outubro 2024
D S T Q Q S S
 12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031  

:: ‘Encontro Com os Livros’

AS ORDENS RELIGIOSAS E OS RESGATES

Na Itália Barroca e na França dos séculos XVI e XVII foram criadas várias ordens religiosas, com a finalidade de arrecadar fundos para resgatar escravos cristãos da região da Berbéria (Túnis, Argel e Trípoli), de Constantinopla, Turquia e até do Marrocos. Essa prática secular também foi copiada pelos cativos africanos nas Américas visando alforriar seus escravos.

Entre tantas, as duas mais importantes, desde os séculos XII e XIII, eram a dos trinitários, da Santíssima Trindade, em Paris, na França, e a dos mercedários, a Santa Casa das Mercês, na Espanha.

Por mais que tenham se dedicado, essas entidades conseguiram poucos resultados por causa das barganhas dos senhores proprietários dos cativos. Só poucos foram beneficiados. As remições tornavam-se difíceis quando o capturado era vendido para terceiros.

Por outro lado, os mais privilegiados sempre eram os clérigos, os nobres e os personagens com maior posição social. Essas ordens espalharam uma grande rede de coletores de doações por toda Europa, o que abriu, já naqueles tempos, espaços para os golpistas que se faziam passar por arrecadadores. Muitos também davam moedas falsificadas. Tudo isso, há mais de 600 anos, nos faz lembrar os dias atuais de corrupções e falcatruas.

Estas e outras questões descritas sobre a escravidão branca estão no livro “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, do autor historiador Robert Davis. Sobre o tema, ele afirma que “a Península Itálica, até então, vinha sendo uma das presas preferidas dos corsários berberes por dois ou mais séculos e, com isso, houve um grande êxodo das populações litorâneas para vilarejos cercados por muros e no alto de montanhas, ou para cidades como Rimini, deixando quilômetros de territórios costeiros, antes populosos, nas mãos de vagabundos e piratas”.

O modo como esses cristãos brancos eram levados pelos corsários da Berbéria variava pouco. O que aconteceu com eles, segundo Robert, durante o tempo das Marcas Papais, foi praticamente o mesmo que houve com aqueles que foram sequestrados ao longo dos desprotegidos litorais napolitanos, genovês e das ilhas espanholas.

Para Davis, nos três séculos da jihad cristã-muçulmana, que começou por volta do ano de 1500, a pirataria e a escravidão se tornaram instrumentos políticos de Estado para ambos os lados. Escravizar pessoas não só despojava o inimigo de milhares de cidadãos produtivos, mas também fornecia mão-de-obra capaz e uma fonte de renda por meio dos resgates.

No final do século XVI, as galés corsárias à caça de escravos, tanto cristãs quanto muçulmanas, rondavam o Mediterrâneo em busca de espólio humano – descreve o escritor. Da Catalunha ao Egito, homens e mulheres, turcos e mouros, judeus e católicos, protestantes e ortodoxos eram vítimas em potencial. Eles eram capturados e arrebanhados nos currais de escravos em Constantinopla, Argel, Túnis, Trípoli, Malta, Nápoles ou Livorno, e lá eram revendidos como remadores de galés, trabalhadores rurais ou serviçais domésticos – destacou.

A Itália, posicionada bem na linha de frente dos dois impérios em guerra, de acordo com Robert, estava entre as regiões mais devastadas, conhecida como “o Olho do Mundo Cristão”. Esse território era desguarnecido e ficava a mercê dos otomanos. Os mais expostos eram aqueles que trabalhavam no cultivo das terras costeiras, até 15 ou 30 quilômetros do mar.

As famílias (idosos, crianças, mulheres) dos capturados ficavam sem seus provedores e passavam miséria nas cidades ao ponto de comerem restos do lixo. Além do mais, não tinham condições financeiras e bens para pagar os resgates pedidos pelos sequestradores e proprietários, principalmente quando os escravos caiam nas mãos destes últimos. Ficava ainda mais complicado a comunicação com os cativos. Muitos iam trabalhar nas galés ou outros lugares desconhecidos.

Foi então que nações europeias, ordens religiosas e indivíduos engajados começaram a se mobilizar em prol de iniciativas de remição que viriam a ser um dos maiores movimentos sociais do início do mundo moderno mediterrâneo. As remições seguiram um padrão estabelecido séculos antes pelas duas principais ordens redentoras: A Ordem da Santíssima Trindade, ou trinitários, fundada na França, em 1193, e a Ordem de Nossa Senhora das Mercês, ou mercedários, em Barcelona, em 1203. Ambas foram criadas para libertar escravos cristãos, em particular os cruzados, das mãos dos muçulmanos.

Em 1548, o imperador Carlos V fundou a Real Casa Santa dela Redentione de Cattivi. Esta estrutura napolitana forneceu o modelo para outros estados italianos quando vieram a criar suas próprias sociedades redentoras. O próprio Vaticano utilizou esse padrão em 1581/82 para tratar do resgate de seus súditos. Uma das confrarias mais prestigiadas de Roma era a Santa Maria del Gonfalone.

A tarefa de solicitar esmolas para as remições recaiam mais entre os padres e freis que eram homens treinados a pregar em busca de contribuições e podiam explorar as estruturas e os costumes católicos. Os capturados eram sempre levados para o porto de Dulcigno e de lá vendidos para a Berbéria se não pagassem os resgates num tempo determinado.

Apesar dos requisitos austeros que essas instituições impunham àqueles que ansiavam pela ajuda humanitária, nem todas pagavam o valor total da remição de um cativo. Algumas, como os Provveditori sopra Luoghi Pii de Veneza e a Santa Casa Napolitana ofereciam apenas uma quantia fixa, na forma de uma nota promissória, conhecida como “Cristo”, em Veneza, e como albarano, em Nápoles. Eles emitiam suas notas em nome do próprio escravo.

 

AS PRÁTICAS HOMOSSEXUAIS NA BERBÉRIA E AS CRUELDADES NOS BANHOS PÚBLICOS

SOBRE AS TAVERNAS NOS BANHOS PÚBLICOS, MISSIONÁRIOS MANIFESTAVAM SUA REPULSA PELO QUE VIAM, CHAMANDO DE LUGARES ABOMINÁVEIS ONDE HOMENS COMETIAM CRIMES TERRÍVEIS. A MAIORIA DOS CRIMES FOI APRENDIDO COM OS TURCOS. UMA TENEBROSA LIBERTINAGEM RESULTADO DA EMBRIAGUEZ.

