:: ‘Encontro Com os Livros’
A POLÊMICA LEI ÁUREA
Art. 1º – É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.
Art. 2º – Revogam-se as disposições em contrário.
“Assim era o texto da lei número 3.353, de 13 de maio de 188, mais conhecida como Lei Áurea, talvez a mais importante de toda história do Brasil”, conforme descreve o jornalista e escritor Laurentino Gomes no seu terceiro volume de “Escravidão”.
O projeto de lei, tão sucinto, foi apresentado à Câmara dos Deputados em três de maio, e foi cercado de grandes polêmicas até sua aprovação final no dia treze e sancionada pela princesa Isabel naquele ano.
Os proprietários de terras, senhores coronéis e a oligarquia ficaram enfurecidos, e não perdoaram o império, quando deram o troco ao apoiar, no ano seguinte, a derrubada do imperador, com a proclamação da República.
Segundo o advogado e historiador Antônio Evaristo de Moraes, durante a votação a Câmara permaneceu cercada, como em estado de sítio. Pelas pesquisas de Laurentino, em 1888, restavam ainda cerca de 750 mil homens e mulheres escravizados no império brasileiro.
Nos três séculos e meio, o Brasil tinha sido o maior território escravista do hemisfério ocidental. Era o mais avesso a qualquer proposta de mudança. Os primeiros africanos escravizados chegaram ao Brasil por volta de 1538. Nos 350 anos seguintes, o total chegaria a quase cinco milhões.
Em três de maio, coube à princesa abrir os trabalhos parlamentares, mas, em sua fala, em momento algum falou o termo escravidão. O tom foi de elogio aos fazendeiros, e citou apenas que o país precisava extinguir o elemento servil. O seu pai, D. Pedro II se encontrava na Europa, e o projeto desencadeou a primeira grande campanha popular de rua na história do Brasil.
Logo nos debates acalorados, os latifundiários do café, naquela época, exigiram que fossem indenizados em 20 milhões de libras esterlinas, o mesmo que foi pedido e aceito pela aristocracia rural e industrial da Inglaterra, em 1834.
A proposta só veio chegar à Câmara no dia oito, numa terça-feira, pelas mãos do ministro da Agricultura, deputado Rodrigo Augusto da Silva. No mesmo dia foi discutida e aprovada por uma comissão composta pelo deputado pernambucano Joaquim Nabuco.
Colocado em votação no dia 10, o projeto recebeu os votos favoráveis de 83 deputados. Nove foram contra e outros 33 preferiram ficar em casa para não se expor. No dia 11, a lei foi remetida ao Senado. A Câmara alta era o templo da elite escravocrata brasileira – como assinalou o autor de “Escravidão”.
A votação final no Senado se deu numa manhã de treze de maio. Foram 46 votos favoráveis, seis contrários e oito ausentes. A aprovação era tão dada como certa que, no mesmo dia, os jornais do Rio de Janeiro (entre seis a cinco) abriram suas manchetes convocando a população a ir às ruas para as comemorações que duraram uma semana.
Para sancionar a lei, os jornais, logo eles que vendiam anúncios de venda, aluguel e compra de escravos, fizeram uma campanha para doar uma caneta cravejada de ouro, esmeralda e diamantes para a princesa Isabel, cuja peça encontra-se exposta no Museu de Petrópolis.
Outro fato irônico nisso tudo veio da Igreja Católica, através de suas ordens religiosas. A instituição, que tanto explorou a escravidão, inclusive fazendo parte do tráfico negreiro, no final apoiou a ideia da abolição e esteve ao lado dos grandes abolicionistas, como André Rebouças, Joaquim Nabuco, Luiz Gama e José do Patrocínio.
A IGREJA FOI CONIVENTE E ESCRAVISTA
De um modo geral, os jesuítas, os beneditinos e outras ordens religiosas sempre foram escravistas e participaram do tráfico negreiro, mas algumas vozes se levantaram contra. Na época, todos tinham escravos, do rico ao pobre e até negros forros libertos, como se fosse uma coisa comum.
Da parte da Igreja Católica, um que se destacou contrário a esse sistema foi o frei José de Bolhona, missionário capuchinho italiano residente na Bahia que, segundo carta de 1794 ao governador da capitania dom Fernando José de Portugal, como relata o jornalista escritor Laurentino Gomes, em sua segunda trilogia “Escravidão”, tentou persuadir seus fiéis de que “a escravidão era ilegítima e contrária à religião”.
A pregação do missionário inquietava as consciências dos habitantes da cidade de Salvador. Diante disso, Bolonha foi proibido de ministrar a confissão e logo despachado para Lisboa. Na Inglaterra, os ventos libertários já sopravam fortes vindos da parte de uma corrente protestante, com o empurrão da Revolução Industrial.
NAUFRÁGIO TRÁGICO
No final da segunda trilogia de “Escravidão”, Laurentino narra um naufrágio trágico que abalou o mundo daquela época. Esse fato aconteceu em dezembro de 1794 com o navio português “O São José Paquete d´África”, capitaneado por Manuel João Pereira.
Essa embarcação saiu de Lisboa em abril e, depois de navegar por mais de 12 mil quilômetros, ancorou em Moçambique, onde foram embarcados cerca de quinhentos negros com destino ao Maranhão, produtor de algodão, arroz e cana-de-açúcar.
Na noite de 27 de dezembro, depois de atravessar o Cabo da Boa Esperança (Cabo das Tormentas), foi pego por forte tempestade e seu casco espatifou-se num banco de pedras. Os alarmes soaram. Socorridos por moradores, os tripulantes e o capitão sobreviveram.
Como era esperado, o desastre sobrou para os escravos aprisionados no porão, onde 212 morreram afogados. Os demais foram resgatados e arrematados pelo melhor preço em leilão nos dias seguintes na Cidade do Cabo. A nau ficou sepultada até meados de 1980, quando arqueólogos conseguiram localizá-la.
POMBAL E A CRISE
De acordo com dados apurados por Laurentino, na história da escravidão foram registrados cerca de mil naufrágios ao longo dos 350 anos do comércio de escravos africanos no Atlânticos, a maior parte no século XVIII, época em que o reino de Portugal vivia em crise. A corrida do ouro e do diamante logo se esgotou.
Em 1750, após a morte de D. João V, o governo passou para as mãos de Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro marquês de Pombal. Assim como Rasputin, na Rússia, Pombal foi defenestrado do poder por D. Maria I. Ele era uma espécie de primeiro-ministro do novo rei D. José I.
O período de Pombal ficou conhecido como “despotismo esclarecido”, forma moderna de governar, baseada em princípios do iluminismo europeu, visando reformar a economia, as leis e as instituições.
