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AUGUSTUS ENTRA TRIUNFAL EM ROMA
Depois de quinze anos de guerra civil, Otávio César Augusto entra triunfal em Roma como primeiro imperador no verão de 29 a. C., conforme descreve Barry Strauss em seu livro “A Morte de César”.
Decimus não causou problemas por muito tempo. Brutus e Cassius haviam sido oponentes mais fortes, mas foram liquidados três anos após os Idos de 15 de Março com o assassinato de Júlio César. Sextus Pompeu sobreviveu por mais sete anos. Marco Antônio constituiu para Otávio o maior desafio e se suicidou com sua amante Cleópatra.
Otávio comemorou um triplo triunfo. No primeiro dia celebrou as vitórias nos Balcãs. No segundo a conquista no Egito e, no último, o Estado grego era agora uma província romana. Na época, o Egito era um dos países mais ricos do mundo, uma conquista de Roma.
Como dois Césares não seria uma boa coisa, o no imperador ordenara executar Cesário, o filho de César que tivera com Cleópatra. Com a vitória em Actium, Otávio pode adquirir terras na Itália e ao redor de todo império para estabelecer novas colônias de assentamento de seus veteranos de guerra, sem confisco de propriedades.
Nas celebrações, o novo imperador dedicou ao Templo de Júlio Deificado uma série de realizações de jogos e banquetes públicos. Era esperado para o templo ser inaugurado em Julho (antigo Quintilis), aniversário de Júlio César, mas o objetivo era consagrar Otávio.
Em 8 a.C., o mês sextilis foi renomeado como agosto em memória dos três triunfos, e em reconhecimento ao título que Otávio assumira de Augustus, o reverenciado.
No novo regime, nas decorações do templo constava uma estátua de César envolto em um manto de sacerdote supremo. Entre as peças, uma obra-prima da pintura grega, representando Vênus, a deusa poderosa de César e sua suposta ancestral. Cleópatra, sua amante, e Antônio, seu braço direito, agora eram seus inimigos públicos.
As comemorações voltavam-se para o passado e para o futuro, como na dedicação do Templo da Mãe Vênus por César, em 46 a.C., incluindo os jogos de Troia. Haviam jogos de gladiadores e alusões ao Egito.
Os Idos de Março passaram a ser chamados como Dia do Parricídio onde nenhuma corte de justiça poderia reunir-se, nem qualquer lei ser aprovada. A Casa do Senado de Pompeu não foi mais usado para reuniões do Senado. O local foi transformado em banheiros públicos.
O culto a César era algo novo. Os romanos haviam glorificado grandes líderes, mas somente Rômulo, o legendário fundador de Roma, contava com um templo em sua homenagem.
O nome de César passou a designar uma categoria. Depois de Augustus, cada governador de Roma seria chamado César imperador. As palavras kaiser, em alemão, e tsar (czar) russo significavam imperador.
Assinala Strauss, autor da obra, que o sangue de César santificara o Império Romano. Onde César se elevara aos céus, Otávio viera à terra. Ele era imperator, o conquistador filho do Deificado. Em 27 a.C., Augustus aceitou o título do Senado.
Otávio César Augustus governou o Império Romano por mais 41 anos até 14 d.C. A era Augusta, foi considerada como um dos pontos altos da literatura latina, um período clássico, durante o qual os poetas Virgílio, Horácio e Ovídio e o historiador Lívio se encontravam em plena atividade.
Augustus, que vivia na Colina Palatino e, como todo soberano, olhava Roma lá do alto, criou uma dinastia. Quando ele morreu, seu filho adotivo Tiberius assumiu o posto e, depois da sua morte, em 37 d.C., outros membros da família serviram como imperadores. Em 69 d.C. outra dinastia substituiu a família.
O império prosseguiu por séculos, passando por guerras, revoluções, invasões, pestes e rebeliões. Um governador comandou a Itália até o ano de 476 da nossa era e, em Constantinopla (Istambul-Turquia), no Império Romano do Oriente, ou bizantino, os imperadores se sucederam até 1453.
