:: 9/nov/2024 . 1:55
O ATORMENTADO CORAÇÃO DE PEDRA
Mesmo diante das dificuldades e intempéries da vida, sempre nos encorajam para termos esperança e fé, mas, a realidade é que elas estão se esvaindo e definhando para milhares e milhões de pessoas, massacradas por esse bruto sistema. Sei que muita gente prefere a outra linguagem do otimismo, porém não devemos nos iludir.
Habitamos um mundo hoje tão desumano e cruel que o ser se tornou um atormentado coração de pedra. Isso me faz lembrar de um indivíduo que levou um balaço nesse órgão vital do nosso organismo e sobreviveu. Depois desse acontecido, passaram a chamá-lo de “coração de pedra”, mesmo sendo uma pessoa bondosa e crente.
No sentido figurado, temos aquele coração de pedra do ser insensível ao sofrimento do seu “semelhante”, do tipo do personagem humorístico de Chico Anísio no papel do deputado que num certo momento do diálogo abre a boca e diz: “Quero mais é que o pobre se exploda”. Não precisa necessariamente ser pobre de dinheiro.
O corrupto, o egoísta que só pensa em si, o golpista, o falso amigo, o mau caráter, o antiético, o imoral, aquele que já trata a coisa anormal como normal, o incomum como comum, o ilegal como legal, todos eles têm corações de pedras, mas não vivem atormentados e até dormem o sono dos anjos, sem mais remorsos na consciência. Aliás, nem possuem mais isso.
Do outro lado, existe o atormentado coração de pedra. Diria que é aquele resistente e forte que, mesmo desaprovando e contestando as injustiças sociais, continua travando essa luta contra todas as adversidades. É como um sobrevivente em alto mar depois do seu barco ter sido afundado pelas ondas agitadas ou arrebentado nos rochedos.
Este elemento até gostaria que seu espírito tivesse desprendido do seu corpo porque não suporta mais assistir tantas imbecilidades, futilidades e idiotices. Seu esclarecimento e visão das coisas erradas o atormenta e o faz cada vez mais sofrer, mas seu coração é de pedra.
O descrente de que a humanidade vai melhorar, de que ainda se possa deter o aquecimento global depois do rombo que fizeram no planeta, de que as fronteiras dos países ricos serão abertas pelos poderosos, de forma que passem os desvalidos e refugiados famintos, de que a justiça e a igualdade virão para todos, é um atormentado coração de pedra.
Esse termo coração de pedra não é usual, assim repreendeu um amigo meu que não concorda com esse meu pensamento, de acordo com ele, pessimista. “Esse negócio de atormentado coração de pedra é coisa da sua cabeça de queixoso lamentador” – respondeu-me em tom ríspido.
Ele ainda acredita no amor ao próximo, no mar de rosas, que o ser humano vai se regenerar, de que a vida ainda é bela e que precisamos sempre confiar nos outros porque bons tempos virão de respeito mútuo onde haverá um humanismo pleno na face da terra.
No final da conversa, não muito amistosa, me chamou de atormentado coração de pedra, não daquele moço que literalmente foi vítima de uma bala no peito e não morreu. Morte é outro assunto um tanto pesado e mórbido que a grande maioria evita comentar.
Encerramos por aqui esse papo cruento que tivemos numa mesa de bar e passamos para as amenidades corriqueiras do dia a dia, como futebol e fofocas sobre a vida dos outros. Nada como uma gelada para se esquecer das desgraças, da violência e dos tormentos humanos, como a depressão.
Afinal de contas, estamos próximos do Natal e vêm aí as campanhas dos presentes e das doações das cestas básicas. As lojas já estão se enfeitando para o “Natal sem Fome”. As praças começam a ser iluminadas e as residências a montarem suas árvores. Todos serão felizes para sempre e nada de coração de pedra. Feliz Natal antecipado.
“UMA HISTÓRIA DO MUNDO”
COMO SE FORMOU A PRIMEIRA CIDADE
COMO NASCEU O PRIMEIRO DEUS ÚNICO
COMO FOI INVENTADA A CULPA
Numa linguagem pedagógica e num tom simples metafórico de gozação que prende o leitor, sem aquele academicismo pesado, o jornalista e escritor de vários romances, David Coimbra começa esta obra falando do homem de neandertal que durante cerca de dois milhões de anos (outros apontam seis) viveu feliz em suas selvas, caçando, pescando e colhendo, sem pensar no futuro. Seu esquema era viver o dia de cada vez.
Costumamos afirmar que a gente era feliz e não sabia quando nos referimos há 50 ou 60 anos ainda meninos com aquelas brincadeiras tradicionais do nosso tempo onde crianças e jovens respeitavam os mais velhos e a humanidade era mais humana, sensível e solidária. Pois é, mas Coimbra nos faz entender que a felicidade total estava mesmo no neandertal solteiro de um metro e 65 centímetros, forte e cheio de músculos.