AS NARRATIVAS DO ESCRAVO JOÃO MASCARENHAS FORAM PUBLICADAS EM 1627 NA FORMA DE PANFLETO, EXEMPLO DE LITERATURE COLPORTAGE, DIFUNDIDA NO INÍCIO DA IDADE MODERNA. FOI ADQUIRIDFO POR PORTUGAL POR LIVREIROS INTINERANTES QUE COMERCIALIZAVAM COM O NOME DE LITERATURA DE CORDEL, POIS OS VOLUMES ERAM AMARRADOS UNS AOS OUTROS COM BARBANTES PARA SEREM VENDIDOS EM VÁRIOS LUGARES.

Os senhores proprietários, turcos, mouros, paxás e reis da Costa da Berbéria (Argel, Túnis e Trípoli) se aproveitavam dos escravos novos cristãos para práticas sexuais, na maioria das vezes forçados a isso, sem falar do homossexualismo existente nos banhos públicos superlotados, considerados por pesquisadores e testemunhos da época (séculos XVI a XVIII) como campos de concentração, semelhantes aos nazistas e aos gulag soviéticos.

Alguns chegaram a contestar as crueldades e torturas dos senhores, como as que existiram contra os escravos africanos trazidos para as Américas (12 milhões) em mais de três séculos, mas foram comprovadas por cativos cristãos brancos.

Diferente do que ocorreu com os mercados de gente na Costa Africana, cujas memórias dos locais foram preservadas, esses banhos públicos foram destruídos entre os séculos XVIII e XIX, principalmente com a invasão francesa a Argel em 1830. Essa escravidão na Berbéria era uma represália religiosa. Os muçulmanos também foram cativos dos cristãos, sobretudo na Espanha, Portugal e Itália durante as guerras dos dois impérios (cristãos e muçulmanos).

O historiador e pesquisador Robert Davis, que escreveu a obra “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, se debruçou sobre esse tema pouco explorado e conta também as brigas internas que existiam entre católicos e não católicos. No livro, ele cita por diversas vezes testemunhas do escravo d´Aranda sobre uma intriga entre russos ortodoxos e espanhóis italianos.

“Um deles foi até o pequeno cômodo (banho público ou prisão) onde se encontravam os russos moscovitas saudando-os da seguinte forma: cães, hereges, selvagens, inimigos de Deus, o banho agora está trancado (era fechado ao entardecer), e o zelador (o feitor) mandou dizer que, se tiverem coragem de lutar, vocês deveriam sair dessa sua toca, aí veremos quem leva a melhor”.

Robert Davis ressalta que qualquer divisão secular, como língua ou política, servia de justificativa para gerar discórdia entre os escravos, tanto quanto as crenças religiosas, e há indicativos de que esses subgrupos, provenientes de culturas mais próximas, eram os que mais estavam propensos a trocar farpas entre si.

DIFICULDADES DE COMUNICAÇÃO

As brigas constantes, segundo ele, entre espanhóis, franceses, portugueses ou italianos são inícios de que esses escravos se entendiam o suficiente para trocar insultos. Entretanto, as dificuldades de comunicação entre escravos e seus senhores era uma fonte inesgotável de conflitos na Berbéria, como aconteceu com os africanos de primeira geração nas Américas.

Para desenrolar esse entrave, havia uma língua franca (pidgin), modelo para todas as outras línguas francas ao redor do mundo. A predominância era dos espanhóis do Mediterrâneo, parte da Berbéria e do italiano no leste. Essa língua (uma versão do europeu românico) tinha suas raízes nos idiomas dos marinheiros e mercadores e preencheu suas lacunas com uma série de palavras locais (árabe, turco e grego). Servia para dar ordens aos escravos.

Nas galés, no entanto, os escravos eram proibidos de falar uns com os outros em qualquer outra língua que não fosse a franca, para que seus capatazes pudessem compreender o que discutiam ou tramavam. Não era um idioma muito fácil de ser entendido, principalmente em situações tensas.

Às vezes o senhor usava termos em espanhol e o italiano para humilhar o escravo com a palavra cão (perro cane ou cani perru). Alguns termos evoluíram, como do italiano mangiar no sentido de comer, ser consumido. Outras palavras eram derivadas do árabe ou do turco.

Quanto aos banhos públicos, o pesquisador da obra, diz ser difícil quantificar a população escrava, mesmo porque alguns zeladores alugavam suas dependências a proprietários individuais de cativos, as quais serviam para armazenar a mercadoria humana quando não queriam manter esses escravos dentro de casa. Eles eram obrigados depois a reembolsar seus senhores pelos custos desses alojamentos, com a venda de água ou até roubando.

Com o declínio das galés corsárias (final do século XVIII), a relação entre escravos públicos de banhos e os privados sofreu uma queda. Em 1696, padre Lorance, vigário de Argel, observou que o número de escravos particulares excedia em muito ao de públicos confinados nos banhos.

ABANDONADOS

Os banhos privados começaram a ser abandonados a partir de 1700, inclusive o maior deles do poderoso Ali Pegelin, que por volta de 1640 mantinha cerca de 800 homens dentro de seu estabelecimento. Durante o forte declínio da escravidão na Berbéria, entre 1690 e 170, a maioria dos escravos deve ter vivido com mais conforto, nas casas de seus senhores. Porém, no transcorrer do século XVIII, o número de escravos particulares caiu e o do Estado permaneceu estável.

TORTURAS E TORMENTOS

A respeito das crueldades e torturas, alguns eram céticos. No entanto, o padre Pierre Dan conta todas as penúrias impostas aos escravos cristãos, e ele fez um catálogo dos tormentos que lhes foram infligidos pelos muçulmanos. Os editores intercalaram prosa com um conjunto de ilustrações horrendas. Muitos foram esmagados vivos, outros empalados, queimados e crucificados.

O escravo John Foss, por exemplo, dedicou um capítulo inteiro ao assunto, denominando-o de “As punições mais comuns para cativos cristãos pelas mais diferentes ofensas”. Robert destaca que tais castigos cruéis, sem motivos aparentes, tinham razão de ser, pois costumavam garantir a disciplina entre os escravos.

As surras tinham o condão de encourager les autres, como alerta aos outros para que mantivessem bom comportamento. O Estado e o Ali Pegelin chegavam a matar alguns deles. Esses tipos de violências eram também difundidos entre proprietários e feitores de escravos nas Américas. Como declarou um fazendeiro no sul dos Estados Unidos: “O medo da punição é o princípio a que deveríamos e temos de recorrer, se quisermos manter os cativos atordoados e obedientes”.

O pesquisador Stephen Clissold concluiu que os escravos da Berbéria descreviam uma vida nos banhos como uma mistura entre um campo de concentração nazista, uma prisão inglesa e um campo de trabalhos forçados soviéticos, os gulag. Os cativos eram largados à própria sorte pelos paxás. Eram vítimas de surras aleatórias, alimentação e acomodações miseráveis, roupas degradantes, além do celibato forçado.