César e sua compaixão pelos pobres permaneceram vivos, enquanto sua guerra à República pelo governo de um único homem e sua sanha assassina que escravizou e matou milhões foram esquecidos.
Depois de Pompeu e César, Roma necessitava de um executivo mais forte na administração imperial. Os mandatos governamentais passaram a ser limitados, para evitar a ascensão de um novo César; maior compartilhamento de poder com as províncias para evitar revoltas; e maior taxação das grandes riquezas para reforçar o exército.
Após as dinastias, o governo não mais pertenceria a uma única família. Uma República foi reformada com um governo constitucional, eleições livres, mandatos limitados, liberdade de expressão.
Senadores que se desgastaram com a pressão da dinastia, filósofos que sonhavam com a liberdade, todos apelavam a Brutus e Cassius como lendas. Até Augustus se permitia a um certo revisionamento. Ao deparar-se com uma estátua de Brutos, em Mediolanum (Milão), Augustus não ordenou sua destruição, mas, sim, sua preservação.
Com o passar do tempo, Roma tornou-se uma autocracia, mas não pelos trezentos anos seguintes, até o reinado de Deocleciano nos anos 285 a 309 d.C., tampouco sob o comando de Augustos. Diferente de Júlio César, ele jamais usou uma toga púrpura ou uma coroa de ouro. Ele mesmo dizia que havia restaurado a República.
CACHAÇA COM METANOL E REQUEIJÃO COM MAISENA
(Chico Ribeiro Neto)
(Crônica publicada no jornal A Tarde em 1/8/1990)
A tragédia da cachaça de Santo Amaro, que já resultou na morte de 13 pessoas, se serviu para mostrar a absoluta falta de controle na distribuição de bebidas e a extrema lentidão de nossas autoridades sanitárias e policiais, serviu também para aflorar episódios pitorescos em torno do caso.
Afinal, onde há cachaça existe uma graça, mesmo em meio a situações de morte. Não é por menos que os velórios do interior são quase sempre regados a uma purinha, e tome-lhe piada. O cômico está sempre perto do trágico.
Esperamos, contudo, que os responsáveis por essa desgraça que se abateu sobre Santo Amaro sejam punidos com o maior rigor e que, vacinados pela tragédia, possamos agora dispor de um real controle exercido pelas autoridades de saúde nas destilarias e alambiques de fundo de quintal, onde o que importa é ganhar dinheiro e o resto que morra.
Botar metanol na cachaça já é um reflexo do que se faz neste país, onde se mistura tudo com tudo: álcool com gasolina, leite com água, requeijão com maisena, PMDB com PFL, banha com manteiga, algodão com poliéster, prata com latão e abará com fubá de milho. Não importa a qualidade do produto nem a saúde do consumidor. O negócio é misturar para ganhar mais.
Cachaça se mistura com tudo, ou quase tudo. É folha, cobra, casca de laranja, capuco de milho, umbu, seriguela, coco, raiz, raspa de unha, jiló, o diabo, sim, com este também e às vezes de preferência.
– Vai querer com quê? – pergunta logo o dono do boteco.
Há misturas inesquecíveis, como a do falecido “Popular Cabelinho Rei do Limão”. Hoje, a “Gabriela” de Edinho da Ceasa do Rio Vermelho chega perto. Tem cravo e tem canela, antes de um bom prato de cozido.
Muito famosa antigamente, a cachaça de Santo Amaro vai demorar para se reabilitar. A simples menção do seu nome já faz tremer – mais do que o normal – o mais assíduo biriteiro. Nos bares que só vendem cerveja por causa da “Lei Seca”, os santo-amarenses já comentam: “É a cachaça Sofia. Você bebe de manhã e morre meio-dia”. (“Sofia” é o apelido do comerciante responsável pela criminosa distribuição da cachaça com metanol).
Dizem que quando começou a vigorar a “Lei Seca” – os bares só podem vender cerveja, nada de bebida quente – um grupo de biriteiros mais contumazes resolveu fazer uma passeata na Praça da Matriz contra a proibição. No meio da discussão sobre a forma de fazer o protesto, uma questão importante: quem iria conseguir segurar, sem tremer, as faixas e cartazes?
