UM DIÁLOGO ENTRE UM ANTIGO PAPA E ZARATUSTRA SOBRE DEUS E SEU FILHO, NO LIVRO “ASSIM FALAVA ZARATUSTRA”, DE NIETZSCHE

No capítulo “Fora de Serviço”, Zaratustra, personagem do livro de Nietzsche, se encontra, em sua caminhada, com um homem alto e escuro, na verdade o último Papa, um compungido, difamador do mundo, segundo sua avaliação.

Ele praguejava e, então, se dirigiu a Zaratustra que tentou se desviar dele. No entanto ele foi ao seu encontro, dizendo que “isto aqui é um mundo estranho e longínquo. Ouvi rugido de feras. Quem poderia me acolher já não existe.  Procuro um santo, um ermitão, único que ainda não ouvira dizer o que toda gente hoje sabe”.

–  “Que é que toda gente sabe hoje?” – perguntou Zaratustra. Talvez já não esteja vivo o Deus antigo, o Deus em quem antes toda gente acreditava.

O velho Papa respondeu ter servido a este Deus antigo até sua última hora. “Agora, porém, estou fora de serviço. Encontro-me sem amo e, apesar disso, não sou livre. Por isso só tenho alegrias com minhas recordações”.

Logo depois afirmou ter subido até a montanha para celebrar uma festa, pois “sou o último Papa!” , mas morreu o mais piedoso dos homens, o santo do bosque que louvava Deus. Como não encontrou na cabana, o homem ressaltou ter visto dois lobos que uivavam por causa da sua morte.

– Então meu coração decidiu procurar outro, o mais piedoso de todos os que não acreditam em Deus, Zaratustra, que pegou em sua mão e com olhar fixo disse: “Olha reverendo, que bela e longa mão que sempre deu a benção”.

-Eu sou Zaratustra, o ímpio que diz : “Quem há mais ímpio do que eu, para me alegrar com seus ensinamentos?” O Papa afirmou que agora o mais ímpio era ele.

Então Zaratustra indagou se o Papa sabia como ele morreu. “É certo o que se diz, que o asfixiou a compaixão? Ou ver o homem suspenso na cruz e não poder suportar que o amor pelos homens viesse a ser seu inferno e afinal sua morte?”

O antigo Papa não respondeu. – Deixa-o ir, já partiu – acrescentou Zaratustra. “É certamente em tua honra que nada de mal se deva dizer a respeito desse morto, mas tu sabes que ele seguia caminhos singulares”.

O Papa foi um bom servidor ao longo de seus anos e enfatizou que era um Deus oculto, cheio de mistérios, “Na verdade, teve um filho por estranhos caminhos oblíquos. Às portas de sua fé se encontra o adultério”. O velho Papa desatou a conversar:

– Aquele que o louva como Deus do amor, não forma juízo bastante elevado do amor em si. Esse Deus não queria ser juiz também? Mas amar é amar acima do castigo e da recompensa.

– Quando moço, esse Deus do oriente era ríspido e estava sedento de vingança. Criou um inferno para alegria de seus prediletos.

– Por fim, fez-se velho e meigo, terno e compassivo, assemelhando-se mais a um avô do que a um pai e até, mais a uma avó decrépita.

– Lá estava ele sentado, tristonho, ao lado do lume, preocupado com a fraqueza das pernas, cansado do mundo, cansado de querer, e um dia acabou por se afogar em sua excessiva compaixão.

Zaratustra interrompeu o Papa perguntando se tinha visto tudo que ele dizia com seus próprios olhos. “Pode muito bem ter sido assim. Assim e também de outra maneira. Quando os deuses morrem, é sempre de várias espécies de mortes”.

Desta ou de outra maneira já não existe. Era contrário ao gosto dos meus olhos e de meus ouvidos, isso é o pior que tenho a dizer dele – replicou o Papa.

Então, Zaratustra emendou que “gostava de tudo que tem o olhar claro e a fala franca. Ele, porém, bem o sabes, antigo sacerdote, tinha qualquer coisa de tua raça, dos sacerdotes: Era ambíguo”.

– Também era confuso. Quantas coisas não nos lançou no rosto, esse colérico, por falta de compreensão. Mas por que ele não falava mais claro?

– E se a culpa era de nossos ouvidos, por que nos deu ouvidos que o ouvissem tão mal? Se nos nossos ouvidos havia lama, quem a pôs lá? … Basta de um deus desses! É melhor não ter nenhum, é melhor cada um criar os destinos a seu capricho, é melhor ser doido, é melhor sermos nós mesmos deuses”.

O Papa ficou espantado e falou a Zaratustra que, com sua incredulidade, era mais piedoso do que pensava. “Foi algum deus que, convertendo-te fez de ti um sem-deus”. Disse ainda que sua excessiva lealdade iria conduzí-lo mais além do bem e do mal.

– Porque esse Deus antigo já não está vivo. Está morto e bem morto” – assim falou Zaratustra, encerrando sua conversa com o antigo Papa.