Os públicos eram condenados pelo resto de suas vidas, não por um processo judicial, mas em razão de seu status. Quem pertencia ao Estado não era ninguém. Não contava com um senhor privado para libertá-lo ou pagar seu resgate.  O escravo João Mascarenhas dizia que estes homens nunca vão embora, já que não serão libertados.

 

 

SITUAÇÕES SEMELHANTES ENTRE A ESCRAVIDÃO NEGRA E A DOS CRISTÃOS BRANCOS

Nas duas escravidões, a africana entre os séculos XVI e XIX e a dos cristãos ou brancos na região da Berbéria (Argel, Túnis e Trípoli) nos séculos XVI ao XVIII, existiram algumas semelhanças, conforme atesta o livro “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos” do historiador e pesquisador Robert Davis.

Não se pode quantificar os cenários de degradação e sofrimento dessas escravidões que esses cativos passaram, uns nas Américas pelos países europeus, de ordem comercial, e os outros na Berbéria, praticada pelos mouros, turcos e muçulmanos, de cunho mais religioso, como represália. No entanto, ocorreram métodos parecidos na forma de tratamentos.

Assim como várias etnias africanas trazidas da África para as Américas não se entendiam e até brigavam entre si, também os cristãos andavam às turras quando se tratava de católicos romanos, ortodoxos e correntes protestantes. No cativeiro, as intrigas eram muitas, mas aconteciam momentos de se unir nas resistências.

As senzalas negreiras eram locais degradantes, abafados e superlotados, propícios às promiscuidades, e sempre fechados ao anoitecer depois de um dia cansativo de trabalho. Na Berbéria, esses “aposentos” lotados eram denominados de banhos públicos ou prisões, com praticamente as mesmas regras impostas pelos feitores, capatazes ou responsáveis por guardar os escravos. As portas eram trancadas no final do dia para não haver fugas.

Robert Davis faz esses relatos baseados em testemunhos (D´Aranda, João Mascarenhas, Pierre Dan e padres) que foram vítimas dessa escravidão, além de pesquisadores no assunto. Ele fala dos escravos dos banhos públicos, aqueles desafortunados que eram comprados pelos governantes e depois remetidos à vida nos dormitórios/prisões, os quais os cativos chamavam de bains, baños ou bagni.

Segundo Davis, há indícios que essas mansões sombrias de horror começaram em Constantinopla onde antigas casas de banhos se tornaram em confinamentos de escravos em 1500. Na Berbéria, elas foram construídas para abrigar cativos dos governantes e particulares.

De acordo com as pesquisas, o primeiro banho público, o Bagno Beyliç, surgiu em Argel, em 1553, durante o período de Barbarosa, com capacidade para dois mil cativos. Esses prédios se multiplicaram com o tempo, passando a seis em Argel, nove em Túnis e um em Trípoli. Nos anos de 1660, Argel já possuía oito, quinze em Túnis e cinco em Trípoli.

O interessante é que os nomes desses banhos públicos eram sempre de santos, como St. Roche, Lorenzo, São Miguel, Santo Antônio, Santa Luzia, São Sebastião, São Leonardo, Trindade, Santa Catarina, São Francisco, Santa Cruz e tantos outros.

Em Argel, por exemplo, o banho público St. Roche, pertencia ao senhor Ali Pegelin, o mais poderoso e rico de toda região. “É tentador pensar que esse sistema alternativo de nomenclaturas agia como forma de resistência planejada por parte dos escravos e dos abolicionistas cristãos, contra o domínio e autoridade islâmica vigente…”

Muitos desses nomes eram deturpados e escritos de maneira incorreta. O do Paxá era chamado de Banho do Estado, ou do rei. Os trinitários e mercedários, responsáveis pelas capelas (as fazendas dos senhores das Américas também tinham suas capelas) disputavam entre si e com os missionários da Congregação de Propaganda Fide.

De acordo com o autor da obra, esses tipos de desavenças entre os ocupantes dos banhos, principalmente quando envolviam os papassi ou sacerdotes, eram motivos de graça para os turcos. Os senhores gostavam de incitar as discórdias entre seus escravos, com intuito de enfraquecer a resistência.

“O principal ponto de tensão, ao menos nos séculos XVI e XVII, era a religião, “embora isso possa ser apenas parte do exagero entre padres e missionários católicos que representavam a menor fonte de estudos”. Em Argel e Túnis, os católicos eram maioria nos banhos escravos, ao passo que as cidades marroquinas teriam mais britânicos e holandeses. Trípoli era povoada por cativos gregos, segundo alguns relatos.

Outra coisa abordada pelo historiador diz respeito aos dialetos africanos, enquanto na Berbéria se usava a língua franca (substantivos e verbos) como meio de comunicação entre os senhores proprietários e os cativos, para emitir ordens.

Além das capelas, os banhos também contavam com as tabernas onde os bêbados perturbavam os atos religiosos com palavrões e xingamentos. Como esses dormitórios/prisões, somente para homens, eram superlotados (todos dormiam amontoados) havia muita promiscuidade.

Outro traço era o homossexualismo praticado entre escravos que, por outro lado, sofriam assédio sexual por parte dos seus proprietários, reis, paxás e governantes, tendo como maiores alvos escravos novos e os jovens garotos de nove a 15 anos. Eles eram bem tratados nos palácios e induzidos a se converter ao islamismo. Na verdade, não havia uma repressão velada quanto ao ajuntamento homossexual.

AINDA AS GALÉS E AS VESTIMENTAS DOS ESCRAVOS CRISTÃOS NA BERBÉRIA

Comentamos aqui nos outros capítulos do livro “Escravos Cristãos, Senhores muçulmanos”, do autor Robert Davis, que aqueles capturados pelos mouros da região da Berbéria (Túnis, Trípoli e Argel) nos navios e por via terrestre e que não possuíam talentos, nem sinais de riqueza e posição social ao serem colocados à venda, iam servir nas galés por meses em alto mar. Eram acorrentados, espancados e trabalhavam sob chuva e sol. Muitos não resistiam e morriam.

“É uma aflição sem tamanho ver os pobres escravos cristãos ou brancos, obrigados a remar sob constantes e violentas chicotadas e pauladas… De todas as agruras esses pobres cativos são forçados a obedecer, a pior, sem sobra de dúvidas, é aquela que sofrem nas galés dos turcos berberes” – lamentou o padre Pierre Dan. Geralmente eram camponeses, pescadores, soldados rasos e marujos comuns. Os nobres de estirpe ficavam longe das galés porque eram valiosas propriedades para o resgate.

Segundo Robert, por volta da metade do século XVI, tanto as potências cristãs quanto o Império Turco eram capazes de concentrar imensas frotas com centenas de galés e galeotas, cada uma composta de 150 a 300 remadores. Essa força de trabalho deve ter atingido seu ápice na época da Batalha de Lepanto, em 1571, quando por volta de 80 mil remadores foram mandados para o fronte uns contra os outros, sendo a maioria escravos. Não eram somente muçulmanos.

