:: 3/fev/2025 . 21:52
QUANDO FUI REVISOR NA ÉPOCA DO CHUMBO
Com meu diploma de jornalista na mão tinha que começar a me virar porque não mais poderia morar na Residência Universitária. Era uma manhã ensolarada, ainda verão de início de 1973. Lá se vão 52 anos. Cortei o Corredor da Vitória, passando pelo Campo Grande e atravessei a Avenida Sete de Setembro já movimentada de gente naquele corre-corre da vida.
Meu destino era o velho prédio do jornal “A Tarde”, na praça do poeta condoreiro. Antes, para tomar coragem, fiz uma ronda pela Rua Chile onde cruzei com a Mulher de Roxo e mais adiante com irmã Dulce a quem pedi a sua benção. Da Praça da Câmara Municipal e do Elevador Lacerda retornei e, enfim, adentrei no jornal.
Ainda sem jeito, vindo do interior, contei minha história e minha disposição para trabalhar. A primeira pessoa com quem falei foi com dona Aia, a chefe da revisão, uma coroa negra mestiça, enxuta e simpática. Para minha sorte tinha uma vaga e não titubeei em aceitar. Não havia outra escolha. Atuar na revisão não dava visibilidade. Éramos personagens de bastidores dentro do processo jornalístico.
Ela me levou ao gabinete do redator-chefe, dr. Jorge Calmon, que me recebeu com toda aquela sua elegância de um aristocrata inglês e mandou que fizesse uma carta pedindo emprego. Foi minha primeira prova de fogo. Ele leu o texto e me aprovou para eu começar em meu novo ofício como profissional no outro dia. Pronto, estava salvo! Ali começava minha trajetória.
Naquela sala apertada, bem em frente à Baia de Todos os Santos, começava na lida ao pôr-do-sol e saia ao alvorecer da manhã. Fazíamos revisão em dupla das matérias jornalísticas depois de terem passadas pela linotipia que ficava bem ao lado da nossa. Recebíamos chumbo quente no peito durante toda noite.
Foi minha primeira experiência como jornalista profissional que me deu régua e compasso. Conheci figuras interessantes, inteligentes e bem preparadas. A gente só não gostava de revisar balanço contábil de empresas (não podia errar nos números) e pegar material do linotipista Melo porque ele melava todo papel.
Dona Aia era a nossa defensora e protetora, tipo secretária particular de dr. Jorge (havia uns cochichos), e sabia de carreirinha, decorado da sua cabeça, todas as fórmulas químicas, desde o H2O ao dióxido de enxofre SO2, óxidos de nitrogênio (NO, NO2, N2O5) ao dióxido de carbono (CO2), dentre outras composições de metais. Ficava impressionado como ela sabia aquilo tudo.
Era época de chumbo da ditadura civil-militar-burguesa do general Garrastazu Médici. A gente trabalhava em dupla no processo de revisão onde um lia o texto e o outro ia fazendo as correções das matérias jornalísticas dos repórteres. Com o avanço da tecnologia da internet, essa função deixou de existir nos jornais.
Entre o intervalo de uma revisão e outra confabulávamos informações de presos políticos vítimas das torturas e criticávamos duramente o regime. O delegado Fleury e o coronel Brilhante Ultra, do DOI-CODI, eram os maiores carrascos. Ainda bem que não havia escutas e, se existia, não sabíamos.
Seu Ariston, se não me engano vindo lá de Itabuna, era um senhor de feições duras desgastadas pelo sofrimento do tempo, bom de português, que tirava nossas dúvidas. Ele foi um dos presos torturado pela ditadura e nos contava histórias da sua ação de combate e o que passou na cadeia até ser solto. Seu Ariston ainda era muito visado e vigiado pelos agentes torturadores. Depois sumiu.
Por obrigação, tínhamos que assinar e guardar as provas para, em caso de erro, os revisores responsáveis serem repreendidos, punidos ou até mesmo demitidos. Quando isso acontecia, um protegia o outro, e arranjávamos uma maneira de dar sumiço na prova, sobretudo quando se tratava de balancete, coisa chata de se revisar.
Lembro também do nosso amigo e companheiro Antenor, homossexual que logo depois morreu de Aids. Naquela época o tratamento erra escasso. Era um jovem com grande bagagem de conhecimento e cheio de vida. Na revisão predominava o sexo masculino, mas logo depois, aos poucos, foi aparecendo mulheres, como Cora com quem gostava de atentar e chamá-la de Cora Coralina. Não sei do porquê, mas ela não gostava.
Ainda no velho prédio da Praça Castro Alves, o local da revisão era um tanto insalubre, porque ficava ao lado da linotipia de chumbo. Tínhamos que tomar muito leite. Era uma recomendação, não sei de quem. O pessoal inalava muito chumbo vindo daquelas máquinas barulhentas. Era o tempo do chamado jornal a quente.
Quando dava meia-noite, a gente ia para uma lanchonete na Carlos Gomes forrar o estômago. A conta era paga pela empresa. Foi um tempo de boas recordações e aprendizagens durante quase um ano até ser convidado para trabalhar como repórter na Editoria de Economia.
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