Pombal enfrentou três principais dificuldades. Uma delas foi a necessidade de reconstruir Lisboa, devastada por um terremoto seguido de um maremoto, no dia 1º de novembro daquele ano. O fenômeno deixou a capital em ruínas, matando 20 mil pessoas. Só três mil, das 20 mil casas, continuaram habitáveis. Das 40 igrejas, 35 desmoronaram. Apenas 11, dos 65 conventos, continuaram de pé.
Outro problema de Pombal foi conter os gastos e pagar as dívidas resultantes de uma sequência de guerras contra a Espanha, entre 1760 e 1770. A pior crise foi o esgotamento das minas de ouro e diamante do Brasil.
Para vencer este último fracasso, Portugal apertou os mineradores na cobrança de altos impostos. Veio, então, a chamada “derrama”, estopim da Inconfidência Mineira. Os preços do açúcar brasileiro também sofreram queda devido a competição das lavouras de engenho nas colônias britânicas, francesas e holandesas. Uma recessão derrubou o volume e a receita no Porto de Lisboa. Muitos comerciantes entraram em falência. No entanto, os gastos na corte não pararam de subir.
Para contornar as dificuldades, Pombal procurou imprimir uma reforma administrativa, inclusive com a polêmica expulsão dos jesuítas de todos domínios portugueses, com o confisco de seus bens. Suas propriedades incluíam 17 plantações de açúcar, sete fazendas com mais de mil cabeças de gado na ilha de Marajó e 186 edificações em Salvador. Era ainda grande proprietária de escravos no Brasil e em Angola.
Outra medida controvertida de Pombal foi o alvará de 1761 onde declarava que todos escravos negros desembarcados em solo português seriam automaticamente livres. Foi apenas uma medida prática de interesse econômico.
O ciclo de reforma terminou em fevereiro de 1777, com a morte de D; José. Sua filha dona Maria I foi a primeira mulher a ocupar o trono, trazendo o conservadorismo. Pombal caiu no ostracismo, e em 16 de agosto de 1781 foi proibido de se aproximar da corte. Ele tinha de guardar uma distância mínima de 110 quilômetros de onde quer que estivesse a rainha.
A INGLATERRA E A ESCRAVIDÃO (Final)
A INGLATERRA DECRETOU A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA EM 1834, MAS, AO INVÉS DOS CATIVOS, INDENIZOU OS SENHORES COM O TESOURO DOS PRÓPRIOS CONTRIBUINTES, E AINDA RETARDOU A LIBERDADE DOS NEGROS AFRICANOS POR SEIS ANOS.
Até o final do século XVIII, as vozes contra a escravidão africana eram esparsas e desconectadas, mas sempre existiram manifestações desde o século XVI, incluindo textos de missionários capuchinhos, relatos de viajantes e outros documentos que criticavam a maneira como os negros eram escravizados e tratados.
Essa descrição do quadro é do jornalista e escritor Laurentino Gomes na segunda trilogia de “Escravidão”, acrescentando que, em sua gênese, o abolicionismo teve um importante componente religioso. “A grande revolução começou de forma religiosa, no adro das igrejas da Inglaterra e dos Estados Unidos”. Entre seus líderes estavam os quakers, uma vertente do protestantismo, criada em 1652 pelo inglês George Fox.
Os quarkers eram um grupo pequeno. Por volta de 1750 havia cerca de 90 mil nos Estados Unidos e no Reino Unido. Eram ricos, letrados, banqueiros, comerciantes, armadores e financiadores do negócio negreiro, influentes em suas comunidades. Foram convocados a desistirem do tráfico de cativos.
A esse grupo coube a criação da primeira sociedade de abolicionistas, sediada na Filadélfia e Nova York (EUA) e Londres e Manchester (Inglaterra). Nove dos doze da “Sociedade para Abolição do Tráfico de Escravos”, estabelecida em 1787, na capital britânica, eram quarkers.
Essa instituição serviu de modelo para outras organizações. Elas traziam uma mudança significativa. Refletiam a ideia de que a sociedade humana poderia ser algo maior do que apenas lucro, ganância e poder, conforme observou o historiador David Brion Davis.
O movimento reunia pessoas de diferentes origens e perfis sociais, de acordo com Laurentino. Quase todos tinham alguma filiação religiosa, como Anthony Benezet, francês de pais protestantes, professor de uma das raras escolas para negros existente nos EUA, na primeira metade do século XVIII, e líder dos quarkers na Filadélfia.
Outro foi Benjamim Franklin, inventor do para-raios e um dos pais da Independência dos Estados Unidos. Tinha sido senhor de escravos até resolver libertá-los e aderir ao movimento abolicionista. Também John Wesley, teólogo anglicano, precursor do movimento espiritual que daria origem à Igreja Metodista, em 1739.
O reverendo John Newton foi capitão de navio negreiro antes de se converter, tornar-se abolicionista e compor um dos hinos religiosos de todos os tempos – Amazing Grace (Maravilhosa Graça), incorporada à cultura pop na voz de Elvis Presley.
Na Inglaterra destacaram-se Granville Sharp (o mais veterano), Thomas Clarkson e William Wilberforce. Granville defendia a causa dos negros escravizados desde 1765. Foi autor de um plano para criação de uma colônia para ex-cativos na costa da África que daria origem ao atual país de Serra Leoa.
Clarkson foi o mais infatigável de todos abolicionistas. Durante sua campanha, teria viajado 50 mil quilômetros pela Grã-Bretanha fazendo pesquisas a respeito do negócio negreiro e divulgando suas ideias.
Segundo Laurentino, o abolicionismo foi também a primeira campanha popular a usar técnicas modernas de propaganda de massa com fins políticos. Seus líderes tinham a consciência de que não bastava a defesa de princípios morais e valores cristãos para convencer a opinião pública quanto o abolicionismo.
Reuniões, palestras e comícios nas ruas e praças ajudaram na promoção dos milhares de abaixo-assinados que chegaram ao Parlamento. A participação feminina foi intensa e importante, como o boicote do açúcar produzido nas colônias escravistas do Caribe. O abolicionismo, além de uma filosofia, tinha um cunho ativista.
Um caso particular de crueldade do tráfico se tornou comoção nacional. Foi a tragédia ocorrida a bordo de um navio negreiro entre a África e o Caribe, no dia seis de setembro de 1781, com o navio Zong, de Liverpol. Essa nau saiu da África para Jamaica com excesso de carga.
No meio do Atlântico, em novembro, 60 negros já haviam morrido. Temendo perder toda carga, o capitão Luke decidiu jogar ao mar todos escravos doentes ou desnutridos. Em três dias, 133 negros foram atirados vivos da amurada, e só um conseguiu escapar.
Era um horror a viagem nos porões, como narra Laurentino. Lá dentro, a cada homem adulto cabia um retângulo de 1,82 metro de comprimento por 40 centímetros de largura. Cada menina espremia-se numa faixa de 1,22 metro por 35,6 centímetros. A altura entre as diferentes plataformas era de 1,70 metro.
