:: nov/2024
CORAÇÃO DE PEDRA
Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
Noite clara de lua cheia,
No cio da terra,
A aranha tece sua teia,
Ouve-se o ronco das águas,
Corredeiras de lágrimas,
Lá fora rondam as feras,
E eu aqui em minha caverna,
De milhões de eras,
Com meu coração de pedra.
Meu coração,
Tem a idade da pedra,
Do neandertal,
Do pescar, caçar e colher,
Sentido do existir pra viver,
Do sexo animal,
Feliz como sempre quis,
Sem sentimento de culpa,
Nem angústia existencial,
Do seu deus que me julga,
Para a fogueira mortal.
Meu coração é de pedra,
Como do homem sapiens,
Que se debate atormentado,
Na cadeia do tempo,
Levado pelo destino do vento,
Por essa tecnologia, atado,
Que nos roubou a ideologia,
E nos fez idiotas,
Céticos patriotas,
De uma rasa sabedoria,
Ainda numa mistura
Turva e escura,
Do ancestral neandertal.
O LEITOR QUER DO ESCRITOR UMA COISA NOVA QUE O PRENDA E O FAÇA REFLETIR
Como na poesia, onde o poeta busca mostrar o invisível aos olhos dos outros, assim é o escritor que tem que oferecer ao leitor algo novo, criativo e imaginativo que o prenda e o faça refletir. Ele não quer o óbvio ululante, ou aquele texto maçante de um enredo fraco e insosso. Escrever por escrever?
Pode ser um romance, uma crônica, um conto, um artigo, um comentário sobre determinado assunto ou até mesmo uma matéria jornalística, o escritor tem que se virar para cativar a alma do leitor. Não é fácil, e é por isso que escrever é uma grande arte para poucos porque é um jogo de palavras.
É uma arte tão difícil e complicada que você não tem como agradar a todos, daí as críticas contra e a favor. Soa como uma música onde cada um tem seu próprio gosto, seu próprio estilo. O escritor pode ser comparado também a um chefe de cozinha que tem que se esmerar na comida para bem atender o paladar do cliente.
Antes de sentar em frente do meu computador, coisa que eu faço quase que cotidianamente, fiquei a pensar com meus botões: O que vou escrever hoje, mesmo diante de tantos acontecimentos, fatos e notícias que recebemos no dia a dia de nossas vidas? Não faltam assuntos, mas resolvi falar dessa relação complexa entre escritor e leitor, amigável e conflituosa.
Bem, é um tema espinhoso, mas como sempre fui dado a desafios, me atrevi de súbito a tratar dessa questão, sabendo que não devo ir muito longe para não tropeçar num buraco qualquer e quebrar a cara, mesmo porque, já estou idoso para isso. Posso parar num hospital, todo enfaixado, ou, quem sabe, pior que isso.
Acho que meu recado sobre escrever já foi dado no início. Sinceramente, sinto-me mais jornalista que escritor, cada um com suas linguagens e técnicas diferentes, embora alguém possa avaliar que o primeiro facilita muito ser o segundo.
Se mapearmos o mundo literário, vamos descobrir que grandes escritores de obras memoráveis foram jornalistas, mas isso não é necessariamente uma regra padrão. Eu mesmo me considero uma exceção. Escrevo o básico-médio. Estou longe deles. Existem também grandes escritores que não foram jornalistas.
Quando escrevo algo, faço uma prece ao leitor para que me “policie”, pois, vez ou outra, estou fugindo do assunto proposto, no caso nosso específico sobre essa coisa do escrever e prender a atenção do leitor. Apesar do brusco desinteresse pela leitura nos últimos anos, tenho ouvido cochichos por aí que ela está retornando com força, bem como o lançamento de novos livros e, consequentemente, novos autores.
Claro que esse novo fenômeno cultural é bem-vindo, mas precisamos analisar com cuidado quem está atuando bem o seu papel nessa peça artística, porque tem surgido muita gente por aí apenas por pura vaidade, para adocicar o seu ego, como se fosse mais um robe em sua vida profissional.
