:: 16/nov/2023 . 20:30
HISTÓRIAS DA BAHIA GUARDADAS NO MOCÓ (2)
(Algumas notas de Hildegardes Vianna no final do livro “A Bahia já foi assim”)
(Chico Ribeiro Neto)
Publico hoje a segunda parte da crônica sobre o livro “A Bahia já foi assim” (Editora Itapuã, 1973), da folclorista Hildegardes Vianna.
Na crônica “O quarto dos santos” ela comenta: “Quarto de santo é atualmente expressão dúbia. Pode significar casa de orixá de candomblé para a maioria dos leitores. Lugar de oração para uns poucos. Afinal, hoje não há cômodos suficientes nas residências, começando a rarear os devotos empenhados em reunir várias imagens em seus nichos particulares”.
Depois de ressaltar que “imagem nunca se compra, troca-se”, Hildegardes explica: “Há uma superstição que não permite que alguém diga que comprou uma imagem ou um santo. Consideram apenas como uma troca por dinheiro, porque só Judas vendeu um Santo”.
Na crônica “Todo mundo gosta de abará” ela lembra do “abará que já vinha com a pimenta temperando a massa, que se desmanchava na boca como pão-de-ló” e lamenta que é “bem diferente do abará que se modificou pela exigência do consumidor e não somente por culpa das vendedeiras. Abará que nem sempre traz camarão na massa, recheado como um sanduíche qualquer, com molhos de vários aspectos e procedências, entupido com o vatapá, que nem sempre é vatapá, será que ainda é abará?”. Lembro que este livro é de 1973.
Para ela, “era fácil identificar uma lavadeira. A visão de uma mulher descalça, com uma trouxa de roupa à cabeça, nos dias de segunda-feira, era trivial.”. Hildegardes escreve na crônica “As lavadeiras faziam assim”: “As lavadeiras podem ser classificadas de várias formas: as que lavavam na casa da patroa e as que lavavam na fonte; as que lavavam por peça e as que lavavam por mês; as que apenas lavavam e as que lavavam e passavam, além das que lavavam e engomavam”.
Em “As mãos das baianas” diz Hildegardes: “Enquanto não aparece um poeta, deixem que eu fale das mãos das baianas que vestem suas roupas repolhudas nos dias de festa”, e poetiza: “Reparem nas suas mãos que, agitando um galhinho de mangericão ou coisa que valha à guisa de abanador, vão e vêm sobre o tabuleiro lentamente, num ritmo certo. São mãos nodosas, de unhas incertas. Estragadas, mas limpas. Contrastam com os braços sedosos e roliços de suas donas. Mãos de quem trabalha não são atraentes nem desejáveis, mas são mãos encantadas. Mãos de fada”.
Antigamente, o xaréu era um peixe farto em Salvador. Dizem que o xaréu sumiu ou ficou raro nas nossas praias porque ele é um peixe que não gosta de zoada e o barulho dos carros na orla o afastou. A crônica “No tempo do xaréu” diz assim: “Xaréu era o peixe mais popular, mais barato, mais gostoso, mais consumido nesta nossa cidade. Xaréu fresquinho, pegado em Amaralina, comprado inteiro por preço mais irrisório que o de uma única posta de outro pescado. (As ovas, vendidas separadamente, constituem iguarias preciosas quando devidamente fritas)”.
Antigamente, no estádio da Fonte Nova, quando faltavam 10 ou 15 minutos para o final do jogo, os portões eram abertos para a entrada do “xaréu”, o pessoal que não podia pagar o ingresso.
O jornalista José de Jesus Barreto conta que teve uma vez em que o “xaréu” assistiu todo o segundo tempo. Foi no jogo Bahia x Santa Cruz, pela Taça de Prata, antigo nome dado ao campeonato brasileiro. O Bahia havia tomado 4 x 0 no primeiro jogo e precisava fazer 5 x 0 para se classificar às oitavas de final. Foi na noite de 5 de abril de 1981. Acabou o primeiro tempo com 3 x 0 para o Bahia e aí o presidente do tricolor, Paulo Maracajá, no intervalo do jogo mandou abrir os portões para entrar o “xaréu”, uma multidão que lotou a Fonte Nova, aumentou a pressão da torcida e o Bahia deu os 5 x 0 que precisava, auxiliado pelo árbitro Carlos Rosa Martins, que deixou de marcar “um impedimento escandaloso” no último gol do Bahia, aos 43 minutos do segundo tempo, lembra Barreto. A Fonte Nova explodiu de alegria e o “xaréu” teve um peso importante.
Segundo José de Jesus Barrreto, outro fator que certamente ajudou o Bahia foi o que um radialista (o repórter de pista) perguntou ao juiz, quando este retornou do intervalo e se espantou diante da Fonte Nova lotada para o segundo tempo: “O senhor vai ter coragem de anular um gol ou de marcar um pênalti contra esse time?”
Na crônica “Palavras más” Hildegardes escreve: “As horas eram boas e más. A pior de todas, a do meio-dia, quando o diabo saía do inferno para a sua ronda diária”. Mais adiante, observa: “O que eram palavras ruins? Coitado era uma. Não se lamentava alguém, impunemente, exclamando: Coitado! “Coitado do diabo que perdeu a graça de Deus, não eu que sou criatura de Deus, Padre todo poderoso. Coitado, por que?”
Hildegardes assinala: “Espreguiçar-se com o gemido “Ai-Ai” sem acrescentar “meu Deus” era caso para reprimenda. “Ai-Ai” era o diabo mais velho do inferno”. Ela ainda observa: “Quem tinha coragem de viver repetindo o nome de miséria, de desgraça, apenas para descarregar o seu gênio?”
(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)
POESIA E FELICIDADE
Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
O poeta canta a felicidade,
Manda valorizar cada dia,
O existir do viver,
Debulhar do alto o sinal,
Mas como alcançar essa felicidade,
Num Brasil tão desigual?
Felicidade! Felicidade!
Perdão meu poeta/poesia,
Numa festa tudo é alegria,
Utopia e distopia:
Não dá para rimar,
Amor com sofrer e dor,
Nesse turbilhão de maldade.
Felicidade! Felicidade!
Não consigo captar sua poesia,
Sua mensagem nessa viagem,
Se minha alma está em agonia,
De ver tanta gente encarcerada,
Meu povo andar como manada,
Nesse capital do gastar consumir,
Onde o pobre nem mais rir,
Passando fome pelos cantos,
Que mal dorme e come
Nos afogados da periferia.
Felicidade! Felicidade!
Liberdade! Igualdade!
Cadê minha soberania?
Finjo estar encantado,
No acalanto da sua poesia.
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