Nas galés da Espanha, França, Itália e Malta haviam milhares de mouros, turcos, prisioneiros católicos e protestantes condenados aos remos. Na segunda metade dos anos 1560, a escravidão das galés era mais uma instituição islâmica do que cristã. Os berberes eram melhores em capturar escravos. A maior demanda por escravos de galés ocorreu entre o fim das décadas de 1580 e 1640. Os reis de Argel, Túnis e Trípoli precisavam de 10 a 15 mil remadores.

VESTIMENTAS

No capítulo “Vida de Escravo”, o historiador da obra cita o testemunho do escravo William Okeley. Aliás, sua pesquisa está recheada de testemunhas. Robert destaca que Okeley e seus companheiros escravos compunham um quarto da população de Argel, uma cidade baseada na pirataria corsária e no mercado escravista. Em Túnis e Trípoli a proporção era menor, entre 10 a 20%.

No topo dos escravos estavam os turcos e renegados cristãos. De acordo com Robert Davis, esses homens reinavam sobre os nativos mouros e mouriscos, os quais, por sua vez, desfrutavam de status maior do que a sempre numerosa população judia nas capitais das regências. Os escravos ficavam nas camadas inferiores e os judeus ainda num patamar mais baixo.

Na Berbéria, os homens se diferenciavam nas roupas, cortes de cabelos e no direito de usar armas. Os turcos usam turbantes (um tipo de boné vermelho). Os mouros vestes mais sombrias, um longo albornoz com capuz, sendo de cor branca no caso dos mais abastados.

Os escravos cristãos não tinham nenhum traje distintivo e vestiam o que lhes eram fornecidos pelos seus senhores. No caso dos escravos domésticos, como na Europa, trajavam uniformes. Nas ruas usavam roupas condizentes com o nível social de seus proprietários. Portar o turbante era uma expressão de conversão ao islamismo e os escravos cristãos, na sua maioria, não aceitavam.

As garotas jovens récem-capturadas podiam ter a cabeça raspada, para torná-las turcas. As mulheres mais velhas podiam ser forçadas a vestir as roupas turcas devido ao hábito das regências. No entanto, o autor da obra conta um caso de uma mulher que não aceitou mudar sua fé. Por isso, sua dona mandou que ela levasse trezentas chibatadas. Ao continuar firma em seu propósito, a escrava foi despida e a vestira à moda turca.

Segundo Robert, quando os corsários berberes estavam prestes a capturar um navio, era comum os passageiros trocarem suas vestes por outras que ajudassem a esconder suas origens de modo a confundir os captores quanto ao valor potencial do resgate. Outros mantinham as mesmas vestimentas por orgulho de seu posto, como os membros da Igreja, nobres e comandantes militares. Eles iam para alojamentos dos consulados com conforto.

Diz o autor que esses escravos de alto escalão eram deixados ociosos no cativeiro, certamente por terem pago uma taxa, um suborno por fora. Ficavam livres para se locomover na cidade, apenas com uma tornozeleira de ferro. As mulheres da elite recebiam mais ou menos o mesmo tratamento, mas mantidas dentro de casa, longe das vistas do público. Alguns usavam suas roupas europeias.

Muitos eram levados para os chamados banhos públicos (badistão) ou prisões, onde se transformavam em figuras imundas com trapos e desmazelados. Os turcos e mouros chamavam esses récem-chegados de selvagens. Quando eram vendidos recebiam um traje distintivo de escravos.

Um pesquisador observou que, na década de 1620, os chefes dos banhos forneciam aos escravos nada além de um albornoz com capuz, um par de calças de lona por ano. Meio século mais tarde, o frei Francisco San Lorenzo referiu-se a roupas semelhantes, como uma camisa e um par de calças de tecido cru. Os que não conseguiam conservar seus sapatos ficam descalços.

“Pelo visto, nenhum escravo teve direito a receber uma muda de roupas até os anos 1720”. Um estudioso no assunto descreveu que, quando um escravo é levado para Argel, recebe uma camisa grosseira, um carpete de tecido rústico, um pequeno cafetã, um gorro vermelho e um cobertor de lá.

“Tudo leva a crer, na melhor das hipóteses, que nos anos 1790, as roupas destinadas aos escravos na Berbéria ficam aquém até mesmo da indumentária dada pelos senhores no sul dos Estados Unidos, como dois trajes completos de algodão para a primavera e verão e dois de lá para o inverno, quatro pares de sapatos e três chapéus”.

“A disparidade entre a vestimenta dos escravos negros no início do século XIX no sul dos Estados Unidos e dos cativos no Magreb ainda é surpreendente”. O pesquisador Eugene Genovese, com base num tal de senhor Robert Collins, ressaltou que “no sul dos EUA, até a trouxa mais generosa restringia os escravos a lavar e trocar de roupas no máximo uma vez por semana. Isso era inimaginável no caso dos escravos da Berbéria, confinados nos banhos públicos”.

Collins afirmou que no geral era necessário pagar a água e poucos tinham condições para isso. Só o necessário para beber. Por isso, a maioria dos membros da classe de cativos atraia todos os olhares para aquele espetáculo lamentável de cabelos e barbas cortados com uma adega. “Seus rostos eram machucados e cobertos de lama e poeira. Eles perambulavam pela cidade com aparência de mendigos, com as roupas todas cobertas de vermes”.

Os escravos de Túnis e Trípoli costumavam mancar em razão das correntes e grilhões pesando cerca de 10 a 15 quilos, ou com um gambetto, como os italianos chamavam (grilheta de ferro). Dizem que os escravos das galés eram marcados com uma cruz na sola dos pés.

As condições de vida variavam tanto quanto a quantidade de roupas, dependendo se estivessem hospedados nas casas de seus senhores ou fossem cativos públicos, isto é, dos governantes, designados ao trabalho braçal nas galés, nas pedreiras ou arredores das cidades.  Quem se dava melhor eram aqueles cujos senhores os alugavam para os missionários cristãos e cônsules na cidade. Esses tinham uma vida praticamente idêntica aos serviçais da Europa

OS TORMENTOS DOS ESCRAVOS CRISTÃOS NAS GALÉS E O MEDO DE UM NOVO DONO

O pior sofrimento estava reservado para os escravos brancos ou cristãos que eram capturados pelos mouros e muçulmanos da região da Berbéria (Túnis, Argel e Trípoli) e depois levados para remar nas galés por cinco ou seis semanas em alto mar, com a finalidade de saquear mais navios.

Eles eram acorrentados nos bancos de madeira, com grilhões e trancas nos pés, sujeitos a chuva e ao sol. As rações eram limitadas, do tipo chamada de biscoitos de marinheiros (tinham que ter bons dentes para mastiga-los). Muitos morriam de exaustão enquanto eram espancados com chibatadas e outros castigos. Os que ficam em terra temiam ser revendidos para um novo senhor e privados de possíveis resgates.