Escrever não pode ser apenas um robe, ou o desejo fantasioso e romântico de se apresentar para a plateia como escritor, querer ser celebridade. Essa “febre”, por assim dizer, está associada, em grande parte, ao surgimento das feiras literárias em capitais e muitas cidades do interior.
Tem gente que se apressa em realizar uma obra visando apenas lançá-la na próxima feira. Será que este autor tem compromisso com o leitor? Tem qualidade e conteúdo? Está ele no caminho certo, ou faz somente por fazer? Muitas vezes ele está enganando o leitor que, logo nas primeiras páginas, se sente decepcionado e nem termina a leitura.
Só para finalizar, existe escritor e o escritor, poeta e o poeta, como ocorre nas outras linguagens artísticas, como na música e no teatro, só para exemplificar. Uma história ou estória tem que ser bem contada e narrada, de modo que o leitor ou o ouvinte siga os passos do criador até o final. Tem gente que não sabe contar uma piada, mas se atreve e não arranca gargalhadas.
A CRISE DO NOSSO JORNALISMO
A realidade é que vivemos num mundo das crises, como a da política, sem mais líderes estadistas e humanistas, da humanidade em decadência, das mudanças climáticas com o aquecimento global, das ideias e do conhecimento, da meritocracia, do amor ao outro, da solidariedade, da confiança, da paz e tantas outras, inclusive do nosso jornalismo.
É dessa última crise que pretendo falar porque, com o avanço da tecnologia da internet e das redes sociais, se acomodou e deixou de ser questionador e investigativo em sua essência. As matérias que recebemos são requentadas e repetitivas, salvo raras exceções. É um jornalismo cada vez mais elitista, que diz só amém ao seu patrão.
Uma das principais funções do repórter é perguntar, mas se tornou numa espécie de âncora e atreve a emitir suas próprias opiniões, como se estivesse fazendo um jornalismo opinativo, coisa para colunistas setoriais. Acho que o repórter foi hipnotizado pela mosca azul da vaidade. “Ele só quer é bajulação”, como dizia nosso profeta Raul Seixas.
Vejo hoje entrevistas, seja em qualquer meio de comunicação, onde o jornalista se confunde com o entrevistado e acaba falando mais do que a fonte, como se fosse ele o especialista do assunto. No final, ainda faz suas recomendações e o que ele acha ser o certo e o errado. Isso termina confundindo a cabeça das pessoas e até desvirtua os fatos, com desvios de conduta e função.
Os blogs, em sua grande maioria, colam notícias dos outros, as rádios divulgam BOs (boletins de ocorrências), sem se aprofundar nos acontecimentos e os jornais impressos definharam e dão notícias atrasadas, publicadas pela internet, quando deveriam se aprofundar para trazer textos comentados para o leitor. A televisão virou um veículo chato e monótono que não se modernizou e avançou no conteúdo. As novelas são um saco, com os mesmos enredos.
No geral, o nosso jornalismo de hoje está mais preocupado em acompanhar as inovações tecnológicas do seu visual e do modelo da interatividade. Esqueceu do outro lado de elaborar matérias mais consistentes e convincentes. Ele foi arrebatado pela parcialidade escancarada, principalmente por parte da grande mídia que mantém seu monopólio comprometido com o capital.
Percebemos pouca criatividade e imaginação das pautas que saem das redações, bem como, a falta de um bom chefe de reportagem e de um editor para orientar melhor o repórter que sai de uma faculdade, em sua maioria deficitária na formação do aluno. Aliás, a deficiência no aprendizado já vem desde o início da sua educação.
Dentro do jornalismo, em particular, temos também a crise do diploma, inclusive não reconhecido profissionalmente e não obrigatório para atuar como profissional. A luta pelo diploma é de suma importância, mas isso não garante qualidade e mudança de comportamento. A impressão que temos é que a escola, mesmo com suas falhas, ensina uma coisa e a empresa manda fazer outra.
