte.
Quanto a religião católica que obrigava que os cativos professassem, muitos “trapaceavam” e fingiam seguir o catolicismo, mas misturavam as rezas e os santos com seus rituais de candomblé.
Com receio de levantes e como forma de apaziguar os africanos, o governo até encorajava eles a se encontrarem aos domingos nos batuques organizados por nação de origem, mas isso depois foi proibido.
Para evitar que um mal comum os aproximasse, o governo achou prudente autorizar as distrações aos domingos, que lembrassem suas identidades africanas. Existiam preconceitos e ódios entre etnias africanas advindos das antigas guerras tribais. O resultado das reuniões acabou sendo o de manter o culto aos seus deuses orixás e aos vuduns, divindades dos nagôs e dos fons do Daomé.
No entanto, não demorou muito e o governo começou a impedir suas batucadas. Na Bahia, entre os objetos encontrados pela polícia nas casas africanas, destacavam-se os instrumentos musicais e acessórios destinados às sessões de candomblé.
Roger Batisde assinala que em 1618, quando da visita da inquisição na Bahia, Sebastião Barreto denunciava o costume que tinham os negros de matar animais quando em luto para lavarem-se em seu sangue, dizendo que a alma deixava o corpo para subir ao céu.
Por volta de 1768 foi denunciada a existência de verdadeiras casas de culto africanas, e muitas foram objetos de perseguição judicial em Pernambuco. As danças eram feitas às escondidas pelos negros da Costa da Mina (Golfo do Benin). Em 1785, de acordo com Verger, os cativos angolanos da Bahia pediam permissão para celebrar a Gloriosa Senhora do Rosário, com máscaras, danças e cantos como antigamente.
Os estrangeiros descreviam esses rituais como animalidades e manifestações estúpidas. Na Lavagem do Bonfim, segundo eles, os atos eram de desrespeito e os jornais noticiavam como abusos e hábitos que a civilização condena. Para os periódicos, era uma orgia desordenada e um verdadeiro bacanal dos tempos pagãos. As canções eram consideradas de prostíbulos. Muitos eram presos em suas casas por terem instrumentos dos cultos.
Em 1857 o município baixou uma decisão proibindo os batuques, danças, reuniões de escravos em qualquer lugar, sob pena de oito dias de prisão para cada um dos contraventores. Em 1859, num lugar chamado de Quinta das Beatas, 42 indivíduos foram presos por terem se reunido em batuques, dentre eles um pai de terreiro de seu candomblé (pai de santo).
A DEPORTAÇÃO DOS AFRICANOS
Por volta de 1850, com o fim do tráfico negreiro e a chegada de colonos brancos, surgia uma discriminação entre os crioulos livres e os africanos emancipados. Os brancos eram trabalhadores braçais que não aceitavam trabalhar no meio de pessoas de cor e escravas, conforme relatava o cônsul britânico no Rio de Janeiro.
Pelo recenseamento de 1848 havia no Rio 8449 africanos livres e 5012 crioulos de cor livres contra 110.512 escravos. Eram 142.403 brancos, entre os quais, 37.924 estrangeiros, sendo a grande maioria de portugueses (oito mil colonos brancos).
Os negros começaram a perder seus serviços e os ganhos eram menores que os dos brancos. Foi aí que os africanos descontentes decidiram retornar aos seus locais de origem. Um africano pediu ao cônsul para achar um navio britânico para transportar 500 pessoas. Eles recusavam ir para outro lugar que não fosse a África.
Na Bahia, o governo, mediante um decreto, encorajava o trabalho de mão de obra nacional e proibia o uso de barqueiro africano fazer seu serviço no cais e nas entradas públicas da cidade. O trabalho era somente para brasileiros e crioulos livres. Por causa disso, 750 africanos emancipados foram expulsos de seu emprego.
O Jornal da Bahia noticiava em primeiro de novembro de 1861 que aquele dia era aniversário da admissão dos homens livres para os serviços desses barcos, excluídos os africanos e os escravos. Em maio de 1853 chegou a ocorrer na Bahia um alarme de insurreição por causa da exclusão dos africanos no mercado de trabalho.
Dizia o cônsul John Morgan que as autoridades tudo faziam para se desvencilharem dos negros livres com o argumento de que a permanência deles na província era um perigo. O cônsul citou que o chefe de polícia, com base na lei brasileira, ordenou uma escuna holandesa que ficasse pronta para partir para a colônia de Elmina, tentando forçar esse pavilhão a transportar negros que estavam presos no Aljube para a costa da África.
