:: 6/fev/2025 . 23:45
CACHAÇA COM METANOL E REQUEIJÃO COM MAISENA
(Chico Ribeiro Neto)
(Crônica publicada no jornal A Tarde em 1/8/1990)
A tragédia da cachaça de Santo Amaro, que já resultou na morte de 13 pessoas, se serviu para mostrar a absoluta falta de controle na distribuição de bebidas e a extrema lentidão de nossas autoridades sanitárias e policiais, serviu também para aflorar episódios pitorescos em torno do caso.
Afinal, onde há cachaça existe uma graça, mesmo em meio a situações de morte. Não é por menos que os velórios do interior são quase sempre regados a uma purinha, e tome-lhe piada. O cômico está sempre perto do trágico.
Esperamos, contudo, que os responsáveis por essa desgraça que se abateu sobre Santo Amaro sejam punidos com o maior rigor e que, vacinados pela tragédia, possamos agora dispor de um real controle exercido pelas autoridades de saúde nas destilarias e alambiques de fundo de quintal, onde o que importa é ganhar dinheiro e o resto que morra.
Botar metanol na cachaça já é um reflexo do que se faz neste país, onde se mistura tudo com tudo: álcool com gasolina, leite com água, requeijão com maisena, PMDB com PFL, banha com manteiga, algodão com poliéster, prata com latão e abará com fubá de milho. Não importa a qualidade do produto nem a saúde do consumidor. O negócio é misturar para ganhar mais.
Cachaça se mistura com tudo, ou quase tudo. É folha, cobra, casca de laranja, capuco de milho, umbu, seriguela, coco, raiz, raspa de unha, jiló, o diabo, sim, com este também e às vezes de preferência.
– Vai querer com quê? – pergunta logo o dono do boteco.
Há misturas inesquecíveis, como a do falecido “Popular Cabelinho Rei do Limão”. Hoje, a “Gabriela” de Edinho da Ceasa do Rio Vermelho chega perto. Tem cravo e tem canela, antes de um bom prato de cozido.
Muito famosa antigamente, a cachaça de Santo Amaro vai demorar para se reabilitar. A simples menção do seu nome já faz tremer – mais do que o normal – o mais assíduo biriteiro. Nos bares que só vendem cerveja por causa da “Lei Seca”, os santo-amarenses já comentam: “É a cachaça Sofia. Você bebe de manhã e morre meio-dia”. (“Sofia” é o apelido do comerciante responsável pela criminosa distribuição da cachaça com metanol).
Dizem que quando começou a vigorar a “Lei Seca” – os bares só podem vender cerveja, nada de bebida quente – um grupo de biriteiros mais contumazes resolveu fazer uma passeata na Praça da Matriz contra a proibição. No meio da discussão sobre a forma de fazer o protesto, uma questão importante: quem iria conseguir segurar, sem tremer, as faixas e cartazes?
As piadas começam a chover. Segundo o cartunista Douglas, as igrejas de Santo Amaro estão ficando vazias. Sabe por quê? Porque o sujeito vai tomar uma cachaça, dá pro santo e o santo “bufo”.
Até mesmo em Salvador qualquer cachaça sem rótulo, a chamada “lava jega” ou “poca olho”, está sendo logo rejeitada. Ninguém quer conversa. Se não tiver rótulo, a rejeição é imediata. Até as que têm rótulo já inspiram uma certa desconfiança. Conta-se que em Feira de Santana tem depósito de bebidas onde entra um caminhão de cachaça por uma porta e saem dois por outra. Não tem controle de qualidade que dê jeito.
A trágica cachaça de Santo Amaro já ganhou muitos apelidos. Nenhum, no entanto, tão apropriado quanto o que recebeu do jornalista, compositor e poeta Béu Machado: “Essa, sim, é a autêntica saideira. O sujeito toma uma e sai dessa pra outra”.
(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)
JOÃO-DE-BARRO E A CIDADE
Pela sua beleza, arte, encanto e poesia, as casas ou ninhos feitos pela magnífica ave João-de-Barro são admirados por todos, mais ainda quando esses pássaros resolvem conviver em harmonia com o barulho das cidades. É como se a natureza estivesse se comunicando com o ser humano de que é possível valorizar a vida, mesmo diante de suas adversidades. Nossas lentes flagraram na Avenida Olívia Flores, nas proximidades do antigo Clube da ABB, quatro desses ninhos, sendo dois num poste de eletricidade e dois numa árvore ao lado. É uma prova de que os casais pretendem aumentar sua prole, não importando a agitação urbana e o vaivém das pessoas, pois a grande maioria nem percebe suas existências. Uma prova disso foi quando estava clicando. Isso chamou a atenção dos passantes, inclusive de duas mulheres quando uma chamou a atenção da outra: Olha ali no galho da árvore, duas casas de João-de-Barro! Não há dúvida de que ele é um artesão de primeira linha, que nenhum artista, por melhor que seja, faz melhor e com tanta perfeição e sabedoria. Ele faz a casa numa posição correta e protegida contra as correntes dos ventos e das chuvas. Sua arte nos leva a perguntar quanto tempo para concluir sua engenhosa construção e onde encontra a matéria-prima, no caso o barro, se estamos numa cidade e não no campo? Só mesmo o João-de-Barro sabe responder. Ficamos apenas nas conjecturas. Não é por menos que a natureza tem seus enigmas e mistérios que nem a vã filosofia e a ciência conseguem desvendar.
REVISOR DE JORNAL
Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
Em pleno sol de verão,
Na praça do poeta condoreiro,
Meu olhar se perdeu
Pela Baia de Todos os Santos,
No balanço dos encantos
Das ondas do mar do barqueiro.
Estava avexado sem emprego:
Era só desassossego,
E nem sabia,
Que naquele dia,
Ia virar revisor de jornal,
Com trabalho salarial.
Zanzei pela rua Chile;
Cruzei com a Mulher de Roxo;
Mais adiante com irmã Dulce;
Beijei sua mão;
Pedi sua benção,
Com o sinal da cruz abençoou:
Vá meu filho,
Com seu Deus Nosso Senhor.
Na velha calçada de pedra,
Ainda vi o trilho do bonde,
Rangendo como carro de boi,
Que com seu tempo se foi.
Vaguei pela praça da Câmara;
Admirei o Lacerda Elevador,
Na Catedral entrei e orei,
Do Terreiro retornei
Até o prédio do “A Tarde”;
Contei minha situação ao doutor,
E de lá sai com o título de revisor.
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