Pouco vemos atualmente matérias especiais de peso como as que existiam no passado mais recente, isto é, bem trabalhadas e investigativas, de forma a prender o interesse do público alvo. Sentimos falta de um produto de boa qualidade e estamos cheios do factual evasivo e vazio, com uma cara de propaganda indutora do consumismo, principalmente quando se trata do setor comercial.
Estamos carentes de um jornalismo mais informativo, mais cultural que faça o leitor, o ouvinte ou o expectador refletir sobre os fatos. Na realidade, essa crise do nosso jornalismo está associada à decadência do conhecer e do saber educacional da grande maioria da nossa gente. Mesmo assim, cabe ao nosso jornalismo também o papel de educar o povo e não nivelar seu trabalho por baixo.
O certo é que o nosso jornalismo caiu muito no seu conceito de qualificação de outrora. Mesmo com o baixo nível na educação, o jornalismo não pode abandonar a sua missão de ser um grande formador de opinião, defensor da liberdade de expressão e da justiça social na hora de expor os fatos como eles são, sem subterfúgios.
O que observamos hoje é um jornalismo mais dependente, menos crítico e contestador, sempre se posicionando ao lado do poder, como se fosse uma bancada da situação dos governantes em geral. Diante do exposto, os nossos jovens preferem ficar grudados no celular vendo memes, figuras e lendo fofocas e fake news. Por falar nisso, nossa mídia está construindo mais mentiras que verdades.
É claro que não existe um jornalismo totalmente independente e imparcial. Isso é uma utopia, mas que não seja tão chapa branca assim. Diria que o nosso jornalismo de hoje é uma vergonha, levando em consideração o seu posto de ser um dos principais personagens do poder entre os poderes constituídos. No entanto, o leigo no assunto, em decorrência do seu baixo saber cultural e senso crítico, ainda elogia esse jornalismo meia cara.
O “BANQUETE DA MORTE”
Um amigo meu perguntou quantos índios participaram do chamado “banquete da morte”, tramado pelo explorador e fundador da Vila Imperial da Conquista, João Gonçalves da Costa, que depois de uns entreveros com os nativos lá pelos idos de 1790 resolveu dar uma farra de muita comida e bebida para acalmar os ânimos.
A princípio os índios desconfiaram da generosidade incomum do João, mas após longas conversações e encontros, os mongoiós, que eram seus aliados mais próximos, convenceram as outras tribos a aceitarem o convite. Essa intermediação não foi fácil e demandou um bom tempo. Suas aldeias não ficavam perto daqui para contatos de imediato.
Uns falam em lenda e outros em verdade, mas vou contar como aconteceu toda história porque estava aqui na época e, como jornalista correspondente do jornal A Tarde, fiz a cobertura dessa tragédia, tendo ao lado meu colega companheiro fotógrafo José Silva, o famoso “Zé” dos estilingues certeiros e bom no manejo das lentes.
Meu amigo, foi por volta de 1803/06, não me lembro agora a data certa, numa noite fatídica de sábado naquelas imediações da hoje Praça Tancredo Neves, antiga Borboletas. Tudo ainda era floresta naqueles arredores que, com o passar dos anos, o homem, sem piedade, desmatou e depredou.
As brigas entre João Gonçalves, mongoiós, imborés-pataxós estavam acirradas, coisa feia como se diz no popular. Era morte para todo os lados. Depois de um acordo, muitos índios começaram a atrair os soldados do conquistador para dentro das matas e lá davam cabo dos cabras.
Com seus planos diabólicos e maquiavélicos, João Gonçalves decidiu oferecer um tremendo banquete para selar nova paz. A notícia se espalhou por todos os cantos e eu soube do fato tomando uns gorós brabos com uns índios mais chegados, na oca do “Kai Duro”, localizada no pé da serra. Era um tipo boteco. A cachaça, com tira-gosto de caças, era de derrubar até os mais chegados a uma birita quente, do tipo tequila mexicana.