Nos Estados Unidos, um grupo liderado por Benezet conseguiu fazer aprovar, na Pensilvânia, em 1780, uma primeira lei de emancipação gradual. Medidas idênticas foram aprovadas depois em Massachusettes, Vermont, Connecticut, Nova York, Nova Jersey e Alto Canadá.
Na Inglaterra, em 1805, o governo concordou em banir a importação de cativos para os territórios da Guiana e ilha de Trinidad. No ano seguinte proibiu os súditos de se envolverem no comércio de escravos com domínios e colônias estrangeiras.
Em março de 1807, o tráfico foi totalmente proibido a partir de primeiro de janeiro do ano seguinte, mesma data em que os EUA proibiram a importação de novos cativos em seus domínios. No entanto, a abolição total só viria mesmo em 1865, após a Guerra da Secessão.
Portugal, Espanha e o Brasil foram as últimas potências escravistas do hemisfério ocidental a extinguir o tráfico. Entre 1820 a 1880, cerca de 2,3 milhões de africanos escravizados embarcariam em navios negreiros rumo a América, a maior parte com destino a Cuba e Brasil.
Em 1834, o movimento conseguiu a tão sonhada vitória que foi a abolição, não apenas do tráfico, mas da própria escravidão em todos os territórios britânicos, só quer a um grande custo para o Tesouro. O parlamento abolia a escravidão comprando de seus donos, 800 mil cativos.
O dinheiro foi usado não para indenizar os escravos pela exploração do trabalho cativo, mas para compensar os senhores pela perda do que consideravam um investimento e um valioso patrimônio. Lord Harewood, um dos mais ricos da época recebeu 26 mil libras esterlinas pela alforria de 1.277 negros. Além disso, a liberdade foi somente para crianças com até seis anos de idade. Os demais tiveram que ficar mais seis anos com seus antigos donos na condição de “aprendizes”, sob a orientação de seus senhores.
A INGLATERRA E A ESCRAVIDÃO (I)
No começo do século XVIII, o tráfico negreiro ainda era uma instituição sólida e lucrativa na Inglaterra, tanto que em 1713 fizeram uma procissão solene e uma festa para celebrar a boa fase nos negócios de uma nova companhia, a “South Sea Company” dedicada ao ramo de cargas de cativos.
Quem registra o fato é o jornalista e escritor Laurentino Gomes, na segunda trilogia de “Escravidão”. Em 1713, essa empresa se tornara detentora do monopólio de fornecimento de mão de obra cativa pelos trinta anos seguintes para o império colonial espanhol nas Américas.
De acordo com Laurentino, tinha como sócios principais o rei Felipe V, da Espanha e a rainha Ana, da Inglaterra. Entre os minoritários, o matemático Isaac Newton e dois escritórios, Daniel Defoe e Jonathan Swift, autores de clássicos da literatura Robinson Crusoé e As viagens de Gulliver. Em sua curta existência de pouco mais de uma década, forneceu 64 mil africanos aos espanhóis.
CAPITAL MUNDIAL DO TRÁFICO
A cidade portuária de Liverpool era considerada a capital mundial do tráfico negreiro. Passara de um pacato vilarejo de pescadores para a segunda cidade mais populosa da Inglaterra. O número de moradores passou de cinco mil, em 1700, para 34 mil, em 1773. Liverpool também se tornou o principal porto de mercadorias da Revolução Industrial, cujo centro seria a cidade de Manchester.
Dezenas de itens compunham a carga de um navio que deixou os portos da Inglaterra em 1787 rumo à África, como peças de algodão e linho, lenços e tecidos de seda, balas e barras de chumbo, panelas e frigideiras, pólvora, taças e copos de vidro, bijuterias e pedras preciosas, espadas, couro, capas de chuva, tabaco, bebidas e tantos outros.
Os navios britânicos transportavam anualmente, no total, mais de 100 mil africanos escravizados para o Novo Mundo, dos quais 60 mil para os engenhos de açúcar na Jamaica e Barbados, onde os africanos compunham cerca de 90% da população. A Jamaica recebeu sozinha mais de um milhão de cativos, número superior ao da Bahia. Barbados, meio milhão.
Nessa época, também se intensificou, a bordo dos navios negreiros, o comércio de escravos para o sul dos Estados Unidos, grande produtora de arroz, tabaco e algodão. Entre 1730 e 1740, os britânicos se tornaram os campeões mundiais do tráfico de gente escrava, ultrapassando pela primeira vez no período, o número de portugueses e brasileiros.
O ABOLICIONISMO
Nas quatro décadas seguintes, mais de 800 mil seriam traficados. O auge foi atingido entre 1780 e 1790, quando transportaram 350 mil cativos. Mesmo assim, nesses dez anos aconteceram os debates que fariam desabar o arcabouço do sistema escravista, que foi a campanha do abolicionismo britânico e norte-americano, mudando a face do planeta no século seguinte.
De acordo com o autor de “Escravidão”, o movimento ganhou folego em meados da década de 1780. Vinte anos mais tarde levaria à proibição do tráfico negreiro na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mais duas décadas e meia, em 1833, resultaria na abolição da escravatura na Inglaterra, completando com o 13 de maio de 188 no Brasil.
Com relação à questão da abolição, sugiram várias explicações de historiadores, algumas até românticas plantadas pelos britânicos e norte-americanos, como de que teria sido resultado de uma obra filantrópica dos brancos em favor dos negros, mas isso não se sustentou.
Em 1944, um estudo revolucionário de um homem crioulo de Trinidad Tobago, chamado Eric Williams abriu várias discussões. Segundo ele, a escravidão havia se tornado economicamente insustentável no longo prazo. Diante da marcha dos acontecimentos do século XVIII, como as novas tecnologias, as descobertas científicas e métodos de produção, seria inevitável a substituição da mão-de-obra cativa pelo trabalho assalariado.
Pelo sistema capitalista, conforme as análises dos historiadores, os ex-escravos, convertidos em assalariados seriam também consumidores para os novos produtos da economia industrial britânica. Eric também defendeu a tese de que a escravidão teria sido a primeira fase da economia capitalista, cujos lucros financiaram a Revolução Industrial, tornando o trabalho cativo obsoleto.
A terceira e última explicação para o desfecho abolicionista dizia ele que o sistema escravista trazia dentro de si a semente da destruição. Então, teria sido resultado da resistência dos próprios escravos. O abolicionismo coincidiu com o período de rupturas dentro das ordens estabelecidas pelos brancos, como a Independência dos EUA e a Revolução Francesa. Esses episódios abriram espaços para a liberdade.