O chefe de polícia persistia em violar leis diferentes entre as nações. “Esses africanos são agora arrancados de suas mulheres e de seus filhos com a mesma barbárie que aquela dos infames ladrões de homens que os haviam arrancado, antigamente, de seu país natal” – escrevia o cônsul. Depois de muita conversação, a escuna holandesa foi liberada.
“FLUXO E REFLUXO” XVI
“CONDIÇÕES DE VIDA DOS ESCRAVOS NA BAHIA NO SÉCULO XIX”
O livro “Fluxo e Refluxo”, de Pierre Verger, traz uma série de anúncios classificados do Jornal da Bahia onde os proprietários de escravos notificavam as fugas de seus cativos, a maioria de negros nagôs, citando as características e traços físicos da pessoa, trajes, idades, cicatrizes no corpo (a maioria nos rostos, peitos, pés e braços como marcas das torturas), suas atividades laborais, nomes e a quantia da recompensa a ser dada a quem encontrasse o fugido da sua casa, comércio ou fazenda.
Foi a época maior dos caçadores de recompensa. No anúncio, o dono advertia processar quem do seu escravo se apropriasse ou dessa guarida. Um fato curioso chama a atenção: O surgimento de crianças e jovens pardos de pele branca como escravos. Numa atitude hipócrita religiosa, os chefes de polícia, traficantes e até o presidente da província faziam campanhas filantrópicas para arrecadar dinheiro para alforriar o cativo por causa da cor da sua pele ser bem mais clara.
Os cativos que viviam no campo tinham melhores condições de vida e alimentação do que aqueles que trabalhavam nas indústrias e no comércio nas cidades. Mesmo assim, na zona rural tinham os patrões de menor recurso e sovinas que regravam a comida e maltratavam mais ainda seus escravos que costumavam fugir para fazendas mais ricas.
A obra “Fluxo e Refluxo”, de Pierre Verger, etnólogo e fotógrafo, destaca as diversas áreas de trabalho dos escravos, tais como os domésticos de casa (eram mais acolhidos), os de aluguel, de ganho de rua (tabuleiros de frutas e quitutes), os carregadores (gozavam de certa liberdade), os vendedores ambulantes que comercializavam mercadorias para seus senhores, os carpinteiros, músicos, barbeiros, carpinas, ferreiros, entre outras atividades.
Em Salvador, como a cidade era alta e baixa, os escravos executavam a função de cavalos e transportavam de um lugar para o outro os mais pesados produtos, usando os palanquins (redes cobertas por intermédio de uma longa vara). Depois passaram a usar as cadeiras.
Verger cita Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e observadores viajantes que narravam as condições dos escravos na Bahia durante o século XIX. Sobre Nina Rodrigues, comenta que tinha uma tendência a mostrar o espírito de segregação e de reserva manifestado pelos escravos e alforriados: eles “ficavam segregados da população geral, no seio da qual viviam e trabalhavam, para fechar e limitar seu círculo aos pequenos grupos particulares das diversas nações africanas”. Conservavam sua língua, suas tradições e crenças.
Para os trabalhadores dos campos e das minas, segundo Verger, comprar sua liberdade era praticamente impossível. Os domésticos podiam esperar sua carta de alforria por ocasião da morte de seu senhor, em recompensa aos bons e leais serviços prestados. Os negros de ganho e vendedores ambulantes, ativos e hábeis, que tinham o direito de guardar para si uma parte de suas receitas, compravam mais fácil a liberdade. Havia uma distinção entre africanos e crioulos, negros ou mulatos.
Para Nina Rodrigues, os crioulos livres ou escravos achavam que os africanos ficavam sempre marcados por suas origens pagãs, e estes preferem a convivência dos patrícios, pois sabem que, se os temem pela reputação de feiticeiros, não os estima a população crioula. Os africanos importados pelo tráfico contra sua vontade não se integravam na vida do país e não adotavam o Brasil como pátria. Eles ficavam segregados da população em geral e se juntavam aos seus grupos.
O governo brasileiro tinha se comprometido com os ingleses a repatriar os negros de contrabando encontrados nos navios negreiros apreendidos, mas o número era tão grande que as despesas eram superiores aos recursos do Tesouro Nacional.
Muitos viajantes escreveram sobre a situação dos escravos no Brasil, como Henrry Koster, em 1809. Em sua visão, os escravos no Brasil gozavam de maiores vantagens que seus irmãos das colônias britânicas. Os muitos dias de santos da religião católica (35 dias e mais os domingos) davam aos escravos dias de repouso ou tempo para trabalharem para eles próprios.