Sei que já estão querendo saber quantos índios foram ao banquete, mas tenham calma que digo mais na frente. Como repórter, não bicava com o João. Fatalmente seríamos barrados pelos seus guardas, cerca de 70. Foi aí que eu e o “Zé” tivemos a ideia de trajarmos como índio, com todos apetrechos e pinturas. A festa era de arromba, ou de tiros e porretes!
O “Kaiapó”, que nos preparou, alertou que o esquema ia dar problema e confusão, mas jornalista tem que ser destemido e se disfarçar nas horas certas para ir em busca da informação. Bem, o boato se alastrou e muitos nativos (imborés-pataxós) alertaram que a festa não passava de uma emboscada do temido João, mas na hora de comer e beber na base do 0800, a turma cai dentro.
Quando o sol despediu do dia com seu poente rajado cor de sangue e a noite entrou com seu breu, os índios, pouco a pouco, foram se achegando com suas lanças, flechas e tacapes. O João, que não era nada besta, recebeu a todos gentilmente e pediu para ninguém entrar armado. Afinal de contas, aquela noite era para celebrar a paz. No entanto, ele mandou seus homens esconder suas espingardas no mato, ali por perto.
Pois é gente, eu e o “Zé” ficamos de longe só espiando o movimento e esperando a hora exata de entrar na cabana do comandante sanguinário. Por precaução, escolhemos a aproximação de um grupo maior para nos misturarmos no bolo e, foi assim, que conseguimos nosso feito.
Cara chato e sacana que fica com arrodeios e não revela logo a quantidade de índios – deve estar imaginando o leitor. Isso é um dado principal para abertura da matéria, e aí ele fica fazendo o tal “nariz de cera”. Vi um soldado cochichar no ouvido do explorador e avisar que estavam entrando penetras. Aquilo me deu arrepios.
– Conheço vocês de algum lugar, não me são estranhos. Qual tribo pertencem? Quis saber o João, todo sisudo e com jeito de matador- vingador. Só em olhar para o portuga já dava um frio na barriga.
Como já era noite, despistamos. – O senhor deve estar se enganando, somos da tribo “Kaiçara”, daquelas bandas de José Gonçalves e Caetanos. Ele fez de conta que acreditou e virou as costas. Por falar nisso, pela minha contagem, naquelas alturas já haviam adentrado no recinto cerca de 110 índios, mais ou menos. A noite prometia! Já tinha muita gente chumbada e cambaleando.
Depois do ritual da dança e de fumar o cachimbo da paz, todos se sentaram para o grande banquete na folha da bananeira. Comidas e bebidas exóticas em fartura! Lá pela meia noite, todo mundo já estava cheio do pau. Como estávamos de trabalho, eu e o Zé evitamos beber e ficamos atentos a qualquer imprevisto.
Moço, não lhe conto! Lá pelas tantas, quando a bebedeira já havia invadido o cérebro dos convidados, os guardas do João entraram pipocando. Foi aí que a gente, como muita sorte, escapuliu pelos fundos. Ganhamos a floresta e fomos parar na sucursal onde hoje é a rua Dois de Julho.
O “Zé”, com sua estratégia matreira, tirou a maior parte das fotos. – Vamos cair fora dessa zorra “Zè”, antes que o fogo sobre para nós! Foi um massacre dos diabos, mas ainda se salvaram uns 20 índios na correria desatada, justamente aqueles que não eram muito dados a beber. Assim se deu o tão propalado “banquete da morte”, banhado de muito sangue e tirania.
No outro dia, mandamos a matéria escrita à mão e as fotos no lombo dos burros dos tropeiros que cortavam esse sertão, passando pelo povoado de Jequié até o litoral de Itaparica e de lá seguiram de barco até o periódico. A reportagem saiu quase um mês depois, mas, mesmo assim, era coisa quente e furo jornalístico de primeira.