As piadas começam a chover. Segundo o cartunista Douglas, as igrejas de Santo Amaro estão ficando vazias. Sabe por quê? Porque o sujeito vai tomar uma cachaça, dá pro santo e o santo “bufo”.
Até mesmo em Salvador qualquer cachaça sem rótulo, a chamada “lava jega” ou “poca olho”, está sendo logo rejeitada. Ninguém quer conversa. Se não tiver rótulo, a rejeição é imediata. Até as que têm rótulo já inspiram uma certa desconfiança. Conta-se que em Feira de Santana tem depósito de bebidas onde entra um caminhão de cachaça por uma porta e saem dois por outra. Não tem controle de qualidade que dê jeito.
A trágica cachaça de Santo Amaro já ganhou muitos apelidos. Nenhum, no entanto, tão apropriado quanto o que recebeu do jornalista, compositor e poeta Béu Machado: “Essa, sim, é a autêntica saideira. O sujeito toma uma e sai dessa pra outra”.
(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)
JOÃO-DE-BARRO E A CIDADE
Pela sua beleza, arte, encanto e poesia, as casas ou ninhos feitos pela magnífica ave João-de-Barro são admirados por todos, mais ainda quando esses pássaros resolvem conviver em harmonia com o barulho das cidades. É como se a natureza estivesse se comunicando com o ser humano de que é possível valorizar a vida, mesmo diante de suas adversidades. Nossas lentes flagraram na Avenida Olívia Flores, nas proximidades do antigo Clube da ABB, quatro desses ninhos, sendo dois num poste de eletricidade e dois numa árvore ao lado. É uma prova de que os casais pretendem aumentar sua prole, não importando a agitação urbana e o vaivém das pessoas, pois a grande maioria nem percebe suas existências. Uma prova disso foi quando estava clicando. Isso chamou a atenção dos passantes, inclusive de duas mulheres quando uma chamou a atenção da outra: Olha ali no galho da árvore, duas casas de João-de-Barro! Não há dúvida de que ele é um artesão de primeira linha, que nenhum artista, por melhor que seja, faz melhor e com tanta perfeição e sabedoria. Ele faz a casa numa posição correta e protegida contra as correntes dos ventos e das chuvas. Sua arte nos leva a perguntar quanto tempo para concluir sua engenhosa construção e onde encontra a matéria-prima, no caso o barro, se estamos numa cidade e não no campo? Só mesmo o João-de-Barro sabe responder. Ficamos apenas nas conjecturas. Não é por menos que a natureza tem seus enigmas e mistérios que nem a vã filosofia e a ciência conseguem desvendar.
REVISOR DE JORNAL
Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
Em pleno sol de verão,
Na praça do poeta condoreiro,
Meu olhar se perdeu
Pela Baia de Todos os Santos,
No balanço dos encantos
Das ondas do mar do barqueiro.
Estava avexado sem emprego:
Era só desassossego,
E nem sabia,
Que naquele dia,
Ia virar revisor de jornal,
Com trabalho salarial.
Zanzei pela rua Chile;
Cruzei com a Mulher de Roxo;
Mais adiante com irmã Dulce;
Beijei sua mão;
Pedi sua benção,
Com o sinal da cruz abençoou:
Vá meu filho,
Com seu Deus Nosso Senhor.
Na velha calçada de pedra,
Ainda vi o trilho do bonde,
Rangendo como carro de boi,
Que com seu tempo se foi.
Vaguei pela praça da Câmara;
Admirei o Lacerda Elevador,
Na Catedral entrei e orei,
Do Terreiro retornei
Até o prédio do “A Tarde”;
Contei minha situação ao doutor,
E de lá sai com o título de revisor.
SE BEBER, NÃO PEGUE NO CELULAR
Bem, não me lembro qual foi a pessoa sensata, mas já ouvi de um amigo a recomendação de que se beber, não pegue no celular, talvez porque tenha se estrepado. O certo é que o alerta tem procedência e fundamento, como no caso de não dirigir bebendo. Confesso que eu mesmo já fiz muitas besteiras no volante e até no celular.