Tudo era inocência que nem se sabia que o homem era um reprodutor. O sexo era grupal, sem culpa, e a mulher ficava na caverna esperando o caçador. Quando engravidava, achava que era da lua cheia ou de um mosquito qualquer que lhe picava no rio. Veio, então, o sapiens sapiens, há 120 ou 130 mil anos, e começou a bagunçar tudo. Nessa passagem, a mulher domesticou o homem e criou a civilização a partir da agricultura. Ensinou também o sapiens a domesticar e a criar animais para o abate.
Segundo Coimbra, alguns cientistas desconfiam que haja traços de neandertal em certas pessoas do século XXI. Pode ter havido relação amorosa entre um neandertal e uma sapiens sapiens. Em sua visão, os neandertais eram mais masculinos do que nós. Saia em bandos de machos para caçar, pescar e colher, arrastar uma fêmea pelos cabelos, pegá-la no colo, jogá-la no solo e fazer dela mulher. Não arava a terra, não acumulava e nem constituía família. Não meditava sobre a existência e não se angustiava ao ponto de cair em depressão.
As sapiens queriam era criar seus filhos e, para isso, teve que domesticar os machos. Inventaram a agricultura, tornando impossível o deslocamento por serras, praias e florestas. De nômades a sedentários, fundaram a civilização, a política, a economia, a ganância, a angústia e o psicanalista para curar seus tormentos.
Hoje, o homem solteiro que bebe com os amigos, não reclama da solidão e cativa outras mulheres, é o fracasso das mulheres. Foi por isso que elas inventaram o amor romântico, “que deve seu prestígio à Idade Média quando o cristianismo temperou o sexo com a culpa e elevou o espírito em detrimento da carne”. Esse cristianismo tornou vulgar o prazer e sublime o sentimento. O amor romântico transformou-se na forma de dar sentido à vida humana neste Vale de Lágrimas.
O neandertal não precisava procurar o sentido da vida, porque o sentido da vida era viver. O escritor, com leveza sarcástica, escreve que o ócio feminino matou o neandertal. “Quem inventou o trabalho não tinha o que fazer”. Durante dois milhões de anos de alegria e vadiagem, o homem não trabalhou.
Tanto um como o outro (neandertal e sapiens) viviam para comer e se reproduzir. Freud dizia que tudo na vida é casa, comida e sexo. Lá atrás, o homem nem sabia que fazia filhos. Tudo piorou quando se passou a pensar no futuro há mais de 70 ou 100 mil anos, tempo que o neandertal e o sapiens partilhavam o planeta, caçando e coletando. A agricultura deve ter surgido há 10 mil anos e dela vêm a propriedade e a herança.
A mulher, nas baladas loucas da caverna, ao transar com um chefe do clã, de acordo com Coimbra, foi quem descobriu a reprodução através do sexo. Antes ela viu um casal de filhotes de animais, caso do lobo, ancestral de todos os cães do mundo, copulando e depois parindo. Ficava na caverna cuidando dos filhos e começou a plantar as primeiras sementes extraídas dos frutos que o homem trazia.
Como foi dito antes, da agricultura vieram a propriedade e a herança, mas como o macho poderia ter certeza que o filho era dele para ter o direito de ficar com seus bens? Só a mulher tinha porque o filho saia da sua barriga.
Naquela época não havia laboratório para fazer o teste de DNA. A forma segura foi obrigar a fêmea a fazer sexo só com ele. Lá vem a monogamia, subproduto da herança. Os homens podiam ter várias mulheres, mas, com o tempo, elas não se submeteram a essa nova ordem. Os problemas estavam só começando.
DESPEDIDA
Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário, há 60 anos.
Voam aves da inocência,
De galhos em galhos,
Cantam a liberdade,
No frescor da abundância.
Os tempos passam,
A escassez aparece,
Surrupia a alegria,
Alastra o sofrimento,
Piedade Senhor!
Ao menos, escute minha prece!
Se a natureza,
Sente-se compungida,
Pela seca esturdiada e virulenta,
O mar encanta a jangada lenta,
Por que ulular o véu da vida?
Passam anos e os dias chegando,
Abrem as cortinas da cena.
Deparo num futuro;
Vou meditando,
No claro ou no escuro.
Passageiros!
Folheai o opíparo livro,
E vedes capítulos ataviados,
Com nossos nomes d´alma
Em fé livre,
Nesta história decadente,
De dias atormentados.
Quantos aqui se ingressaram,
Daqui se foram saudosos,
Dessa gleba se formaram,
Estandarte de braços amorosos!
Adeus farol, adeus timoneiro,
Que nos desviaram das pedras!
Adeus luzeiro;
Sigo em livre mar.
O vento que soprou em doidivanas,
Não conseguiu…
Mesmo forte me arrastar.
Senhor Deus!
Ouvi-me, Senhor Deus!
Se na terra,
Como sementes não crescemos,
Se foi egoísmo,
Nos castigue,
Dai-nos forças,
Para distantes vencermos.
Amigos!
Para aonde vão?
Bate o adeus;
Tartamudeia minha voz.
Já é hora da partida:
Um dia nos veremos,
No além do além.
Enxuguem suas lágrimas,
Nesse grito de despedida.
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