Num curto intervalo de apenas 43 anos, entre 1789 a 1823, ocorreram mais de vinte revoltas em todo continente americano. Nesse clima, conforme analisa Laurentino, os escravos teriam aguçado nos senhores o medo de uma “bomba social”. A Revolução do Haiti, em 1791, e a Revolta dos Malês, na Bahia, em 1835, foram dois grandes exemplos.
As ideias revolucionárias do iluminismo no século XVIII foram abrindo espaços para violentas revoluções. O escravismo já era uma máquina enferrujada, que precisava ser abandonada em favor de um equipamento mais novo e eficiente.
Essa de filantropia dos brancos não colava diante dos fatos de que grandes líderes escritores, intelectuais e agitadores negros já defendiam o abolicionismo, como no caso da Inglaterra dos africanos Olaudah Equiano, Ottobah Cugoano e Charles Sancho, este um ex-escravo que se tornara compositor e primeiro afrodescendente a ter o direito de voto na Inglaterra.
Nos Estados Unidos, segundo apurou Laurentino, a relação de abolicionistas negros tem quase quarenta nomes, incluindo o escritor Frederick Douglas, James William Charles, primeiro afrodescendente a estudar na Universidade Yale, e o também ex-escravo Harriet Tubman, homenageado pelo presidente Barack Obama.
No Brasil houve o abolicionista Joaquim Nabuco, branco conhecido como “Quincas, o Belo”. Ao lado dele tiveram o fluminense José do Patrocínio, o advogado baiano Luis Gama, o engenheiro baiano André Rebouças e a escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula, primeiro romance publicado por uma mulher negra.
ATIVA E VIGOROSA
Quanto a explicação da inviabilidade econômica não convence certos historiadores, pois pesquisas mostram que, no final do século XVIII, a escravidão estava longe da exaustão. Estava ativa e vigorosa, como demonstrou o historiador Seymour Drescher, opositor de Eric William. Pelo ponto econômico, não haveria como acabar com a escravidão. Na visão de Drescher, a abolição teria mergulhado as colônias britânicas num declínio econômico.
Ao assumir o governo britânico, em 1783, o primeiro-ministro William Pitt estimou que 80% de todas as receitas auferidas pela Grã-Bretanha no comércio ultramarino vinham de suas colônias no Caribe. No período de 1750 a 1805, nunca tantos cativos foram transportados da África para a América, antes da abolição nos EUA e Inglaterra. A própria Guerra da Sucessão entre o Sul e o Norte, em que mais de 750 mil pessoas morreram, comprova que o sistema estava vigoroso.
Também, “a teoria de que a abolição resultou da teoria da pressão dos próprios negros não fica de pé sozinha e precisa ser calibrada diante dos fatos. Houve várias rebeliões, mas nenhuma, com a exceção do Haiti, chegou a ameaçar a ordem escravista. A maioria optou por outras estratégias silenciosas de resistência, como relação de laços familiares mediante o compadrio (irmandades religiosas, alianças sutis com seus senhores)”.
Na chamada Revolta de Tacky, na Jamaica, em 1760, os rebeldes pregavam a aniquilação dos brancos e a tomada do poder, onde continuariam a produzir o açúcar pela escravização dos negros. No Quilombo Oitizeiro, no sul da Bahia, os fugitivos utilizavam o trabalho de outros escravos na produção de mandioca.
OS QUILOMBOS: CUSTOS PARA OS DONOS E LUCRO PARA OS CAPITÃES DO MATO
No relato de Laurentino, em sua obra “Escravidão” (segundo volume), a recuperação de um escravo fugitivo requeria altos custos para o dono, incluindo pagamento para o capitão do mato, despesas de carceragem, taxas referentes à documentação, além dos dias trabalhados que deixaria de executar.
Os senhores gastavam em torno de 15% do valor estimado do cativo. Quando preso poderia ser entregue ao dono, mas era mais encaminhado à cadeia pública até completar o processo de reconhecimento. Em caso de o dono não procurar, o escravo seria vendido em leilão.
As recorrentes fugas eram desafios para a própria ordem escravista brasileira. Aumentava o medo das autoridades e da população a respeito de ameaças de haver uma associação de negros com objetivo de assaltar fazendas e viajantes.
Esse medo era ainda maior em Minas Gerais onde havia maior concentração de escravos no século XVIII. Ordens proibiam cativos de usar armas. Um regulamento de 1726 permitia o uso de facas e porretes, com o consentimento de seus donos.
As fugas e a proliferação de quilombos fizeram surgir uma tropa especializada na recaptura de fugitivos. Seus membros recebiam denominações variadas, como soldado do mato, cabo do mato, capitão do mato e sargento-mor do mato. No entanto, a que mais pegou foi a de capitão do mato, criado em Minas.
O historiador baiano Luiz Mott, no entanto, diz que já existia em Pernambuco, em 1612, ano em que o donatário Alexandre Moura solicitou à Coroa, a nomeação de um caçador de fugitivos com esse nome.
Em 1625, a Câmara de Salvador dispunha de uma escala de recompensa. Também, em 1672, a Câmara de Cachoeira possuía uma postura municipal com funções iguais às do Rio de Janeiro.
O regimento dos capitães do mato, criado no governo de Minas, estabelecia critérios de atuação e remuneração a ser paga pelos senhores de escravos fugitivos, na base da distância em que o cativo era capturado.
Se o escravo fosse encontrado em um quilombo, em companhia de pelos menos quatro fugitivos, havia uma recompensa padrão de vinte oitavas de ouro (72 gramas), mais de 22 mil reais de hoje.
Caso o escravo resistisse e fosse morto, sua cabeça seria exibida no alto de um poste em praça pública, para servir de exemplo. Muitos capitães andavam a cavala pelo interior carregando uma cabeça de um escravo, salgada e acondicionada dentro de um saco.
O capitão Francisco de Mattos chegou a receber a quantia de 7,5 quilos de ouro, cerca de 2,4 milhões de reais com a missão de extinguir os negros calhambolas nos distritos da região de Vila Velha (Ouro Preto).
Bartolomeu Bueno do Prado teve melhor resultado quando acabou com o Quilombo do Ambrósio, em 1759. Os capitães também faziam respeitar a ordem de recolher, e verificavam se os cativos tinham autorização de seus senhores para frequentar determinados lugares ou circular pelas ruas tarde da noite.
Severino Pereira se apresentava com a designação de capitão-mor de estradas e assaltos, chefe de milícia da redução dos escravos foragidos e dos fortificados nos quilombos ou coitos. Seu campo de atuação era o distrito de São José das Itapororocas (Feira de Santana), terra de Maria Quitéria.
Muitas vezes os capitães vendiam escravos, sem devolvê-los aos seus donos, uma vez que os preços em Minas Gerais eram muito superiores às recompensas pelas recapturas. Haviam escravos que prestavam serviços aos seus senhores para capturar outros cativos fugitivos.
Também existiam casos de proprietários de escravos (mestre de campo Inácio Correia Pamplona), em Minas, que armavam seus próprios cativos (58) para expedições de captura.