No capítulo III do livro “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, o autor Robert Davis fala sobre o “Trabalho Escravo” onde descreve o relato de diversos cativos que foram vítimas da escravidão branca entre os séculos XVI e final do XVIII, fazendo um paralelo com o que também passaram os negros africanos levados para as Américas.

Para começar, ele cita o português João Mascarenhas em um trecho do seu testemunho onde diz que “não há pior momento na vida do que aquele em que o escravo fica na expectativa para descobrir quem será o seu dono”. Segundo ele, se seu destino for cair nas mãos “de um senhor desumano, nada de bom poderá ser vislumbrado em seu futuro e deverá considerar-se o mais infeliz entre seus iguais: Não há pior inferno nesta vida”.

Mascarenhas assinala que o escravo poderá ser revendido, sobrecarregá-lo com trabalho, aprisioná-lo, mutilá-lo, matá-lo, sem ninguém poder interferir.  Outro cativo William Okeley destaca que “se um patrão matasse seu cativo, pelo que pude constatar, enfrentaria as mesmas consequências do que se tivesse matado seu cavalo”.

De acordo com historiadores, todos os novos cativos, assim que desembarcavam, eram separados em duas classes bastante distintas: os escravos para resgaste e aqueles para o trabalho. “Tais compradores, conforme analistas, eram na maioria das vezes “mouros” ou “tagarins” (antigos moradores muçulmanos da Península Ibérica que foram expulsos ou fugiram de lá) e renegados europeus”.

Um senhor proprietário de Argel declarou que comprou seus escravos para conseguir algum lucro com eles. Pelo pouco que se sabe do preço de venda inicial dos escravos no badistão (mercado), a expectativa de ganho girava em torno de 10 a 12% ao ano por cada cativo.

Com base em pesquisadores, o autor da obra ressalta que os compradores que “só adquiriam escravos para serví-los, não para o tráfico,” eram, na maior parte das vezes, turcos ou janízaros (gregos ou ortodoxos) renegados e alguns agentes do conselho governante local, chamados de divan.

Quando visavam mais o trabalho do que o resgate, esses proprietários estipulavam uma gama maior de tarefas aos seus vassalos do que os adquirentes para revenda. Num comparativo com a escravidão negra destinada às Américas, a principal demanda era para trabalhadores rurais com fins comerciais nas lavouras de açúcar, arroz, algodão e tabaco. Na Berbéria, as tarefas eram voltadas para homens livres que não estavam mais dispostos a realizar.

Um senhor de Argel, chamado Ali Pegelin, chegou a possuir vinte mulheres escravas, cristãs, que ficavam a serviço da sua esposa. A maior parte dos serviços eram concentrados mais nas cidades em construções diversas, carregamento de pedras, mordomos e trabalhos domésticos em geral.

No decorrer do século XVII, quando emissários de várias nações cristãs e de Roma começaram a se fixar em consulados ou missões nas capitais das regências berberes, começaram a surgir vagas para os escravos, como criados contratados desses europeus. Algumas dessas atividades eram semelhantes aos trabalhos prestados por empregados domésticos na Europa, como pegar água ao amanhecer, limpar banheiros, buscar pão quente, lavar roupas e cuidar das crianças.

No entanto, a maioria era usada para extração de pedras, construção civil, corte de árvores, colheitas e remar nas galés. “Aliás, foram as galés que se tornaram a epítome da escravidão dos europeus brancos na Berbéria, assim como foi o corte de cana para os africanos que trabalhavam nas Américas”.

Como dizia Mascarenhas, se o sujeito não foi um galeotto, não podia dizer que foi um escravo…” “É uma aflição sem tamanho ver os pobres escravos obrigados a remar sob constantes e violentas chicotadas e pauladas… De todas as agruras que esses pobres cativos são forçados a padecer, a pior, sem sombra de dúvidas, é aquela que sofrem nas galés dos turcos berberes.”

A maioria era levada para as galés porque não tinha outros talentos ou nenhuma habilidade especial, nem sinais claros de riqueza para a venda. Geralmente eram camponeses, pescadores, soldados rasos ou marujos comuns.

AS CAPTURAS DE CRISTÃOS BRANCOS EM MAR RENDIAM MAIS QUE AS TERRESTRES

Os berberes muçulmanos de Túnis, Argel e Trípoli tiravam mais proveito em termos de espólios do que de escravos quando invadiam navios mercantes em alto mar na região do Mediterrâneo. De um modo geral eram nobres e bispos da Igreja Católica que transportavam bens de valor, principalmente joias preciosas. Em terra, os escravos eram em sua maior parte camponeses e pescadores, sem muito valor de resgates.

Quando uma embarcação estava prestes a ser atacada geralmente os passageiros mais notáveis procuravam se disfarçar com roupas mais simples e até com aventais de marujos, mas muitos terminavam confessando suas identidades por intermédio de espancamentos e torturas. Outros jogavam seus pertences no mar e fugiam em barcos. Porém, muitos eram pegos de surpresa e apanhados como escravos.

Carpinteiros, oficiais da marinha e armadores eram valiosos no mercado de escravos para os serviços dos reis corsários e sultões, tanto que nem eram vendidos pelo que valorizavam. Outros eram levados para o mercado denominado de “badistão” para serem comercializados ou resgatados pelos seus reis. Cada traficante tinha direito a uma cota das apreensões de acordo com a função e o financiamento investido na incursão.

Havia algumas semelhanças nos métodos adotados entre a escravidão africana no Atlântico e a muçulmana contra os cristãos, mas nada que se iguale em dimensão dos empreendimentos e aos sofrimentos impostos aos africanos. Haviam correntes, trancas e até chibatadas, mas muitos brancos eram até bem tratados e melhor alimentados quando tinham boa serventia no mercado.

Essas descrições da escravidão branca entre os séculos XVI até final do século XVIII estão no livro “Escravos Cristão, Senhores Muçulmanos”, do historiador Robert C. Davis, quando ele deixa claro que a escravidão branca ou de cristãos se tratava mais de uma represália religiosa sofrida pelos mouros quando foram perseguidos pelas Cruzadas e expulsos da Península Ibérica. Os países mais atingidos foram a Espanha, França Itália e Portugal.

Na Itália, por exemplo, por volta de 1566, os corsários acabaram se apossando de uma imensa faixa litorânea que eles conquistaram sem a menor resistência. Naquela época, as autoridades recomendavam a evacuação da população. Muitas cidades e vilarejos eram abandonados.

Mais tarde, quando os corsários piratas voltavam para novos saques encontravam largos territórios litorâneos desabitados. De acordo com testemunhas, foi assim que eles assolaram e deixaram em ruínas a Sardenha, a Córsega, Sicília, a Calábria, as costas de Nápoles, Roma, Gênova e litorais da Espanha.