O bêbado ou a bêbada no celular faz bobagens, digita palavras erradas, assassina o português (isso já é normal mesmo sem beber), forma frases desconexas, troca as bolas e termina mandando mensagens erradas para alguém que não era o alvo. Imagina quando se trata de coisa íntima, de amante para amante e cai em outras mãos! Dá aquele quiproquó!
Conheci um amigo que encheu a cara num bar, arrumou uma gata de programa e de lá foi parar no motel. Quando estava no bem bom, a mulher liga e ele prontamente, sem se tocar, responde que estava no motel. Quando a ficha caiu, já era tarde demais!
Em casa ele tentou convencer que falou que estava no restaurante do hotel com os amigos. – Ah, mulher, estava cheio do “mé” e você entendeu errado. Na hora a língua embolou e falei motel, só que seu papo não colou, deu aquela confusão. Por isso, se beber, não pegue no celular que é bronca e pode até gerar um BO.
Mesmo quando não havia internet para ficar navegando, existia gente que quando bebia costumava apresentar vários comportamentos estranhos. Tem uns que se incorporam em pais de santos, orixás, caboclos e até saem do armário quanto ao seu gênero. Tem de todo tipo. Outros ficam ricos e se metem a comprar tudo. Agora, imagina gente assim com um celular na mão!
Certa vez, lá em Salvador, conheci um colega que era assim. Fomos a uma exposição agropecuária e ele insistiu em entrar num leilão de gado. A gente já estava naquele embalo, de tomar uma ali e outra acolá nas barracas de comidas e bebidas.
– Isso não vai dar certo – pensei comigo e falei para ele, mas não teve jeito, não parava de me chamar para esse leilão. Lá fomos nós quase que cambaleando e trocando as pernas. Só passava fazendeiro de chapéu e bengala na mão em direção ao espaço do leilão. Todos acompanhados daquelas amazonas morenas.
Nesse tipo de leilão, rola muito uísque e, quem faz um arremate, logo aparecem aquelas mulheres bonitas e não param de encher o seu copo. É para o cara ficar bebum mesmo, empolgado e cheio de vaidades!
Depois de encher a cara, o Martins Pereira começou a dar seus preços, e o leiloeiro só gritava mais e mais até chegar ao ponto de bater o martelo do maior lance. Vendido, vendido, vendido para o pecuarista seu Vivaldo, lá naquela mesa!
– Cara, para com essa merda, com essa putaria de ser rico! Não adiantou o aviso. Ele continuou entusiasmado até que arrematou um boi bonito chamado “Zulu”. Foi aquela loucura de descer uísque! O boi fica para aquele cidadão – gritou de lá o leiloeiro.
– Porra, bicho, como é que você compra um boi e nem tem pasto e fazenda para colocar o animal? Simplesmente respondeu, com a cara de pau e numa boa, que depois ia dar um jeito. O que ele queria conseguiu que foi tirar uma onda de ricaço fazendeiro.
Como conhecia um compadre amigo meu que tinha uma pequena fazenda, sugeri que ele botasse o boi naquele pasto e pagasse o aluguel ou dividisse meio a meio. Problema foi fretar um caminhão para levar o bovino até o local.
Tudo acertado e resolvido, só que dias depois veio-se descobrir que o boi bonitão e cheio de estampa era viado, bicha mesmo. Não queria saber de cruzar com as vacas do pasto. Tentou-se de tudo, mas nada. O boi era brocha. Nem precisa dizer que foi só decepção e prejuízo.
– Cara, você não aprende, deixa de dar uma de rico depois que bebe – esbravejei com ele, que já havia comprado um cavalo e uma barraca de cachaça depois de ter tomado aquelas biritas brabas. Discutiu com o dono e terminou comprando o estabelecimento. O Pereira não se emendava. Pense num moço desse nos tempos atuais com um celular enfiado na mão? Se beber, não pegue no celular.