O João ficou tiririca da vida, espumando de raiva e sabia que tinha sido a gente, mas não podia fazer muita coisa, pois o seu rei de Portugal (olá, meu caro portuga Luís Altério!) lhe deu uma tremenda comida de rabo. Ficamos jurados de morte e, pouco tempo depois, A Tarde nos transferiu para Ilhéus.
Tempos depois nos acertamos e até fizemos diversas entrevistas com o João, já velho e cansado de guerra, lá em sua fazenda em Manoel Vitorino. Sobre esse lendário do além-mar, que fundou o arraial, hoje com quase 400 mil habitantes, falamos no próximo papo, isto se vocês quiserem.
O ATORMENTADO CORAÇÃO DE PEDRA
Mesmo diante das dificuldades e intempéries da vida, sempre nos encorajam para termos esperança e fé, mas, a realidade é que elas estão se esvaindo e definhando para milhares e milhões de pessoas, massacradas por esse bruto sistema. Sei que muita gente prefere a outra linguagem do otimismo, porém não devemos nos iludir.
Habitamos um mundo hoje tão desumano e cruel que o ser se tornou um atormentado coração de pedra. Isso me faz lembrar de um indivíduo que levou um balaço nesse órgão vital do nosso organismo e sobreviveu. Depois desse acontecido, passaram a chamá-lo de “coração de pedra”, mesmo sendo uma pessoa bondosa e crente.
No sentido figurado, temos aquele coração de pedra do ser insensível ao sofrimento do seu “semelhante”, do tipo do personagem humorístico de Chico Anísio no papel do deputado que num certo momento do diálogo abre a boca e diz: “Quero mais é que o pobre se exploda”. Não precisa necessariamente ser pobre de dinheiro.
O corrupto, o egoísta que só pensa em si, o golpista, o falso amigo, o mau caráter, o antiético, o imoral, aquele que já trata a coisa anormal como normal, o incomum como comum, o ilegal como legal, todos eles têm corações de pedras, mas não vivem atormentados e até dormem o sono dos anjos, sem mais remorsos na consciência. Aliás, nem possuem mais isso.
Do outro lado, existe o atormentado coração de pedra. Diria que é aquele resistente e forte que, mesmo desaprovando e contestando as injustiças sociais, continua travando essa luta contra todas as adversidades. É como um sobrevivente em alto mar depois do seu barco ter sido afundado pelas ondas agitadas ou arrebentado nos rochedos.
Este elemento até gostaria que seu espírito tivesse desprendido do seu corpo porque não suporta mais assistir tantas imbecilidades, futilidades e idiotices. Seu esclarecimento e visão das coisas erradas o atormenta e o faz cada vez mais sofrer, mas seu coração é de pedra.
O descrente de que a humanidade vai melhorar, de que ainda se possa deter o aquecimento global depois do rombo que fizeram no planeta, de que as fronteiras dos países ricos serão abertas pelos poderosos, de forma que passem os desvalidos e refugiados famintos, de que a justiça e a igualdade virão para todos, é um atormentado coração de pedra.
Esse termo coração de pedra não é usual, assim repreendeu um amigo meu que não concorda com esse meu pensamento, de acordo com ele, pessimista. “Esse negócio de atormentado coração de pedra é coisa da sua cabeça de queixoso lamentador” – respondeu-me em tom ríspido.
Ele ainda acredita no amor ao próximo, no mar de rosas, que o ser humano vai se regenerar, de que a vida ainda é bela e que precisamos sempre confiar nos outros porque bons tempos virão de respeito mútuo onde haverá um humanismo pleno na face da terra.
No final da conversa, não muito amistosa, me chamou de atormentado coração de pedra, não daquele moço que literalmente foi vítima de uma bala no peito e não morreu. Morte é outro assunto um tanto pesado e mórbido que a grande maioria evita comentar.