Entre as fontes de informação figuravam os classificados e notícias dos jornais da época, nas quais Gilberto Freyre muito utilizou para elaborar suas pesquisas. Os inquéritos judiciais, como as revoltas e sublevações, continham boas informações para os pesquisadores e historiadores.
Quanto os bens móveis e gado, Verger ressalta que nos inventários das sucessões dos séculos XVII e XIX, os escravos eram uma parte prioritária do capital que figuravam nas listas antes mesmo do rebanho, dos instrumentos agrícolas e mobiliários da casa. Existiam casos de escravos que possuíam seus próprios escravos.
Os cativos das cidades (vendedores) eram obrigados a levar todos os dias uma certa quantia de seus ganhos para seus senhores. São considerados como um capital de ação que deve render lucros para seus patrões. Depois de velhos, geralmente eram abandonados.
Sobre as condições de vida entre os do campo e da cidade, Freyre descreve que os da casa grande eram mais nutridos com feijão e toucinhos, milho ou angu, pirão de mandioca, inhame e arroz. Eram alimentos fundamentais para os escravos. Usavam também o quiabo, a taioba e outras folhas de fácil e barato cultivo, desprezados pelos senhores.
De acordo com Gilberto Freyre, os escravos das áreas mais patriarcais tiveram um tratamento, um regime alimentar e um gênero de vida superiores aos dos escravos em áreas já industriais ou comerciais, embora ainda de escravidão, distantes da relação com seu senhor, reduzidos a máquina de fazer dinheiro, principalmente no ciclo do café no Brasil.
De um modo geral, muitos escravos fugiam das casas de seus senhores na cidade para voltar para seus antigos donos no campo, seja porque não se acostumavam com a vida urbana, ou por fidelidade ao ex-senhor, bem como pela lembrança da vida “folgada” na zona rural, onde podiam dispor de pequenos terrenos para cultivar suas hortas.
“FLUXO E REFLUXO” XVII
PRINCIPAIS COMERCIANTES DA BAHIA QUE TOMARAM PARTE NO TRÁFICO CLANDESTINO DE ESCRAVOS
No início do século XIX quando, através de tratados, convenções e acordos com a Inglaterra o tráfico de cativos foi proibido, os maiores centros comercias eram a Bahia e o Rio de Janeiro.
No livro “Fluxo e Refluxo”, Pierre Verger abre um capítulo onde aponta os maiores traficantes ilegais, com destaque para Francisco Félix de Souza, o Xaxá de Uidá, como era mais conhecido. Naquela época, segundo Verger, esse comerciante era considerado o homem mais rico da terra.
Esses traficantes eram vistos como úteis e desejáveis para o bem maior da economia nacional. “Eles tinham, consequentemente, “boa consciência”. A correspondência oficial brasileira fala “de um comércio triste”, mas o único capaz de fornecer os braços indispensáveis para as minas e para as culturas do Brasil”.
O autor assinala em sua obra que os navios apresados pelos ingleses geralmente iam para a Serra Leoa onde se dava o julgamento dos traficantes. Libertados, esses negros terminavam seguindo para as Antilhas britânicas como trabalhadores livres. No entanto, de acordo com historiadores, eles não eram consultados para onde queriam ir.
Comerciantes baianos acumularam fortunas, tanto com o tráfico de escravos quanto em outras operações comerciais, como José de Cerqueira Lima, Antônio Pedroso de Albuquerque, José e Joaquim Alves da Cruz Rios e Joaquim Pereira Marinho. Este era outro rico que chegou a ser provedor da Santa Casa da Misericórdia. Até hoje tem uma estátua dele em frente do Hospital Santa Isabel.
Muitos passavam uma parte do seu tempo na Bahia e outra no Golfo do Benin, como André Pinto da Silveira e Manuel Joaquim D´Almeida. Existiam ainda aqueles que viviam completamente instalados em Benin, os casos de Francisco Félix de Souza, Domingos José Martins, Marcos Borges Ferras, Joaquim D´Almeida e José Francisco dos Santos (o Alfaiate).
Muitos capitães de navios negreiros se tornaram proprietários de vasos comerciantes, como Inocêncio Marques de Santa Anna, antigo intérprete da embaixada do rei do Daomé, em 1805. Verger cita também João Cardosos dos Santos que, de 1825 a 1827, chegou a ser capitão do Henriqueta pertencente a José de Cerqueira Lima.
