:: 21/nov/2023 . 21:07
UM VENDEDOR DE POESIAS
Uma alimenta o corpo e a outra a alma, o espírito. Estou falando das feiras de produtos agrícolas, de cereais, carnes, frutas, mantimentos em geral, bugigangas e tantos outras coisas nas pequenas e grandes cidades, com seus cheiros, sabores e cores, onde acontecem os encontros e encantos através das amizades do bom bate-papo, e das literárias com suas ideias, pensamentos, conhecimentos, saberes e livros de autores de diversificados gêneros. Ambas são culturais, uma mais popular, mas ricas.
Tanto numa como na outra existem aqueles bons vendedores propagandistas e comunicativos que, num bom argumento, sabem atrair o cliente para negociar o “seu peixe”, seja numa barraca, num cantinho qualquer, no chão, na mão ou num estande. Não importa se o local é confortável ou estratégico. O que mais conta como arma principal é a palavra, esta que vem do alto e sai da mente com aquela força que arrebenta corações.
Na I Fliconquista – Feira Literária de Vitória da Conquista. que foi encerrada neste domingo (19/11/23), tive o grande prazer de conhecer esse bom vendedor, mas de ideias e poesias, de conversa agradável e cativante, que segue como um peregrino ou mochileiro de longas caminhadas e histórias para contar. Onde chega ele vai logo pedindo passagem com seu axé.
Trata-se do nosso poeta José da Boa Morte que veio lá da capital, numa distância de pouco mais de 500 quilômetros num ônibus tipo comercial, mais conhecido como “pinga-pinga” que para em todos lugares. Com sua mochila de imaginações e sonhos, não teme a hora desde que cheguei em seu destino das letras. É isso ai, seu Zé da travessia.
Com seu jeito simples e matreiro, atento a tudo que ocorre em seu redor, ele pode ser chamado de o rei das feiras literárias porque está sempre presente nelas. Na Bahia ou em outros estados, lá está o José cortando estradas, encurtando distâncias entre as veredas e comendo poeiras.
Olho no olho, falante e contador de causos, usa até seus repentes para vender suas poesias, como Amor e Risos (Sem Fronteiras), livretos “ArtPoesia”, da poetisa goiana Cora Coralina (134 anos), Maria Firmina dos Reis, uma negra que canta a liberdade (Poesia, Prosa e Amor) e tantos outros escritores e poetas de renome. Em sua sacola, o perfume das flores.
Tive o privilégio de ficar ao seu lado num estante da Fliconquista e aprendi muitas coisas, como abordar o leitor e ser um bom vendedor de ideias. Fizemos uma parceria onde um vendia a obra do outro quando precisávamos dar uma saidinha e até participar de algumas atividades que rolavam na feira.
“Daqui do telão, ouvi sua palestra sobre Cenas de Resistências na História de Conquista e adorei, uma potência de informações” – disse-me o Zé. Não sou muito de ligar para elogios, mas quando é sincero, sinto que a missão foi cumprida e o recado foi dado. O fundamental é a mensagem que fica, mesmo que seja uma só pessoa.
Sempre se diz que o escritor, como o artista de outra linguagem qualquer sabe fazer sua arte, mas se enrola e tropeça quando parte para comercializar seu trabalho ou entrar nesses editais burocráticos, mas José aprendeu a se virar na hora de conquistar um novo leitor. Se o sistema é assim, quem está na chuva é para se molhar. Ele vai com ânimo e não desiste, mesmo quando recebe um não.
José da Boa Morte, em homenagem à Irmandade da Boa Morte, de Cachoeira – Bahia, contou que no seu primeiro dia da feira em Conquista, na quinta-feira (dia 16/11) não vendeu nada e quase retornava, mas repensou e enfrentou com coragem os outros dias. “Não posso ser vencido logo no primeiro dia”. “E agora José”? Tem uma pedra no caminho, mas é só retirá-la. Se perdeu a chave, existe outra forma de entrar.
Não se abateu e se deu bem. Ele me fez lembrar do bom barraqueiro das feiras livres que, com sua voz firme na garganta e simpatia, chama o cliente para si mostrando a qualidade do seu produto. Vai chegando meu povo que aqui tem coisa boa – grita o bom feirante! Nessa hora, não adianta ficar pensando em crises. Na literatura, acontece o mesmo.