Encerramos por aqui esse papo cruento que tivemos numa mesa de bar e passamos para as amenidades corriqueiras do dia a dia, como futebol e fofocas sobre a vida dos outros. Nada como uma gelada para se esquecer das desgraças, da violência e dos tormentos humanos, como a depressão.
Afinal de contas, estamos próximos do Natal e vêm aí as campanhas dos presentes e das doações das cestas básicas. As lojas já estão se enfeitando para o “Natal sem Fome”. As praças começam a ser iluminadas e as residências a montarem suas árvores. Todos serão felizes para sempre e nada de coração de pedra. Feliz Natal antecipado.
“UMA HISTÓRIA DO MUNDO”
COMO SE FORMOU A PRIMEIRA CIDADE
COMO NASCEU O PRIMEIRO DEUS ÚNICO
COMO FOI INVENTADA A CULPA
Numa linguagem pedagógica e num tom simples metafórico de gozação que prende o leitor, sem aquele academicismo pesado, o jornalista e escritor de vários romances, David Coimbra começa esta obra falando do homem de neandertal que durante cerca de dois milhões de anos (outros apontam seis) viveu feliz em suas selvas, caçando, pescando e colhendo, sem pensar no futuro. Seu esquema era viver o dia de cada vez.
Costumamos afirmar que a gente era feliz e não sabia quando nos referimos há 50 ou 60 anos ainda meninos com aquelas brincadeiras tradicionais do nosso tempo onde crianças e jovens respeitavam os mais velhos e a humanidade era mais humana, sensível e solidária. Pois é, mas Coimbra nos faz entender que a felicidade total estava mesmo no neandertal solteiro de um metro e 65 centímetros, forte e cheio de músculos.
Tudo era inocência que nem se sabia que o homem era um reprodutor. O sexo era grupal, sem culpa, e a mulher ficava na caverna esperando o caçador. Quando engravidava, achava que era da lua cheia ou de um mosquito qualquer que lhe picava no rio. Veio, então, o sapiens sapiens, há 120 ou 130 mil anos, e começou a bagunçar tudo. Nessa passagem, a mulher domesticou o homem e criou a civilização a partir da agricultura. Ensinou também o sapiens a domesticar e a criar animais para o abate.
Segundo Coimbra, alguns cientistas desconfiam que haja traços de neandertal em certas pessoas do século XXI. Pode ter havido relação amorosa entre um neandertal e uma sapiens sapiens. Em sua visão, os neandertais eram mais masculinos do que nós. Saia em bandos de machos para caçar, pescar e colher, arrastar uma fêmea pelos cabelos, pegá-la no colo, jogá-la no solo e fazer dela mulher. Não arava a terra, não acumulava e nem constituía família. Não meditava sobre a existência e não se angustiava ao ponto de cair em depressão.
As sapiens queriam era criar seus filhos e, para isso, teve que domesticar os machos. Inventaram a agricultura, tornando impossível o deslocamento por serras, praias e florestas. De nômades a sedentários, fundaram a civilização, a política, a economia, a ganância, a angústia e o psicanalista para curar seus tormentos.
Hoje, o homem solteiro que bebe com os amigos, não reclama da solidão e cativa outras mulheres, é o fracasso das mulheres. Foi por isso que elas inventaram o amor romântico, “que deve seu prestígio à Idade Média quando o cristianismo temperou o sexo com a culpa e elevou o espírito em detrimento da carne”. Esse cristianismo tornou vulgar o prazer e sublime o sentimento. O amor romântico transformou-se na forma de dar sentido à vida humana neste Vale de Lágrimas.
O neandertal não precisava procurar o sentido da vida, porque o sentido da vida era viver. O escritor, com leveza sarcástica, escreve que o ócio feminino matou o neandertal. “Quem inventou o trabalho não tinha o que fazer”. Durante dois milhões de anos de alegria e vadiagem, o homem não trabalhou.