Mais tarde, este capitão passou a ser dono da goleta Umbelina. Em 1829 ele tirou um passaporte que lhe permitia trazer de Cabinda 358 escravos, só que ia para outro local proibido acima da linha do Equador. Em Lagos, por exemplo, ele embarcou 377 cativos. Sua embarcação foi capturada em 1830 e levada para Serra Leoa. Nessa travessia morreram 214 negros.
O grande nome do comerciante daquela época de 1824, conforme relata o governador Francisco Marques de Góes Calmon era José Cerqueira Lima, com um enorme tráfico de importação de escravos da costa ocidental da África, proprietário do pequeno palácio no Corredor da Vitória, que conhecemos durante muitos anos como palácio presidencial dos presidentes da província e, em seguida, dos governadores, no momento da República.
Aquele imóvel comunicava com a praia por um longo subterrâneo que servia de passagem aos comboios de escravos. Ele mandou abrir um subterrâneo, a fim de poder fazer vir com segurança sua mercadoria para terra desde o mar, tendo em vista que o tráfico não era mais permitido. Esses e outros eram riquíssimos que possuíam mansões luxuosas, móveis da Europa e pratarias em ouro.
“FLUXO E REFLUXO” XV
OS DETALHES SOBRE O TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NA BAHIA.
Eram muitas as trapaças dos navegantes baianos para burlar as vigilâncias inglesas contra o tráfico ilegal de escravos da África na Costa do Benin, principalmente ao norte acima da linha do Equador. Todas irregularidades e transgressões às leis, tratados e convenções estão documentadas na obra “Fluxo e Refluxo”, do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger.
Veja o que o autor descreve, através de cartas do cônsul Poter, sobre o assunto: “Uma declaração feita em 10 de abril de 1834 (o tráfico tornou-se ilegal no início do século XIX) por um marinheiro do navio Musca dá detalhes a respeito do desembarque na Bahia de 228 escravos mandados pelo Xaxá de Souza (Francisco Félix de Souza).
O marinheiro desceu para terra com o segundo capitão para tomar disposições com o consignatário na região da “Torre” (Casa Garcia D´Ávila). Então navegaram quatro ou cinco dias ao largo da “Torre”, e uma grande garoupeira veio pegar os escravos a bordo e trouxe uma carga de pedras como lastro”.
Em outra passagem, conta que um cruzador britânico vindo do Rio de Janeiro, em setembro de 1838, trazia uma declaração sobre o caso do brigue americano Dido que chegou a Salvador com 575 escravos e estava à vista das dunas de areia das praias da Bahia.
Como viu uma corveta inglesa, o Dido içou as cores americanas. Na mesma noite, 570 cativos (cinco morreram na travessia) foram entregues no povoado perto da ponta de Itapuã. O navio foi limpo e no dia seguinte apareceu na Bahia com a bandeira dos Estados Unidos.
Em agosto de 1841, o cônsul Poter escrevia para Hamilton Hamilton, no Rio de Janeiro, a respeito do brigue Picão que havia desembarcado 480 escravos na costa oeste da ilha de Itaparica. Após o sucesso da empreitada, indivíduos organizaram uma companhia a fim de promover o tráfico. Compraram cinco vasos (navios) que estão prontos para partir para a Costa da África. O cônsul pedia reforço de cruzadores britânicos para apertar a fiscalização.
Em 1842, o cônsul confirmava que os mercadores de escravos, para evitar as intervenções no livre usos das embarcações, declaravam que retornavam de portos afastados da costa da África, o que tornava difícil a obtenção de informações corretas com relação ao movimento dos navios.
No ano de maio 1846, o cônsul assinalava a carga sem precedentes de 1350 cativos (perdeu 40 na viagem) que o Três Amigos tinha desembarcado. Esse navio figurava na lista de partida de três de julho para os Açores, de onde voltou em setembro em arribada depois de 71 dias. Não havia dúvidas que tinha ido fazer seu tráfico nesse intervalo e deixado uma carga em um dos pontos de desembarque nos arredores da cidade da Bahia.
No mesmo ano, o Andorinha, pertencente a Joaquim Pereira Marinho, um dos maiores traficantes da Bahia (tem uma estátua dele em frente do Hospital Santa Isabel), começava uma série de viagens à costa da África, anunciando sua primeira partida em outubro de 1846 para as Canárias. O cônsul dizia que a importação era feita com a maior atividade, citando que três mil foram desembarcados na Bahia durante o último trimestre de 1846.
