:: 8/nov/2024 . 0:34
O MATUTO E A TECNOLOGIA
Tudo hoje é movido pela tecnologia que está destruindo o próprio homem, embora ela tenha suas vantagens de facilitar a vida, conforme se extrai das opiniões praticamente unânimes. Disso quase todos sabem, mas agora imagine um matuto que sai do seu sertão agreste e se mete em visitar a capital.
Foi o que aconteceu com seu Carmerindo que juntou um dinheiro da venda de seus produtos da roça e botou na cabeça que ia conhecer a cidade grande, aquela que ele via passar na televisão e ouvia falar naquele rádio modelo antigo que seu pai lhe deixara como herança.
A mulher chamou ele de maluco, mas o cabra tinhoso arrumou a mala com algumas peças de roupa e uma boa grana para se hospedar num bom hotel. Seu compadre, que até tinha vontade de também fazer aquela aventura, o incentivou e foi logo dizendo que com dinheiro tudo ia dar certo. Carmerindo é mesmo um sonhador.
A viagem foi longa passando de cidade em cidade até desembarcar na capital. Seu Carmerindo, com seu chapéu de couro típico nordestino ficou assustado com aquele formigueiro de gente pra lá e pra cá. Uma correria dos infernos – imaginou.
O motorista malandro ao ver aquela figura esquisita se aproximou com seu papo envolvente e se prontificou a lhe arrumar um carro para lhe levar ao hotel, cujo nome trazia escrito no papel em seu bolso. Tinha alguma coisa ligada com citytur, coisa de gente chique.
Os carros cortavam velozes entre avenidas, viadutos e arranha-céus de concreto. Seu Carmerindo ficou deslumbrado enquanto o cara rodava com ele dando voltas fora do itinerário para lhe cobrar um preço bem mais caro até chegar ao ponto marcado.
Agradeceu a “gentileza” com um aperto de mão, pagou em dinheiro vivo e se dirigiu àquela porta de vidro que como mágica se abriu sozinha antes dele encostar a mão. O matuto ficou espantado e até se sentiu importante. Lembrou da conversa que teve com o compadre sobre ter o dinheiro, de que tudo podia.
Ao entrar, com aquele traje de tabaréu do campo, ficou ali parado sem saber para onde ir, mas Carmerindo era destemido. Vendo aquele estranho, o “fardado” empregado pediu que ele se retirasse do recinto.
– Moço, só quero um quarto parta ficar e tenho dinheiro para pagar. Vim conhecer a capital e ver o mar pela primeira vez.
– Passe por aquela porta giratória e fale com um dos nossos atendentes atrás da mesa.
Ele pensou que esse negócio de giratória não cai bem em sua terra e ficou cismado, mas, como já estava ali tinha que seguir em frente. Meio troncho e se batendo, saiu do outro lado e viu aquela gente atrás de umas máquinas, como se fossem robôs.
– Boa tarde, venho lá do meu sertão onde o sol brilha todo dia e o orvalho cai na madrugada. Com os primeiros raios sempre dizemos Deus seja louvado.
O recepcionista, que nunca tinha presenciado aquela cena inusitada, deu uma boa tarde imperceptível de gente fria e de pouca sensibilidade humana. Esse pessoal pouco rir e força uma falsa educação.
– Moço, quero um quarto para pernoitar e esticar as pernas depois de uma longa viagem calorenta. Quanto pago?
O preço lhe deixou meio zonzo, mas não dava mais para recuar. O recepcionista fez sua ficha, como nome, profissão, endereço e outros protocolos costumeiros. Depois, deu-lhe um cartão magnético com as instruções para pegar o elevador e abrir a porta do apartamento. Antes, porém, lhe perguntou a forma de pagamento, se no cartão, pix ou através de aplicativo.
Pelo andamento da carruagem, não vai tardar o desaparecimento do dinheiro em espécie, não mais caixas eletrônicos e nem essa coisa de banco onde as pessoas naquelas enormes filas vão resolver seus “pepinos”. Tudo vai ser via internet. Profissão de bancário vai se acabar com essa tal de inteligência artificial.
–É no dinheiro mesmo, e abriu um pacote que trazia em sua mala de couro cru. Nem sei que troços são esses que o senhor está falando.
Seu Carmerindo deu aquele pulo para trás e pediu uma chave, daquelas que você coloca na fechadura e abre rapidinho.
– Não usamos mais isso, meu cidadão. É uma questão de segurança. Tudo hoje é comandado pela tecnologia.