O historiador Donald Ramos destaca que em Minas, a maioria dos quilombos era de pequeno porte e se localizavam próximos às áreas de mineração, e que nunca ameaçaram a ordem escravista. Mantinham intercâmbio com as vilas e as comunidades.
Segundo ele, o quilombo nunca ameaçou a sociedade luso-brasileira. Nas zonas de mineração nunca houve rebelião escrava significativa ao longo do século XVIII. Nada parecido com o que aconteceu na Bahia, em 1835.
Da mesma forma havia pouca solidariedade entre negros fugitivos e índios nos sertões do Brasil. Indígenas ajudavam os portugueses nas operações de recaptura, como fizeram os tapuias na destruição de Palmares. Em alguns lugares, porém, a mistura era mais comum. No Quilombo do Piolho, em Mato Grosso, moravam 79 negros e 30 índios.
Conforme relatos de Laurentino, em algumas regiões, os quilombos eram parte de uma vasta rede clandestina de roubo, desvio e comércio dos mais variados produtos. Em Itu (SP), os quilombos não só vendiam café furtado para comerciantes locais, como também roubavam vacas e porcos por encomenda dos próprios comerciantes.
Quando perseguidos, muitos se refugiavam nas senzalas das três fazendas da Ordem Beneditina Gondê, Outeiro e Iguaçu. Os quilombolas forneciam produtos agrícolas, animais, peixes e caças aos taberneiros da região que, em troca, lhes dava proteção.
OS QUILOMBOS E OS CAPITÃES DO MATO
A palavra kilombo, no português quilombo, vem do quicondo e do quimbundo, línguas faladas na África Central. Significa acampamento, arraial, união ou cabana. Entre os povos imbangalas de Angola, indicava sociedade guerreira de rigorosa disciplina militar. No Brasil virou sinônimo de reduto de escravos fugitivos, chamado de mocambo.
Em “Escravidão”, segundo volume da trilogia do jornalista e escritor Laurentino Gomes, no capítulo “Fugitivos e Rebeldes”, ele começa a descrever sobre o Quilombo de Cruz da Menina, na Serra da Borborema, no agreste da Paraíba. Na produção do açúcar e do café, todos cativos chegaram ali por volta do final do século XVIII e início do XIX.
COMUNIDADE FEMININA
O nome foi dado em memória de uma menina branca de nome Dulce, filha de retirantes da grande seca de 1876, que ali teria morrido de sede. Para trás ficou uma comunidade feminina e matriarcal. Restou a essas mulheres fortes a tarefa de cuidar dos filhos e sozinhas enfrentar os desafios da vida.
Laurentino ressalta que história semelhante pode ser observada no município vizinho de Alagoa Grande, terra do cantor e compositor Jackson do Pandeiro. Na mesma Serra, a comunidade quilombola de Caiana dos Crioulos se dividiu em duas em razão da seca.
Uma parte dela permaneceu ali e a outra metade urbana e masculina em Pedras de Guaratiba, zona oeste do Rio de Janeiro. As duas mantêm intenso intercâmbio. No início de 2020, as mulheres de Caiana, depois de muitas lutas, conseguiram o reconhecimento e a titulação de suas terras, coisa que não ocorreu com Cruz da Menina.
Herança do sistema escravista, como diz o escritor, atualmente existem milhares de quilombos espalhados pelo Brasil. Em 2019 era 3.212 certificados pela Fundação Palmares. “Com 1,2 milhão de moradores, dos quais 75% em estado de pobreza extrema, os quilombos ocupam uma área de 1,2 milhão de hectares.
A soma de todos quilombos, segundo Laurentino, resulta numa área inferior à ocupada pelas dez maiores propriedades do agronegócio do país. A fazenda Piratininga, entre Tocantins, Goiás e Mato Grosso, se estende por 135 mil hectares.
ORELHAS CORTADAS
Durante a escravidão, a violência contra os quilombos pode ser medida através dos relatos dos historiadores. Um deles conta que, ao retornar a São Paulo, em 1751, depois de atacar inúmeros redutos numa região de Minas Gerais e Goiás, o bandeirante Bartolomeu Bueno do Prado levava como troféu colares com 3.900 pares de orelhas cortadas. Pelas leis portuguesas, o corte da orelha era uma das punições previstas para os fugitivos.
De acordo com o autor de “Escravidão”, o Código Negro, do governo francês, de 1768, estabelecia que na colônia de São Domingos (Haiti), escravos ausentes por mais de quatro dias seriam submetidos a 50 chibatadas e ficariam amarrados no tronco até o pôr-do-sol. Oito dias de ausência, 100 chibatadas e o uso de uma corrente amarrada a um peso de ferro de dez quilos por dois meses.
Na Louisiana (EUA), os fugitivos tinham as orelhas cortadas e costas marcadas a ferro quente. Três fugas resultariam em sentença de morte. No Suriname, um cativo recapturado depois de algumas semanas de fuga poderia ter o tendão de Aquiles cortado ou amputação da perna direita. Proposta semelhante chegou ao Brasil, mas não foi adotada.
Em 1719, o conde de Assumar, governador de Minas Gerais, tentou implantar a pena de morte, mas não conseguiu. A medida acarretaria prejuízos para os mineradores. Para o escravismo, era melhor um escravo fugitivo do que um escravo morto, conforme assinala o historiador Carlos Magno Guimarães. Também, a Câmara de Mariana, em 1755, propôs cortar o tendão de Aquiles. O conde dos Arcos surpreendeu contestando ser uma tirania e condenou as sevícias dos donos dos escravos.
De todos os quilombos, o que mais resistiu foi o de Palmares, na Serra da Barriga, estado de Alagoas. Lutou durante mais de um século contra portugueses e holandeses até a morte do seu último líder Zumbi, em 20 de novembro de 1695. Entre os séculos XVIII e XIX surgiram milhares, inclusive em regiões mais distantes, como na Amazônia. Outros funcionavam em áreas próximas às cidades, como na floresta da Tijuca (Rio de Janeiro) e Quilombo do Jabaquara (São Paulo).
No Grão-Pará e Maranhão existiram cerca de 80, entre 1734 e 1816. Em Minas Gerais 160 no século XVIII. Alguns eram grandes comunidades, como Quilombo do Ambrósio (Quilombo Grande), em Minas Gerais, na região de Araxá, atacado por duas expedições (1746-1759). Chegou a reunir mil cativos. Foi descrito como quase reino por Bartolomeu Bueno.