Os comerciantes e as autoridades afirmavam que o tráfico cessaria com a saída dos cruzadores britânicos na fiscalização. O lorde Palmerston argumentava que isso não passava de uma falácia. Segundo relatos de 1847, a importação aumentou ainda mais. Foram 2233 escravos no terceiro trimestre, contra 1500 para o segundo e 1180 para o primeiro.
Fazia-se o tráfico sem esconder. Na ilha de Itaparica foram construídos locais de desembarques normais. Em plena noite eram utilizadas luzes para guiar os vasos. Dali os cativos eram levados para depósitos da cidade da Bahia, onde são vendidos sem medo de intervenção das autoridades, apontavam os agentes do cônsul Poter. “Tenho a satisfação de declarar que sete vasos pertencentes a este porto foram capturados pelos cruzadores ingleses. Apesar das perdas, muitos estão equipados para irem à costa africana”. Foram desembarcados 3.500 escravos nos arredores da cidade durante o quarto trimestre de 1847, a maior importação que houve durante os últimos oito anos.
Os vasos chegavam frequentemente dos Estados Unidos e do Mediterrâneo comprados por essas companhias e enviados à África sob a bandeira das nações às quais pertencem originalmente. A bandeira do Brasil é substituída no momento em que recebem suas cargas a bordo.
Tem ainda o caso do brigue George, que partiu para África, em agosto de 1847, e voltou com o nome de Tentativa com cores brasileiras, com uma carga de 726 cativos em um miserável estado de fome (11 morreram por falta de água e provisões). O iate Andorinha, de Joaquim Pereira Marinho fez oito viagens com sucesso. Desembarcou 3392 escravos no porto da Bahia. O lucro era considerável. Em agosto de 49 foi capturado. Fez dez viagens, desembarcou 3.800, ganhando 46 mil libras no curto espaço de 32 meses.
Em maio de 1850, “o tráfico de escravos continua na Bahia com o maior sucesso. Durante o último mês, foram desembarcados mais de 1100, na maioria nagôs, haussás, tapas e jejes. A maior parte provém dos portos de Onim e Ajudá” – relatava o cônsul.
“FLUXO E REFLUXO” XIV
AS BANDEIRAS E OS PASSAPORTES DUPLOS NO TRÁFICO NEGREIRO ILEGAL
Os traficantes negreiros baianos, o mais famoso era Francisco Xavier de Souza, o Xaxá de Uidá, usavam de vários artifícios para burlar a vigilância dos cruzadores ingleses contra o tráfico, tanto na costa brasileira como africana e no mar. Os embarques e desembarques eram feitos em locais distantes e ermos dos portos tradicionais.
Entre as trapaças se destacavam as bandeiras estrangeiras em navios do Brasil, como a portuguesa, espanhola, alemã, francesa, norte-americana, escocesa e as de outros países (a exceção era a Suiça)l, bem como passaportes duplos para enganar a proibição do tráfico selada nos acordos e tratados com Inglaterra, Portugal e o Brasil.
Veja o que escreveu o cônsul geral da Inglaterra no Rio de Janeiro, Chamberlain, para uma autoridade brasileira, em outubro de 1824: “Recebi instruções para fazer saber à Vossa Excelência que os comissários de Sua Majestade em Serra Leoa fazem frequentemente representações para seu governo a respeito dos perniciosos efeitos da prática das autoridades brasileiras, que dão aos vasos (navios) com destino a Molembo para o comércio de escravos a permissão de fazer escala nas ilhas de São Tomé e Príncipe.
Com tal permissão, esses vasos têm uma desculpa para serem vistos perto da Costa dos Escravos, ao norte do equador, e em geral se aproveitam da ocasião para obter carregamento de negros naqueles lugares onde, pelas leis de todas nações civilizadas, o tráfico de escravos foi proibido. É do meu dever acrescentar que o governo de Sua Majestade espera que o governo brasileiro, agora está ciente dos males que resultam da forma pela qual os passaportes são redigidos, não perca mais tempo para fazê-los mudar”.
Essa e outras observações sobre o tráfico ilegal no século XIX estão no livro “Fluxo e Refluxo”, do etnólogo e fotógrafo Pierre Verger, ao descrever que nessa mesma época um cruzador inglês, nos golfos do Benin e Biafra, apresou três vasos brasileiros de nomes Minerva, Cerqueira e Creola, além de um brigue brasileiro Bom Caminho.