Tanto um como o outro (neandertal e sapiens) viviam para comer e se reproduzir. Freud dizia que tudo na vida é casa, comida e sexo. Lá atrás, o homem nem sabia que fazia filhos. Tudo piorou quando se passou a pensar no futuro há mais de 70 ou 100 mil anos, tempo que o neandertal e o sapiens partilhavam o planeta, caçando e coletando. A agricultura deve ter surgido há 10 mil anos e dela vêm a propriedade e a herança.
A mulher, nas baladas loucas da caverna, ao transar com um chefe do clã, de acordo com Coimbra, foi quem descobriu a reprodução através do sexo. Antes ela viu um casal de filhotes de animais, caso do lobo, ancestral de todos os cães do mundo, copulando e depois parindo. Ficava na caverna cuidando dos filhos e começou a plantar as primeiras sementes extraídas dos frutos que o homem trazia.
Como foi dito antes, da agricultura vieram a propriedade e a herança, mas como o macho poderia ter certeza que o filho era dele para ter o direito de ficar com seus bens? Só a mulher tinha porque o filho saia da sua barriga.
Naquela época não havia laboratório para fazer o teste de DNA. A forma segura foi obrigar a fêmea a fazer sexo só com ele. Lá vem a monogamia, subproduto da herança. Os homens podiam ter várias mulheres, mas, com o tempo, elas não se submeteram a essa nova ordem. Os problemas estavam só começando.
DESPEDIDA
Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário, há 60 anos.
Voam aves da inocência,
De galhos em galhos,
Cantam a liberdade,
No frescor da abundância.
Os tempos passam,
A escassez aparece,
Surrupia a alegria,
Alastra o sofrimento,
Piedade Senhor!
Ao menos, escute minha prece!
Se a natureza,
Sente-se compungida,
Pela seca esturdiada e virulenta,
O mar encanta a jangada lenta,
Por que ulular o véu da vida?
Passam anos e os dias chegando,
Abrem as cortinas da cena.
Deparo num futuro;
Vou meditando,
No claro ou no escuro.
Passageiros!
Folheai o opíparo livro,
E vedes capítulos ataviados,
Com nossos nomes d´alma
Em fé livre,
Nesta história decadente,
De dias atormentados.
Quantos aqui se ingressaram,
Daqui se foram saudosos,
Dessa gleba se formaram,
Estandarte de braços amorosos!
Adeus farol, adeus timoneiro,
Que nos desviaram das pedras!
Adeus luzeiro;
Sigo em livre mar.
O vento que soprou em doidivanas,
Não conseguiu…
Mesmo forte me arrastar.
Senhor Deus!
Ouvi-me, Senhor Deus!
Se na terra,
Como sementes não crescemos,
Se foi egoísmo,
Nos castigue,
Dai-nos forças,
Para distantes vencermos.
Amigos!
Para aonde vão?
Bate o adeus;
Tartamudeia minha voz.
Já é hora da partida:
Um dia nos veremos,
No além do além.
Enxuguem suas lágrimas,
Nesse grito de despedida.
O MATUTO E A TECNOLOGIA
Tudo hoje é movido pela tecnologia que está destruindo o próprio homem, embora ela tenha suas vantagens de facilitar a vida, conforme se extrai das opiniões praticamente unânimes. Disso quase todos sabem, mas agora imagine um matuto que sai do seu sertão agreste e se mete em visitar a capital.
Foi o que aconteceu com seu Carmerindo que juntou um dinheiro da venda de seus produtos da roça e botou na cabeça que ia conhecer a cidade grande, aquela que ele via passar na televisão e ouvia falar naquele rádio modelo antigo que seu pai lhe deixara como herança.
A mulher chamou ele de maluco, mas o cabra tinhoso arrumou a mala com algumas peças de roupa e uma boa grana para se hospedar num bom hotel. Seu compadre, que até tinha vontade de também fazer aquela aventura, o incentivou e foi logo dizendo que com dinheiro tudo ia dar certo. Carmerindo é mesmo um sonhador.