Em Mato Grosso, o Quilombo do Quariterê (1730), resistiu durante mais de meio século e reuniu 79 negros e 30 índios, sob o governo de um rei e uma rainha. Ainda em Mato Grosso, o de Vila Maria chegou a abrigar 200 negros armados. “Na defesa de seus redutos, os quilombolas seguiam estratégias de disciplina militar, desenvolvida na África (Angola, Congo, Nigéria). No quilombo Buraco do Tatu, nas vizinhanças de Salvador e destruído em 1763, os esquemas de defesa eram africanos, com trincheiras cavadas ao chão e cobertas com estrepes de madeiras pontiagudos.
Houve um grande quilombo na bacia do rio Trombetas, afluente do Amazonas. Um relatório dizia que teve dois mil habitantes. Os cativos chegaram a essa região por volta de 1780 nas fazendas de gado e cacau. O reduto foi atacado em 1823, mas tempos depois foi reativado e deu origem a outros, mantendo relações abertas com o mercado de brancos, aldeias indígenas e exportação de cacau.
Na descrição do historiador Flávio dos Santos Gomes, fugas e quilombos aumentavam mais em períodos de guerras, caso dos holandeses e portugueses que deram alento a Palmares, e divergências entre os brancos. O mesmo fenômeno pode ser observado na primeira metade do século XIX nos conflitos Cabanagem (Pará), Balaiada (Maranhão), Revolução do Cabanos (Pernambuco e Alagoas), Farroupilha (Rio Grande do Sul). No Maranhão, o quilombo Campo Grande mobilizou um exército de três mil ex-escravos para participar da Balaiada.
A repressão das autoridades era implacável. Governadores reclamavam dos contínuos delitos cometidos por bastardos (brancos pobres fora da lei), carijós (índios), mulatos e negros. Em Minas Gerais foi proposto a pena de morte para combater as quadrilhas de salteadores. O governador de Minas temia que seu território poderia se transformar num Palmares. Ele dizia que os quilombos eram pequenos estados ou reinos organizados à maneira africana. Em Campo Grande haviam mais de 600 negros, com rei e rainha. As referências a reis e rainhas apareciam em diversos relatórios.
No Mato Grosso, entre 1770 e 1795, existiu também o Quilombo da Carlota, governado por uma mulher, em homenagem à princesa Carlota Joaquina, mulher de D. João VI.
Um caso interessante narrado por Laurentino, seguido de negociação (espécie de greve) ocorreu no final do século XVIII, em Ilhéus, com o engenho Santana, fundado no século XVI, com 300 cativos. Em 1789, um grupo de escravos, sob a liderança de Gregório Luis, fugiu depois de matar o mestre de açúcar. O engenho ficou parado durante dois anos. Sob pressão das autoridades, os fugitivos decidiram propor um tratado de paz ao dono do engenho, listando dezenas de reivindicações. Trata-se de um caso raro onde os escravos falavam sobre as condições em que viviam no cativeiro, desejos e expectativas.
Treze das demandas se referiam às condições de trabalho e pediam redução de 30% da cota diária de cana obrigados a corta. Outras reivindicações falavam de folgas semanais e ao direito de revender no mercado o que produzissem através de seus meios. Queriam também jogar, descansar, cantar e dançar.
Nessas condições de escravos, se mostraram dispostos a retornar ao engenho. Exigiam apenas que os antigos feitores fossem demitidos e novos fossem eleitos mediante aprovação deles. O dono do engenho Manuel da Silva Ferreira fingiu aceitar as propostas, mas os traiu, prendendo o Gregório e vendeu os demais para o Maranhão.
No entanto, um caso bem-sucedido aconteceu em 1800, na antiga capitania do Espírito Santo, onde muitas áreas estavam infestadas de quilombos (300 fugitivos). O governador Silva Pontes dispunha de uma tropa de 100 homens, mesmo assim decidiu negociar. Deu um prazo de 30 dias para os fugitivos retornarem. Em troca seriam anistiados. O plano funcionou.
PROIBIDO USAR SEDA E SAIR À RUA AO ANOITECER NO BRASIL ESCRAVOCRATA
“De um lado, havia a mulher branca reclusa, religiosa e submissa, sempre sobre os cuidados e as ordens do pai ou do marido. De outro, a mulher negra sensual, voluptuosa, cujo descontrole sexual seria responsável pela corrupção dos bons costumes da América Portuguesa”
São dois dos estereótipos femininos principais aos olhos do Brasil masculino apontados pela historiadora Sheila de Castro Faria no livro “Escravidão” da segunda trilogia do jornalista e escritor Laurentino Gomes.
Na verdade, as mulheres brancas e negras desempenharam papel importante no período do Brasil escravocrata. Muitas já eram chefes de família e empreendedoras. As mulheres escravas trabalhavam para alforriar seus maridos e filhos. Ao contrário do que se pensava, constituíram famílias.
De acordo com a historiadora Sheila, “a ideia comum nos relatos sobre a colônia era de que as índias e as negras, sobretudo as mulatas, só serviam para a fornicação, pois teriam vocação libidinosas, pondo a perder os homens”. Laurentino descreve que haviam leis rigorosas da Coroa Portuguesa contra as mulheres, como a proibição de que elas usassem vestidos de seda e que saíssem à rua ao anoitecer.
Nos livros, a maioria dos historiadores coloca a mulher negra como sexualmente disponível, “a que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de homem”, como na imagem bucólica de Gilberto Freyre, mesma visão tinha ele a respeito das indígenas.
Narra Gilberto que “as mulheres eram as primeiras a se entregarem aos homens, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho”.
Laurentino destaca que o médico maranhense Nina Rodrigues atribuía à mulata a tendência promíscua da sociedade brasileira no campo sexual. Segundo ele, uma das heranças nocivas da escravidão. Como resultado de todas essas influências desfavoráveis, a energia de todo povo degenerou em indolência e gozos sensuais e para sair dessa situação serão necessários séculos – afirmava Nina.
O ministro José Bonifácio de Andrada e Silva tinha a ideia de que a escravidão corrompia os costumes e comprometia o futuro da sociedade brasileira, em especial devido à facilidade com que as mulheres negras se prostituíam.
São conceitos distorcidos que se perpetuaram através dos séculos. Para o autor de “Escravidão”, o papel da mulher na sociedade colonial foi muito além da satisfação sexual do homem, da procriação e do cuidado da casa.
Segundo ele, desde o primeiro século da invasão portuguesa, muitas delas foram donas de engenhos, fazendas, minas de ouro, vendas, tabernas e outros negócios. No Nordeste chegaram a labutar na criação de gado como vaqueiras. Outras foram benzedeiras e curandeiras. A grande maioria de brasileiros veio à luz com ajuda de parteiras cativas ou libertas, muitas amas de leite.
As constituições primeiras do arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707, por D. Sebastião Monteiro da Vide, definiam que as mulheres podiam se casar a partir dos doze anos de idade, e os homens aos catorzes.
Em 1764, a inglesa Jemima Kindersley, que visitou Salvador, registrou que as senhoras da elite colonial levavam uma vida de ócio e sedentarismo, engordavam rapidamente. Ficam velhas muito depressa.