O livro, a abóbora, a melancia, o pepino ou uma verdura têm suas peculiaridades e gostos diferentes, mas são iguais na mão de um bom vendedor. José escolheu o mais difícil e vai rompendo trilhas, conhecendo gente nesse mundão e acreditando em sua arte de escrever e vender.
É o José das ideias e das poesias. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” – já dizia o cancioneiro Geraldo Vandré, o Boby Dilan do sertão nordestino. “Para não dizer que não falei das flores”. Lá vamos nós cruzando a ponte e pedindo passagem nas travessias.
TREZE ANOS DE HISTÓRIA QUE COMEÇOU COMO “VINHO VINIL”
São treze anos de história cultural que nasceu do encontro entre os amigos Jeremias Macário, Mannu Di Souza e José Carlos D´Almeida que tiveram a ideia de criar o grupo “Vinho Vinil”. Isto ocorreu em 2010 num bate-papo descontraído entre uns comes e bebes festivo. Para comemorar esses treze anos, decidimos realizar um documentário como forma de registrar sua história.
Como a própria denominação já diz, o objetivo era unir as duas coisas, mas com o propósito principal de valorizar o velho vinil. A ordem era não se ouvir músicas de outras mídias, tocar viola e nem tomar outra bebida que não fosse o vinho.
Não demorou muito e outras pessoas foram se juntando ao grupo. Em pouco tempo, o “Vinho Vinil” se transformou num sarau, com cantorias variadas, declamação de poemas, contação de causos e a liberação de se tomar outras bebidas, mas o vinho permaneceu como carro-chefe.
O “Vinho Vinil” tomou outras proporções e formatos se tornando “Sarau a Estrada”, realizado no Espaço Cultural que leva o mesmo nome, sempre com um tema central na abertura. Durante sua existência, os participantes acreditam que seja o sarau mais longevo em Vitória da Conquista.
Mesmo no período da pandemia da Covid-19 (2020/22), quando as pessoas foram obrigadas a se isolar para não serem contaminadas, o Sarau A Estrada continuou a funcionar de forma virtual através de lives e produzindo vídeos de textos poéticos autorais, nas pessoas de Jeremias Macário, Vandilza Gonçalves e D´Almeida.
Como resultado, foram gravados dois curtas-metragens (“Coronavid” e “Brasil, Nunca Mais”) de mais de 20 minutos cada, sendo que um deles foi contemplado num edital da Prefeitura Municipal de Conquista. Esses vídeos foram distribuídos em redes socais e entre o grupo do sarau.
Durante esses anos, além do lançamento de um CD com músicas e poemas autorais, bem como uma apresentação no Teatro Carlos Jheovah, debatemos questões culturais, políticas e sociais abordando diversos temas, como educação, carnaval, cultura conquistense, os movimentos políticos de 1968, folclore nordestino, literatura, escritores do Nordeste, história da música popular brasileira, escravidão, o povo cigano, Gregório de Mattos, Castro Alves, cordel, cinema, Glauber Rocha, dentre tantos outros. Como o sarau é eminentemente cultural, evitamos colocar em discussão política partidária.
Com a participação de estudantes, jovens, artistas em geral, intelectuais, professores e demais interessados, o Sarau A Estrada tem hoje sua própria história e identidade, sob o comando de uma comissão organizadora.
Nesses treze anos de fundação ocorreram muitos fatos interessantes e curiosos, como lançamento de um filme e livros, os quais merecem uma crônica ou um artigo literário. Muitos, inclusive, já sugeriram o seu tombamento municipal por se tratar de um evento de utilidade pública.
Nas lentes das máquinas fotográficas e dos celulares, nos debates de diversos temas, no bate-papo fraternal e acalorado, nas contações de causos, nos casos de pessoas que aqui pernoitaram, nas pessoas que já partiram para o outro lado, nas declamações de poemas, nas cantorias dos violeiros, nos amores encantados e nas trocas de ideias, o “Sarau A Estrada” é conhecimento, saber e aprendizagem. Como já foi dito, o evento é realizado no Espaço Cultural A Estrada de dois em dois meses de forma colaborativa e democrática.
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