VÁRIOS ESTADOS DOMINADOS POR BANDIDOS DENTRO DE OUTRO ESTADO
Como se não bastassem as diferenças regionais, principalmente entre Norte/Nordeste e o Sul do país, que já perduram há mais de cinco séculos, desde os tempos coloniais, temos no Brasil de hoje um Estado impotente onde existem outros estados dominados pela bandidagem.
Esses estados funcionam como territórios, zonas e bairros próprios, com suas leis e suas regras, onde seus moradores são obrigados a se submeter às ordens emanadas de seus chefões do tráfico, dos contraventores, dos milicianos e de outros grupos de quadrilhas organizadas, sob pena de serem mortos de forma bárbara e impiedosa.
Antigamente, esses estados praticamente estavam encrustados nas favelas do Rio de Janeiro e São Paulo. Nos últimos anos eles se espalharam e estão em quase todas capitais e grandes cidades. O mais irônico é que funcionam como se fossem países diferentes com suas fronteiras demarcadas na base dos fuzis e das metralhadoras.
Para visitar esses estados, o cidadão brasileiro precisa de permissão, um tipo de passaporte. Quando entra por engano é sumariamente fuzilado e fica por isso mesmo, não dá em nada. A Justiça não funciona e não manda nesses estados. Entre um Estado e outro, o pobre do contribuinte paga duas vezes impostos e taxas se quiser viver. Ambos são violentos e truculentos.
O mais lamentável nessa situação é que o Estado de Direito e oficializado só ultrapassa a linha desses outros estados com o uso de tanques de guerra, bombas, e armas pesadas. Antes de chegar em suas fronteiras, seus agentes fardados são recebidos à bala. Até para prestar algum serviço à comunidade é necessário que haja uma espécie de negociação e acordo.
Há anos que a estratégia do Estado Brasil usa métodos de violência, com mais homens e armas de grosso calibre, alegando que é a única forma de combater e acabar com esses estados do crime, só que os resultados são cada vez piores. Eles, que se dizem do lado do bem, não se convencem que estão errados.
O povo desses locais perigosos vive no fogo cruzado e já chegou ao ponto de confiar mais no outro lado, porque muitos governantes e políticos também fazem parte dessa bandidagem de traficantes, contraventores e milicianos. No lugar do social, oferecem mais violência.
Muitos dos membros dessas corporações militares terminam usando mais a força e cometendo crimes bárbaros, o que provoca mais revolta da população. Do outro lado, outros se deixaram contaminar pela corrupção e o suborno e são mais bandidos do que aqueles que já vivem no mundo da criminalidade.
Quando se fala em reformar e repensar a polícia militar, por exemplo, a única existente no mundo como essa denominação, os coronéis e comandantes revidam com argumentos vazios de que não se pode acabar com uma instituição secular, mas a questão não é o seu extermínio, mas realizar mudanças em suas estruturas. O sistema em si está podre.
QUANDO FUI REVISOR NA ÉPOCA DO CHUMBO
Com meu diploma de jornalista na mão tinha que começar a me virar porque não mais poderia morar na Residência Universitária. Era uma manhã ensolarada, ainda verão de início de 1973. Lá se vão 52 anos. Cortei o Corredor da Vitória, passando pelo Campo Grande e atravessei a Avenida Sete de Setembro já movimentada de gente naquele corre-corre da vida.
Meu destino era o velho prédio do jornal “A Tarde”, na praça do poeta condoreiro. Antes, para tomar coragem, fiz uma ronda pela Rua Chile onde cruzei com a Mulher de Roxo e mais adiante com irmã Dulce a quem pedi a sua benção. Da Praça da Câmara Municipal e do Elevador Lacerda retornei e, enfim, adentrei no jornal.
Ainda sem jeito, vindo do interior, contei minha história e minha disposição para trabalhar. A primeira pessoa com quem falei foi com dona Aia, a chefe da revisão, uma coroa negra mestiça, enxuta e simpática. Para minha sorte tinha uma vaga e não titubeei em aceitar. Não havia outra escolha. Atuar na revisão não dava visibilidade. Éramos personagens de bastidores dentro do processo jornalístico.