Haviam outorgas de passaportes para Molembo, com faculdade de fazer escala nas ilhas de São Tomé e Príncipe. Os ingleses argumentavam que se alguns vasos tocam aquela linha ao norte do Equador não são para abastecimento ou reparos de avarias e sim para pegar escravos em regiões proibidas.
Pierre Verger cita diversos exemplos de navios que pegavam rotas diferentes para driblar a vigilância no mar, quer com bandeiras estrangeiras ou passaportes duplos. Por volta de 1827, quatorze vasos foram apresados e condenados, fato esse que provocou reações na opinião pública da Bahia.
Os negociantes baianos forneciam dois passaportes, sendo que um levava o nome verdadeiro para ir fazer o tráfico lícito de escravos ao sul do Equador e outro para realizar o comércio de produtos africanos na Costa da Mina, ao norte do Equador. A segunda embarcação ficava na Bahia.
A total abolição do tráfico no Brasil foi decretada em 13 de março de 1830 após o tratado de 1826, mas os traficantes continuavam usando o sistema de dois passaportes. Em suas investigações, os agentes ingleses constatavam essa ilegalidade e advertia as autoridades brasileiras.
Outra saída ilegal era traficar escravos com o pretexto de serem colonos no Brasil, bem como aprendizes. Os comerciantes faziam os cativos entrarem no país com contratos para servir os importadores e seus agentes durante um certo número de anos em troca de uma determinada soma em dinheiro, para depois comprarem suas liberdades.
Também aconteceu, em 1835, a organização de uma pretensa colônia de negros africanos libertos na Banda Oriental de Montevidéu, com a única intenção de reexportá-los para o Brasil. Em 1841 chegaram 24 negros na Bahia vindos da ilha de São Tomé, munidos de passaportes daquele governo, com o título de colonos.
“FLUXO E REFLUXO XIII
O PERÍODO MAIS CRÍTICO DO TRÁFICO NEGREIRO
No livro “Fluxo e Refluxo”, do etnólogo e fotógrafo Pierre Verger, de mais de 900 páginas, ele faz um trabalho detalhado e acadêmico com cartas e documentos da época, desde o século XVI, sobre o tráfico negreiro, especificamente do Golfo do Benin (Reino de Daomé) para a Bahia.
No início do século XIX, por volta de 1807/08, quando a Inglaterra decretou a abolição da escravatura, esse tráfico entrou em seu período mais crítico, justamente por ter se tornado ilegal através dos acordos e convenções estabelecidos entre os ingleses e Portugal e depois com o Brasil independente.
Como esses tratados não eram obedecidos pelos governos e comerciantes de escravos, os britânicos passaram a usar a força naval para aprisionar navios que continuavam a embarcar ilegalmente cativos para o Brasil, especialmente para os centros da Bahia e do Rio de Janeiro.
Por pressão da Inglaterra, após Brasil independente, o Governo Imperial criou várias leis, como a de 1831 que ficou conhecida para “inglês ver”, porque os traficantes faziam suas trapaças, como desvios de rotas, embarques e desembarques em outros locais fora dos portos tradicionais e uso de bandeiras estrangeiras, para manter o tráfico ilícito.
Nas trocas de cartas com as autoridades do Império (também faziam seus conluios com os senhores patrões e traficantes), os cônsules ingleses se irritavam com os brasileiros até que por volta do final dos anos 40 a Inglaterra começou a apertar o cerco com cruzadores que aprisionaram dezenas de navios que estavam com cargas irregulares.
Nesse interim, houve um acordo onde determinava que os traficantes só podiam transportar escravos abaixo da linha do Equador, ou seja, eram proibidos fazer esse tipo de negócio no Porto de Uidá ou Ajudá, no Golfo do Benin. Mesmo assim o comércio ilegal não parou de ser feito.
Chegou ao ponto que os navios ingleses invadiram as águas brasileiras para impedir o tráfico e até ameaçou bombardear o Porto do Rio de Janeiro. O estopim de tudo ocorreu no Porto de Paranaguá quando o forte daquele local reagiu atirando contra um cruzador inglês matando um marujo.
Os comerciantes colocavam o povo contra os ingleses e estes tentavam comover a população de que aquele comércio era vergonhoso e desumano. Como o poderio britânico era de longe maior que o do Brasil, o Império apressou uma lei mais dura em 1950 que ficou conhecida como Lei Eusébio de Queirós. Somente em 1951 esse tráfico ilegal cessou, mas alguns ainda se atreviam a colocar navios para realizar esse comércio.