A estudiosa Mirella Mafrici, por exemplo, forneceu vasto material para fundamentar as alegações feitas por observadores sobre o despovoamento levado a cabo por essas incursões escravistas por terra. Diz o autor ser mais provável que as mulheres de haréns e casas de famílias na Berbéria tenham vindo de vilarejos costeiros do que de navios capturados.

Quando os invasores levavam um grande grupo de mulheres reprodutivas, isso se tornava um duro golpe para as comunidades que já estavam em crise demográfica, dificultando sua recuperação populacional. Diversas cidades de médio porte ficavam abarrotadas de refugiados. Isso ainda era melhor para os corsários e reis atacarem porque levavam uma maior quantidade de escravos.

No entanto, pelos meados do século XVII, esses locais foram mais reforçados e as investidas dos muçulmanos se tornaram mais raras. As incursões ficaram mais arriscadas. Quando as cidades de médio porte passaram a construir muralhas e torres de proteção, os corsários passaram a focar em presas mais frágeis, como habitações isoladas, monastérios e até indivíduos sozinhos. Eles procuravam disfarçar suas embarcações como se fossem de cristãos. Os remadores eram amordaçados para não entregar o jogo.

A COMERCIALIZAÇÃO DOS ESCRAVOS CRISTÃOS, RESGATES E A CONVERSÃO AO ISLÃ

As investidas dos muçulmanos da Berbéria (Argel, Túnis e Tripoli) na captura de escravos brancos ou cristãos na costa da Espanha e da Itália, por mar e por terra, tiveram seus picos durante o século XVI e uma queda a partir dos séculos seguintes porque as províncias costeiras se estruturaram melhor para combater os corsários reis, sem contar a queda populacional dessas regiões.

Muitos cristãos escravizados se convertiam ao islã, livremente ou forçados pelos turcos muçulmanos. Outros, por vingança contra os nobres da terra retornavam como renegados traidores se integrando o grupo de captores. Os corsários em terra, às vezes, optavam em pedir os regates nos próprios locais das apreensões. Como a maioria não tinha dinheiro para pagar, terminava recorrendo a intermediários que se apossavam dos bens dos capturados.

Esses relatos estão no livro “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, do historiador e escritor Robert Davis, especialmente no capítulo “Captura e Comercialização dos Escravos” onde ele cita que nos tempos do cônsul inglês em Trípoli, Thomas Baker, o rapto de escravos no Mediterrâneo era de fato algo como uma “vocação legítima”.

“Ao longo de todo século anterior (XVI), essa foi uma prática desempenhada em larga escala por cristãos e muçulmanos (hostilidade imperial entre os Habsburgos e Otomanos), para quem a captura de prisioneiros escravos em campo de batalha era a recompensa tradicional em razão da vitória nos conflitos inter-religiosos armados”.

Os confrontos armados entre os turcos e seus aliados e as forças cristãs da Espanha, Itália e Portugal levaram milhares de cativos para os mercados de escravos em Fez, Argel, Constantinopla, Malta, Livorno, Lisboa e Marselha. Por parte turca, segundo ele, a prática de escravização de cristãos foi elevada a uma espécie de política estatal, principalmente entre os anos 1530 e 1570, quando Kheir-ed-din Barbarosa e Dragut Reis foram nomeados pelo sultão de Constantinopla e os vice-reis da Berbéria como almirantes de suas frotas.

Eles podiam atacar o Mediterrâneo quando bem quisessem, bloqueando portos, como Gênova e Nápolis, ameaçando Roma e saqueando dezenas de cidades litorâneas de médio porte na Espanha e na Itália. As incursões eram praticamente anuais, como a do Hassan Pasha, em 1582, um renegado Veneziano, paxá de Argel, e comandante de 22 galés e galeotas com pelo menos 1500 janízaros soldados.

De acordo com Robert, “os traficantes de escravos do Atlântico se especializaram em transportar e vender cativos, mas raramente se envolviam em outros tipos de comércio ou no trabalho sujo e potencialmente perigoso de capturar sua própria mercadoria para despachar na Passagem do Meio”.  Em sua visão, essa atividade era deixada para Estados Africanos rivais ávidos para vender negros cativos, capturados em batalhas ou incursões.

No entanto, não era isso que os historiadores narravam. Os capitães de navios e armadores de escravos africanos também se envolviam em outras negociatas arriscadas na venda de produtos clandestinos e até armas.  Quanto aos berberes, conforme o autor do livro, nunca conseguiram criar uma logística tão diversificada de abastecimento ou distribuição.

Na questão da escravidão branca, existia um clima de conflito imperial e jihad que predominou na Bacia do Mediterrâneo ao longo do século XVI, bem como pela liberdade individual de empreender durante o século XVII. Quando o comércio era frutífero, não era difícil atrair uma boa tripulação. Muitos homens entravam na empreitada até mesmo sem salário.

Uma viagem bem-sucedida que trazia navios, bens e escravos podia transformar todas as partes envolvidas em pessoas ricas, até mesmo os escravos que recebiam uma quantia suficiente para depois comprar suas liberdades.

O historiador conta que a grande maioria dos cristãos escravizados na Berbéria era apanhada quando os corsários tomavam os navios em que eles viajavam ou raptados durante as incursões nas ilhas mediterrâneas ou nas costas da Espanha, Itália e na Grécia.

No século XVI os ataques terrestres eram mais frequentes e deixavam os povoados e cidades em pânico. Muitos fugiam para as montanhas deixando bens para trás. Províncias ficaram despovoadas por muitos anos. Milhares de aldeões começaram um grande êxodo para as grandes cidades, como Nápoles e Palermo. Muitas vezes, as investidas litorâneas costumavam render mais do que os ataques às embarcações. As defesas costeiras eram pouco guarnecidas.

 

 

 

“ESCRAVOS CRISTÃOS, SENHORES MUÇULMANOS”

“Escravidão Branca no Mediterrâneo, na Costa da Berbéria e na Itália, de 1500 a 1800”.

“Qualquer um que diga hoje que a escravidão branca chegou a proporções tão significativas quanto às da escravidão negra será invariavelmente tachado de supremacista branco e revisionista histórico”.

O comentário é da editora Vide Editorial, responsável pela publicação de “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, uma obra de autoria do historiador e professor emérito da Ohio State University, PhD em história do Mediterrâneo e da Itália, Robert C. Davis.

Na introdução do seu livro, Robert procura esclarecer que a escravidão branca ou dos cristãos, paralela à escravidão africana, foi uma forma de vingança dos muçulmanos em resposta às perseguições que os islâmicos sofreram durante as Cruzadas (séculos XI e XII) e a expulsão dos mouros pela Espanha (final do século XV).