A historiadora Leila Mezan Algranti cita que a sociedade classificava a mulher brasileira em três grupos, as com honra, castas e casadas, as sem honra (escravas, negras, mestiças forras e prostitutas) e as desonradas. Para ela, a sociedade tendia a ser mais tolerante com as mulheres sem honra do que com as desonradas. Também existiam as mulheres de freiras que se refugiavam nos conventos.
Os historiadores descrevem que o convento era ainda um lugar para proteger mulheres e filhas das tentações. Alguns maridos deixavam suas mulheres temporariamente enclausuradas enquanto viajavam.
A Igreja e as autoridades civis impunham normas rígidas contra as mulheres. Uma das sugestões do bispo do Rio de Janeiro, por volta de 1702, era que as mulheres fossem proibidas de sair de casa depois do anoitecer. O governador da Bahia determinava aos soldados que prendessem todas as mulheres encontradas na rua à noite. Quem transgredisse as leis seria punida com degredo e até excomunhão.
Somente tempos depois o Conselho Ultramarino decidiu que não caberia proibir as mulheres de sair à noite. No entanto, em 1703, uma carta régia foi despachada para o Rio de Janeiro proibindo as escravas de usarem roupas com seda e ouro. Em 1709, a Câmara da Bahia reclamava junto ao Conselho sobre o excesso de luxo com que os negros e mulatos se vestiam.
AS TORTURAS CONTRA OS ESCRAVOS
Castigar, segundo a ideologia da violência no Brasil escravista “era uma eficiente forma de controle social, destinada a servir de exemplo aos demais cativos. Por isso, muitas sessões de açoite eram executadas em praça pública, com o escravo amarrado no pelourinho, o símbolo do poder régio nas vilas do Brasil colonial, como mostram os famosos quadros e ilustrações de Jean-Batiste Debret e Johann Mortz Rugendas do começo do século XIX”.
A descrição é do jornalista e escritor Laurentino Gomes na segunda trilogia das obras “Escravidão”, no capítulo intitulado ”A Violência”. Mais adiante ele diz que no imaginário escravista, o castigo, além do seu caráter educativo e pedagógico, era também uma maneira de disciplinar e organizar a força de trabalho cativa.
Por isso, de acordo com Laurentino, após as sessões de açoite, aplicavam-se sobre as feridas misturas consideradas cicatrizantes, como salmoura (uma combinação de água morna com sal), suco de limão, vinagre, pó de carvão moído ou mesmo urina. Muitas vezes, o feitor picava a carne do escravo com uma navalha, para aplicar as misturas, conforme relatam historiadores da época.
Descreve ainda o autor que nas chamadas casas de correção, caso do prédio conhecido até hoje como Calabouço, no Rio de Janeiro, havia espaços especialmente destinados ao castigo dos escravos que para lá eram mandados a fim de serem punidos por desobediência ou falhas pequenas.
Era, na verdade, torturas institucionalizadas pelo Estado, e o fazendeiro pagava uma quantia para ter seu cativo castigado, muitas vezes com até 200 e 300 chibatadas. “No livro caixa eram anotados os custos dos serviços judiciais, que incluíam o açoite e a permanência do escravo no local, e que depois seriam reembolsados pelo seu dono”.
Era impressionante a lista dos instrumentos utilizados nas torturas. O historiador Arthur Ramos classificou em três categorias, como os de captura e contenção, os de suplício e os de aviltamento. “Para prender os escravos, eram usadas correntes de ferro, gargalheiras (que se prendiam ao pescoço), algemas, machos e peias para os pés e as mãos, além do tronco, que era um pedaço de madeira dividido em duas metades com buracos nos quais se introduziam a cabeça, os pés e as mãos dos cativos. A máscara de folhas de flandres servia para impedir o escravo de comer cana, rapadura, terra ou engolir pedras de diamante e pepitas de ouro”.
“Os fugitivos eram marcados com ferro em brasa com a letra F no rosto ou nas costas ou obrigados a usar o libambo, uma argola de ferro que lhes era presa ao pescoço, com uma haste apontada para cima, às vezes equiparada com chocalhos, para denunciar os movimentos do escravo”.
Destaca Laurentino que, em 1692, o padre jesuíta Barnabé Soares escreveu um regimento para regular a vida no engenho Pitanga, na Bahia, no qual se previa pena de até 24 açoites para crimes comuns cometidos por cativos. Dizia ele que, para trazer bem domados e disciplinados os escravos, é necessário que o senhor não lhes falte com o castigo, quando eles se demandam e fazem por onde o merecerem.
O jesuíta Jorge Benci também salientava que não é crueldade castigar os servos, quando merecem por seus delitos ser castigados, mas antes é uma das sete obras da misericórdia que mandam castigar os que erram. Existiam leis régias que mandavam punir os fazendeiros que exagerassem nos castigos, muitas vezes até com mortes, mas essas normas não eram obedecidas. O braço da justiça não alcançava os longínquos sertões do Brasil.
“Os holandeses, que ocuparam parte do Nordeste, entre 1624 a 1654, seguiam as mesmas fórmulas de castigos. Quem quiser tirar proveito de seus negros, há de mantê-los, fazê-los trabalhar bem e surrá-los melhor; sem isso não se consegue serviço, nem vantagem alguma, recomendava Johannes de Laet, diretor da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.
Os religiosos aconselhavam que os castigos fossem ministrados com prudência. Jorge Benci, por exemplo, indicava que o número de açoites nunca ultrapassasse quarenta por dia, de modo a não mutilar o escravo e nem incapacitar para o trabalho. No entanto, segundo Laurentino, no século XVIII, havia notícias de sessões de duzentas e até quatrocentas chibatadas.
Um dos maiores torturadores da época foi o mestre de campo Garcia D´Ávila Pereira Aragão, da ilustre Casa da Torre, na Bahia, pelas heresias que fez aos seus escravos. Contam que Garcia “colocava ventosas com algodão e fogo nas partes pudentes das escravas. Uma delas, surpreendida enquanto dormia fora de hora, teve uma vela acesa inserida pelas suas partes venéreas. Certa vez, usara uma torquês de sapateiro para arrancar de uma só vez chumaços de cabelos de uma mulher. A um menino ele deitava e pingava dentro da via (o ânus) cera derretida. Um escravo fora açoitado por três horas seguidas e, depois, pendurado pelos pulsos, por mais duas horas, com um peso enorme atado aos testículos e torniquetes presos aos dedos dos pés”.
OS PARDOS, OS CRIOULOS E OS MULATOS
A própria discriminação racial adotada pelos conquistadores (portugueses, ingleses, espanhóis e franceses, principalmente) serviu para introduzir rivalidades entre os próprios negros escravizados a partir das cores da pele entre “pardos”, “mulatos” e “crioulos”.