Coisa do diabo dessa tecnologia moderna que se vê nas propagandas – lembrou daquelas imagens. Como foi orientado, no elevador ele introduziu o cartão naquela fresta, mas nada do elevador obedecer a ordem de comando. Acende uma luz verde, mas nada.
O matuto sai de lá virado no mói de centro ou do cão e suado começa a esbravejar. Nesses hotéis de hoje não existem mais aqueles carregadores de mala que lhe levava até o andar, abria a porta, entrava e ainda ensinava como ligar a televisão e o ar condicionado. É a máquina substituindo a mão-de-obra.
Furioso, joga o maldito cartão na mesa e sai arretado pela mesma porta giratória. De tão puto da vida pegou o primeiro taxi na porta do hotel e naquele trânsito maluco se picou para a rodoviária, sem nem olhar para trás. No entanto, para não perder a viagem, pediu ao condutor para ver o mar, como era o seu desejo.
Pensou consigo mesmo que aquilo ali era coisa de doido e nunca mais iria pisar os pés numa capitá. Bom mesmo de viver feliz é na nossa terrinha onde se ouve o canto dos pássaros ao amanhecer, o berro da vaca e a chuva molhar o chão para a semente germinar.
–
NÃO É FÁCIL, NÃO!
(Chico Ribeiro Neto)
Não é fácil, não, cidadão, ter que saltar do caminhão, abrir o coração e aguentar a corrupção.
Não é mole, não, resistir ao desespero, a esse seu tempero e a tanto esmero.
Estender a mão, morar em pensão, conviver com a solidão e ver assombração.
É difícil, irmão, passar no vestibular, esse cara devagar e não chorar no luar.
Mudar de moradia, sofrer de azia e essa vida vazia.
Não é fácil, não, espinho no pé, cair o picolé e a cara de Seu Zé.
Filho doente, cerveja quente e a cara da gente.
Pular daquele rochedo, engolir calado e sentir que tem medo.
Ter que dizer Não, ver uma agressão e o resultado da eleição.
Não é mole, não, irmão, sentir saudade, ver tanta maldade e violência na cidade.
A viagem de volta, segurar a revolta e abrir a comporta.
Pedir guarida, a viagem de ida e essa vida.
Café frio, olhar absorto e passarinho morto.
Lidar com o “cidadão de bem”, com o desdém e ter que dizer Amém.
É difícil, irmão engolir o óbvio, dispensar o necessário e entender o vário.
Televisão quebrada, entupiram a privada e o silêncio da madrugada.
Não é fácil, não, já dizia minha tia, engolir problema é soprar poesia.
Joelho inchado, o vizinho do lado, carro quebrado e IPVA vencido.
Não é mole, não, dor de barriga no meio da rua, aposta ganha não foi a sua e a verdade nua e crua.
Peido no Elevador Lacerda lotado, sanitário de barzinho e ver destruído um ninho.
Não é fácil, não, irmão: acreditar que Maria vai voltar, que aquela coisa vai mudar, que esse mundo tem jeito, que vai imperar o respeito, que vamos melhorar cantando Belchior e que iremos desta para melhor.
(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)
MEU “VELHO CHICO”!
Dizem que ele tem 523 anos desde que um tal de Américo Vespúcio e sua turma de exploradores gananciosos depravados o viram em sua foz e lhe “batizaram” de São Francisco em homenagem ao santo. Isso não passa de uma grande mentira porque ele tem milênios de anos desde que nasceu lá nos Gerais, na Serra da Canastra, e era conhecido como Oporá (rio-mar) pelos índios. O Vespúcio não batizou coisa nenhuma. No entanto, não é disso que quero falar. É que sempre que visito o meu “Velho Chico”, sinto-me na obrigação de fazer um registro depois de lhe pedir a benção. Após aquele estrago todo há uns oito anos, aparentemente ele vai bem com suas águas banhando as margens e sustentando os ribeirinhos. As embarcações navegam pra lá e pra cá cheias de gente que apreciam suas belezas naturais. Os empresários das frutas só querem saber de irrigar suas plantações com suas águas. Acontece que, de lá para cá, depois da seca rigorosa que o castigou severamente, ninguém fala mais em revitalizá-lo. Continuam jogando esgotos em seu leito sujo, como ocorre em Juazeiro, que se transformou na capital das muriçocas. O homem é um animal perverso e irracional quando se trata de preservar o meio ambiente. O negócio é só retirar e nada de retribuir. É um tremendo ingrato e burro, sem contar que é um desmemoriado e destruidor de si mesmo. Mais uma vez, a benção, meu “Velho Chico”, e perdoe seus algozes, se for possível!
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