Essa escravidão se deu na região da Berbéria (Túnis, Argel e Trípoli), praticada por corsários e piratas do mar que saqueavam impiedosamente embarcações da Inglaterra, Alemanha, Espanha, Irlanda, França, Portugal e da Itália. Muitas vezes eles adentravam o continente e os prisioneiros se tornavam escravos nas galés, nas lavouras, na mineração e até em fábricas.

Segundo o autor, “ao expulsar os mouros do sul da Espanha, Ferdinando e Isabel conceberam um inimigo implacável para seu reino ressurgente, e que veio a se estabelecer bem perto deles, em Marrocos, Argélia e, por fim, ao longo de todo o Magreb”.

O historiador também afirma que “na Berbéria, aqueles que caçavam e comercializavam escravos certamente esperavam obter lucro, mas, ao traficar cristãos, também havia sempre um elemento de vingança, quase de jihad, pelas injustiças de 1492, pelos séculos de violência nas Cruzadas que as precederam e pelas contínuas batalhas entre cristãos e muçulmanos que continuaram a assolar o mundo mediterrâneo até os tempos modernos”.

O próprio autor da obra reconhece que os números sobre a escravidão branca ou de cristãos, que ocorreu com maior intensidade entre os séculos XVI e XVII, são desencontrados por falta de notificações mais precisas. As estatísticas são mais baseadas nos relatos dos cônsules dos diversos país vítimas e de pessoas que sofreram esse tipo de servidão.

Robert destaca que até mesmo os ingleses, apesar de distantes da Berbéria, e eles próprios já figurando entre os captores de escravos mais agressivos nos anos 1630, foram escravizados por corsários muçulmanos operando a partir de Túnis, Argel e Marrocos.

De acordo com ele, os piratas de Argel e Salé podem ter escravizados cerca de mil britânicos por ano, praticamente o mesmo número de africanos cativos. Diz que, por volta de 1640, mais de três mil foram escravizados só em Argel e cerca de 1500 em Túnis.

“Foi dito que os argelinos tomaram, ao menos, 353 navios britânicos entre 1672 e 1682 – o que representaria que eles ainda agrilhoavam entre 290 e 430 novos escravos britânicos todos os anos”.

O historiador assinala ainda que os corsários berberes foram uma ameaça muito mais expressiva àquelas localidades mais próximas de seus litorais, como os povos flamengos, franceses, espanhóis, portugueses e italianos. Tudo isso ocorria, segundo ele, ao mesmo tempo em que acontecia o comércio de escravos africanos.

O escritor descreve, através de outro pesquisador no assunto, que o Mediterrâneo era “um mar abarrotado de piratas selvagens” e que “o papel perverso desempenhado pelos piratas muçulmanos em geral, e pelos corsários da Berbéria em particular, foi muito exagerado”.

Em seu livro, Robert ressalta que relatórios diplomáticos, jornais da época e o simples boca a boca contavam histórias sobre cristãos sendo capturados às centenas e milhares em alto mar ou durante surtidas litorâneas. Diziam que eles eram acorrentados e submetidos a uma morte em vida de tanto trabalhar em Marrocos, Argel, Túnis e Trípoli.

Fontes contemporâneas, conforme dito por ele, entre novembro de 1593 e agosto de 1594 os tunisianos trouxeram cerca de 28 espólios com 1.722 prisioneiros. Entre 1628 e 1634, os argelinos capturaram, só dos franceses, 80 navios mercantes, levando 986 cativos. Dos ingleses tomaram 131 navios e embarcações entre 1628 e 164, totalizando 2.555 cativos. Os viajantes de Trípoli tomaram 75 navios cristãos com 1.085 prisioneiros entre 1677 e 1685.

A INDENIZAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS

Legítimo, ilegítimo e imoral foram as indenizações concedidas pela Inglaterra e a França aos colonos que escravizaram os negros africanos por toda vida, para não dizer irônico e incoerente. Os cativos que deveriam ser ressarcidos.

Esse debate foi colocado pelo escritor e historiador, Marcel Dorigny, em seu livro Abolições da Escravatura no Brasil e no Mundo”, no capítulo “A Questão das Indenizações”.

Uns colocavam como argumento que a escravidão foi institucionalizada pelo Estado e, portanto, o cativo era uma propriedade legítima. Outros contestavam com base na Declaração dos Direitos Humanos, de 1789, onde todos eram iguais por direito, sem contar a Lei de Deus.

“A propriedade de um homem sobre o outro era sempre uma violência ilegítima”. O deputado francês Condorcet levantou esta questão desde 1781 com base no iluminismo do final do século XVIII.

Ele afirmava que a destruição da escravidão não prejudicaria nem o comércio nem a riqueza de cada nação, já que não resultaria disso nenhuma diminuição na cultura.

Segundo o autor da obra, mesmo sendo legal, a legislação da escravidão é ilegítima, pois se opõe radicalmente às leis da natureza. Em 1835, Cyrille Bissette, invertia o raciocínio dos senhores: Como o escravo nunca é uma propriedade legítima, a abolição não pode ser considerada como atentado à propriedade”…

Seria imoral aquele que possuía ilegitimamente um homem – argumenta Marcel. No entanto, em 1791, o deputado Louis-Marthe lembra que os armadores e os colonos investiram na escravidão sob a proteção da lei e que, por conseguinte, o Estado não pode expoliá-los: Assim, a propriedade sobre os escravos é um direito inviolável e sagrado”…

Os defensores dos senhores pressionavam pelo reembolso, tanto que no artigo 5 do decreto de 27 de abril de 1848, que abole a escravidão nas colônias francesas, a Assembleia Nacional decidirá o valor do pagamento que deverá ser concedido aos colonos.

Nas colônias francesas, a média de reembolso foi de 40%, em Porto Rico, de 100%, nas colônias britânicas e holandesas, de 50%, e de 20% nas colônias dinamarquesas. Lembramos, porém, que a primeira abolição francesa pelo decreto da Convenção Nacional, de 4 de fevereiro de 1794, não previa nenhuma indenização.

O caso de São Domingos (Haiti) foi atípico porque a abolição foi abolida em 1793-1804 por uma insurreição e nunca foi reestabelecida. Diferente das outras colônias de escravos.

Acontece que a França exigiu 90 milhões de francos para reconhecer a independência do Haiti 25 anos depois. Esse dinheiro foi pago pelos novos proprietários dos lotes distribuídos através de um tributo do café imposto pelo novo governo. Foi a exportação do café produzido por eles que indenizou os ex-colonos.

No Brasil (a abolição se deu em 13 de maio de 1888, a última do mundo), os senhores do café tentaram emplacar a indenização com ameaças de processos na justiça, mas o ministro Ruy Barbosa mandou queimar uma série de documento, de acordo com historiadores, para evitar esse reembolso injusto.