Essa situação constrangedora ficou bem explícita na trilogia “Escravidão”, escrita pelo jornalista Laurentino Gomes no capítulo que fala sobre “Áfricas Brasileiras”. Isso deu, inclusive, na criação das irmandades, todas com nomes de santos e Nossa Senhora (a Virgem Maria), bastante difundidas na Bahia, Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro.
“No século XVIII, por exemplo, havia no Rio de Janeiro, o segmento dos “pardos”, pessoas afrodescendentes mais bem posicionados socialmente, organizados em confrarias religiosas de grande prestígio, que procuravam se distanciar dos negros, em especial os recém-chegados da África, e se aproximar dos brancos, dos libertos ou mesmo dos escravos “crioulos”, ou seja, nascidos no Brasil”.
Segundo Laurentino, a expressão “pardo” (classificação até hoje feita pelo IBGE), teve diferentes significados no Brasil colonial. No século XVII era usado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Nas regiões produtoras de açúcar do Nordeste, era sinônimo de “mulato”, descendente de brancos e negros. Em Minas Gerais equivalia a escravo alforriado ou homem liberto nascido no Brasil.
“Os “pardos” não escravos no Rio de Janeiro eram também chamados de “mulatos de capote” e gozavam de importância social superior aos negros e cativos, entre outras razões por se vestirem como os europeus. Muitos deles eram ourives, profissão de grande valor na época da corrida do ouro no Brasil”.
Foram os ourives os organizadores da primeira irmandade de padres do Rio de Janeiro em meados do século XVII, sob a proteção de São Brás e os auspícios do Mosteiro Beneditino. Nas décadas seguintes criaram mais três irmandades, a de Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora da Boa Morte e Nossa Senhora da Conceição.
O autor da trilogia destaca que todo escravo descendente de homem branco era chamado de “pardo”. Assim como todo negro nascido livre, fosse negro ou não. “Havia filhos de africanos negros que eram registrados como “pardos”.
“Portanto, chamar alguém de “pardo” era o registro de uma diferenciação na hierarquia da sociedade colonial, assim como “crioulo” designava escravos negros nascidos no Brasil, enquanto “preto” se referia aos africanos”.
De acordo com Laurentino, “nas irmandades religiosas do Rio de Janeiro, dava-se preferência ao uso do termo “pardo” em detrimento de “mulato”, qualificativo, conforme observam alguns historiadores, associado a atributos como preguiça, desonestidade, astúcia, arrogância e falta de credibilidade, em resumo, moralmente inferior”.
O escritor Laurentino cita o professor Luiz dos Santos Vilhena que afirmava que “quase todos os mulatos ricos querem ser fidalgos, muito fofos e soberbos, e pouco amigo dos brancos e dos negros, sendo diferentes as causas”. O jesuíta padre André João Antonil dizia que os mulatos são soberbos e viçosos…
Esses conceitos refletiam-se no universo da escravidão, e entre os próprios negros e mestiços, cativos ou libertos – um dos estigmas mais profundos e antigos da cultura portuguesa, o da “impureza” de sangue. As leis canônicas exigiam que candidatos a determinadas funções públicas, títulos ou cargos honoríficos, fossem submetidos a uma demorada e detalhada investigação para comprovar que tinham “sangue limpo”.
OS REINOS DE DAOMÉ E OIÓ
No segundo volume da trilogia “Escravidão”, o autor jornalista e escritor Laurentino Gomes conta a história do rei Agaja, de Daomé que, com seus exércitos de guerreiros, invadiu, em 1727, Aladá, pertencente ao soberano Huffon que fugiu às pressas para uma ilha.
As tropas do Daomé tomaram o palácio e, em seguida dirigiram-se ao templo de Dangbe, onde as serpentes pítons eram cultuadas como divindades pelos huedas, designação do povo habitante do reino de Ajudá.
O saldo da ofensiva foi trágico. Dez mil pessoas foram escravizadas. Todos os fortes e entrepostos europeus existentes na região foram saqueados.
O capitão britânico William Snelgrave, que ancorou seu navio em Aladá (capital de um reino do mesmo nome vizinho de Ajudá), ficou horrorizado com a quantidade de moscas, todas atraídas pelas cabeças em decomposição de quatro mil guerreiros huedas sacrificados por Agaja em sinal de júbilo pela vitória em Ajudá.
Antes de Aladá, maior fornecedor de cativos na região, Agaja havia devastado dois reinos. Segundo relatos, ao fim dos combates, o rei capturou oito mil guerreiros que se tornaram cativos. De acordo com o historiador inglês Robin Law, “a guerra era a própria razão da existência do Daomé”.
No entanto, como descreve Laurentino em sua obra, o Daomé estava longe de dominar sozinho o tráfico de escravos na Costa da Mina (Golfo de Benin e região da Nigéria). Agaja e seus sucessores eram vulneráveis aos ataques de um reino ainda mais forte que o seu, o de Oió, situado a noroeste, no interior do continente, no território da atual Nigéria.
Os guerreiros de Oió eram exímios cavaleiros que, partindo do interior, conseguiam chegar ao litoral na época das secas. No tempo das chuvas, o charco impedia o avanço dos animais. Entre 1726/27, Oió destruiu vários vilarejos no campo do Daomé.
Em 1730, Agaja foi obrigado a fechar um acordo pelo qual concordava em pagar tributos e permitir que as caravanas de escravos dos adversários cruzassem seus territórios.
Laurentino narra que Daomé e Oió se tornaram tão eficientes no negócio negreiro que essa região logo se transformou na segunda maior fornecedora de cativos para a América, atrás apenas de Angola e Congo.
A demanda dos europeus (Portugal, Espanha, França, Inglaterra e o Brasil, na América do Sul) por escravos era grande no século XVIII. Os reinos de Daomé e Oió não tinham condições de suprir toda procura. Foi então que os reis passaram a promover novas guerras contra os vizinhos, com o objetivo de vender prisioneiros aos traficantes. “O comércio de escravos dependia essencialmente da violência” – escreveu Robin Law.
Como consequência dessas razias, foram embarcados para o Brasil milhares de negros escravizados falantes de línguas jejes (hulas, huedas, aves, adjas, aizos, mahis e outras etnias). Juntos vieram também falantes de línguas iorubás( egbas, egbados, saves e anagôs), povos que viviam sob a influência do reino de Oió.
Essas nações se concentraram na Bahia que são os jejes e os iorubás, identificados como nagôs, que forneceram o modelo organizacional de formas rituais e de associativismo religioso que resultaram no candomblé na Bahia, no xangó de Pernambuco e no tambor de mina no Maranhão – destacou o historiador Luis Nicolau Parés.
Para Laurentino, deve-se aos africanos escravizados dessa região a principal influência no desenvolvimento de religiões de matriz africana no Brasil.