Ela me levou ao gabinete do redator-chefe, dr. Jorge Calmon, que me recebeu com toda aquela sua elegância de um aristocrata inglês e mandou que fizesse uma carta pedindo emprego. Foi minha primeira prova de fogo. Ele leu o texto e me aprovou para eu começar em meu novo ofício como profissional no outro dia. Pronto, estava salvo! Ali começava minha trajetória.
Naquela sala apertada, bem em frente à Baia de Todos os Santos, começava na lida ao pôr-do-sol e saia ao alvorecer da manhã. Fazíamos revisão em dupla das matérias jornalísticas depois de terem passadas pela linotipia que ficava bem ao lado da nossa. Recebíamos chumbo quente no peito durante toda noite.
Foi minha primeira experiência como jornalista profissional que me deu régua e compasso. Conheci figuras interessantes, inteligentes e bem preparadas. A gente só não gostava de revisar balanço contábil de empresas (não podia errar nos números) e pegar material do linotipista Melo porque ele melava todo papel.
Dona Aia era a nossa defensora e protetora, tipo secretária particular de dr. Jorge (havia uns cochichos), e sabia de carreirinha, decorado da sua cabeça, todas as fórmulas químicas, desde o H2O ao dióxido de enxofre SO2, óxidos de nitrogênio (NO, NO2, N2O5) ao dióxido de carbono (CO2), dentre outras composições de metais. Ficava impressionado como ela sabia aquilo tudo.
Era época de chumbo da ditadura civil-militar-burguesa do general Garrastazu Médici. A gente trabalhava em dupla no processo de revisão onde um lia o texto e o outro ia fazendo as correções das matérias jornalísticas dos repórteres. Com o avanço da tecnologia da internet, essa função deixou de existir nos jornais.
Entre o intervalo de uma revisão e outra confabulávamos informações de presos políticos vítimas das torturas e criticávamos duramente o regime. O delegado Fleury e o coronel Brilhante Ultra, do DOI-CODI, eram os maiores carrascos. Ainda bem que não havia escutas e, se existia, não sabíamos.
Seu Ariston, se não me engano vindo lá de Itabuna, era um senhor de feições duras desgastadas pelo sofrimento do tempo, bom de português, que tirava nossas dúvidas. Ele foi um dos presos torturado pela ditadura e nos contava histórias da sua ação de combate e o que passou na cadeia até ser solto. Seu Ariston ainda era muito visado e vigiado pelos agentes torturadores. Depois sumiu.
Por obrigação, tínhamos que assinar e guardar as provas para, em caso de erro, os revisores responsáveis serem repreendidos, punidos ou até mesmo demitidos. Quando isso acontecia, um protegia o outro, e arranjávamos uma maneira de dar sumiço na prova, sobretudo quando se tratava de balancete, coisa chata de se revisar.
Lembro também do nosso amigo e companheiro Antenor, homossexual que logo depois morreu de Aids. Naquela época o tratamento erra escasso. Era um jovem com grande bagagem de conhecimento e cheio de vida. Na revisão predominava o sexo masculino, mas logo depois, aos poucos, foi aparecendo mulheres, como Cora com quem gostava de atentar e chamá-la de Cora Coralina. Não sei do porquê, mas ela não gostava.
Ainda no velho prédio da Praça Castro Alves, o local da revisão era um tanto insalubre, porque ficava ao lado da linotipia de chumbo. Tínhamos que tomar muito leite. Era uma recomendação, não sei de quem. O pessoal inalava muito chumbo vindo daquelas máquinas barulhentas. Era o tempo do chamado jornal a quente.
Quando dava meia-noite, a gente ia para uma lanchonete na Carlos Gomes forrar o estômago. A conta era paga pela empresa. Foi um tempo de boas recordações e aprendizagens durante quase um ano até ser convidado para trabalhar como repórter na Editoria de Economia.