 

A LUTA PELA INDEPENDÊNCIA E A ABOLIÇÃO NA “PÉROLA DAS ANTILHAS”

Os negros cativos de São Domingos (hoje Haiti – “Pérola das Antilhas”) conseguiram a abolição da escravatura em 29 de agosto de 1793, mas a luta só foi totalmente consolidada com a independência, decretada em 1º de janeiro de 1804. Era a segunda independência nas Américas, após a dos Estados Unidos, em 1783.

Quem conta toda essa história é o escritor Marcel Dorigny em seu livro “As Abolições da Escravatura no Brasil e no Mundo”, no capítulo “A Primeira Abolição da Escravatura (1789-1804). Em “o fracasso da abolição do tráfico” (1789-1790), ele narra que a ofensiva contra o comércio negreiro foi inaugurada pelos ingleses através de uma moção parlamentar entregue a William Wilberforce, em maio de 1788.

No entanto, um lobbie ligado às colônias e aos armadores se mobilizaram contra a proposta com 14 mil assinaturas recolhidas em Liverpool. O projeto foi rejeitado. Do outro lado, os fundadores da Sociedade dos Amigos do Negros, de Paris, acompanharam os debates e seguiram a escola inglesa numa força conjunta pela abolição do tráfico.

Os dirigentes da Sociedade, liderados por Condorcet, lançaram em todo país francês uma vasta campanha contra o tráfico, mas não diretamente contra a escravidão em si. Nessa linha, um parlamentar inglês abriu a discussão no sentido do governo reduzir as comissões pagas para estimular o tráfico negreiro.

No início de 1789 o foco das proposições era a abolição do tráfico, mas, por detrás disso, questionava-se a abolição da escravatura. Da Inglaterra, o avanço voltou-se para Paris a partir da Declaração dos Direitos do Homem, votada em 26 de outubro de 1789, cujo artigo primeiro dizia que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”.

Mesmo assim, segundo Marcel, a lei colocava de fora a escravidão e o tráfico. Nesse contexto, a Sociedade Amigos dos Negros confiou ao parlamentar Mirabeau a missão de preparar um discurso contra o tráfico negreiro com o fim de arrancar uma lei de abolição de todo comércio de seres humanos. O trabalho mobilizou toda uma equipe de políticos, como Étienne Dumont, Étienne Clavière, Salomon Reybaz e o inglês Thomas Clarkson.

Com objetivo de sensibilizar a opinião pública, Mirabeau recorreu a fortes ilustrações de mortes e castigos impostos aos negros, como as máquinas de abrir a boca dos cativos para alimentá-los à força. Na verdade, o discurso não chegou a ser proferido, mais uma vez por causa dos movimentos em favor das colônias e dos armadores de navios.

O famoso discurso só foi lançado em 22 de março de 1790 diante da Sociedade dos Amigos dos Negros, só que não houve repercussão devido ao boicote dos conservadores. O assunto deixou de existir nas assembleias revolucionárias até que o deputado Grégoire retomou a questão, em 27 de julho de 1793. Uma convenção resolveu, então, acabar com o subsídio da República concedido ao tráfico.

Os “livres de cor”, mestiços e negros das colônias passaram a reivindicar os direitos civis e cívicos do artigo primeiro da Declaração dos Direitos Humanos. Os colonos reagiram e chegaram a excluir essa categoria de libertos das assembleias, criadas pelo decreto de 28 de março de 1790.

Diante disso, os “livres de cor” de São Domingos resolveram, no final de 1790, pegar em armas, seguindo o exemplo dos parisienses que tomaram a Bastilha. Mal organizados, os revoltosos foram logo esmagados e seus principais líderes Vicent Ogé e Jean-Baptiste Chavannes condenados ao apedrejamento em praça pública, em 25 de fevereiro de 1791. Os outros foram enforcados e sentenciados às galés.

Apesar do fracasso, as ideias de liberdade não deixaram de existir e tiveram um fértil terreno na cisão dos adversários que estavam em guerra, como a Inglaterra, França, Holanda e Espanha, que aliviaram a repressão. Outra rebelião começou em 23 de agosto de 1791, perto de Cap-Français, a partir de uma cerimônia noturna mágico-religiosa, de inspiração vudu e mesclada a ritos cristãos, no “bosque Caiman”.

Desse ato, 54 escravos prometeram jurar por liberdade. Boukman, letrado, vindo da Jamaica, foi o mestre da cerimônia. Logo foi morto, mas continua como um mito no Haiti. A Assembleia da França enviou tropas para combater os rebeldes, mas depois, como manobra, decidiu criar um decreto para aproximar brancos e “livres de cor”, concedendo a estes direitos políticos.

Dominada pelos partidários de Brissot, a Assembleia enviou três comissários a São Domingos (Léger-Felicité Sonthonax, Étienne Polverel e Ailhaud), para fazerem valer o decreto. Eles chegaram em 1792 em meio a uma guerra entre espanhóis e ingleses. A comissão fracassou e tiveram como saída a abolição, em 29 de agosto de 1793.

Abolida a escravidão, três novos deputados representando o povo de São Domingos foram eleitos e enviados a Paris, sendo eles Louis-Pierre Dufay (branco), Jean-Baptiste Mills (mestiço) e Jean-Baptiste Belley (negro). Eles chegaram em Paris em 1794 e foram detidos, mas soltos depois quando relataram tudo o que estava ocorrendo na colônia.

A convenção votou pela abolição da escravatura em Haiti, estendida às outras colônias, mas na prática a escravidão continuou em Guadalupe e na Guiana, conquistada tempos depois, em dezembro de 1794. Pela lei de 1º de janeiro de 1798, as colônias foram transformadas em departamentos.

Após o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte, uma nova Constituição ignorou a integração das colônias, abrindo caminho para o restabelecimento da escravidão, principalmente com o fim da guerra com a Inglaterra (Tratado de Londres – 1801 e de Amiens – 1802). Em Guadalupe houve uma forte repressão e a escravidão voltou em 7 de julho de 1802. Em São Domingos, o enviado de Napoleão, seu cunhado Emmanuel Leclerc, se deu mal.

O exército indígena, liderado pelos generais Toussaint Louverture,  Jean- Jacques Dessalines e Jérôme Péttion conseguiu vencer a reconquista militar da colônia. Apesar da captura de Louverture, morto depois em Paris, as tropas francesas, comandadas por Rochambeau, capitularam em 18 de novembro de 1803.

A escravidão não foi restabelecida e São Domingos se tornou República do Haiti, em 1º de janeiro de 1804. “Assim, a Revolução Francesa nas colônias foi marcada pela revolta vitoriosa dos escravos de São Domingos, que lhe impuseram uma abolição radical da escravidão, estendida às outras colônias…” – conforme assinalou o escritor e historiador Marcel Dorigny.

 

 





WebtivaHOSTING // webtiva.com . Webdesign da Bahia