A viagem foi longa passando de cidade em cidade até desembarcar na capital. Seu Carmerindo, com seu chapéu de couro típico nordestino ficou assustado com aquele formigueiro de gente pra lá e pra cá. Uma correria dos infernos – imaginou.
O motorista malandro ao ver aquela figura esquisita se aproximou com seu papo envolvente e se prontificou a lhe arrumar um carro para lhe levar ao hotel, cujo nome trazia escrito no papel em seu bolso. Tinha alguma coisa ligada com citytur, coisa de gente chique.
Os carros cortavam velozes entre avenidas, viadutos e arranha-céus de concreto. Seu Carmerindo ficou deslumbrado enquanto o cara rodava com ele dando voltas fora do itinerário para lhe cobrar um preço bem mais caro até chegar ao ponto marcado.
Agradeceu a “gentileza” com um aperto de mão, pagou em dinheiro vivo e se dirigiu àquela porta de vidro que como mágica se abriu sozinha antes dele encostar a mão. O matuto ficou espantado e até se sentiu importante. Lembrou da conversa que teve com o compadre sobre ter o dinheiro, de que tudo podia.
Ao entrar, com aquele traje de tabaréu do campo, ficou ali parado sem saber para onde ir, mas Carmerindo era destemido. Vendo aquele estranho, o “fardado” empregado pediu que ele se retirasse do recinto.
– Moço, só quero um quarto parta ficar e tenho dinheiro para pagar. Vim conhecer a capital e ver o mar pela primeira vez.
– Passe por aquela porta giratória e fale com um dos nossos atendentes atrás da mesa.
Ele pensou que esse negócio de giratória não cai bem em sua terra e ficou cismado, mas, como já estava ali tinha que seguir em frente. Meio troncho e se batendo, saiu do outro lado e viu aquela gente atrás de umas máquinas, como se fossem robôs.
– Boa tarde, venho lá do meu sertão onde o sol brilha todo dia e o orvalho cai na madrugada. Com os primeiros raios sempre dizemos Deus seja louvado.
O recepcionista, que nunca tinha presenciado aquela cena inusitada, deu uma boa tarde imperceptível de gente fria e de pouca sensibilidade humana. Esse pessoal pouco rir e força uma falsa educação.
– Moço, quero um quarto para pernoitar e esticar as pernas depois de uma longa viagem calorenta. Quanto pago?
O preço lhe deixou meio zonzo, mas não dava mais para recuar. O recepcionista fez sua ficha, como nome, profissão, endereço e outros protocolos costumeiros. Depois, deu-lhe um cartão magnético com as instruções para pegar o elevador e abrir a porta do apartamento. Antes, porém, lhe perguntou a forma de pagamento, se no cartão, pix ou através de aplicativo.
Pelo andamento da carruagem, não vai tardar o desaparecimento do dinheiro em espécie, não mais caixas eletrônicos e nem essa coisa de banco onde as pessoas naquelas enormes filas vão resolver seus “pepinos”. Tudo vai ser via internet. Profissão de bancário vai se acabar com essa tal de inteligência artificial.
–É no dinheiro mesmo, e abriu um pacote que trazia em sua mala de couro cru. Nem sei que troços são esses que o senhor está falando.
Seu Carmerindo deu aquele pulo para trás e pediu uma chave, daquelas que você coloca na fechadura e abre rapidinho.
– Não usamos mais isso, meu cidadão. É uma questão de segurança. Tudo hoje é comandado pela tecnologia.
Coisa do diabo dessa tecnologia moderna que se vê nas propagandas – lembrou daquelas imagens. Como foi orientado, no elevador ele introduziu o cartão naquela fresta, mas nada do elevador obedecer a ordem de comando. Acende uma luz verde, mas nada.
O matuto sai de lá virado no mói de centro ou do cão e suado começa a esbravejar. Nesses hotéis de hoje não existem mais aqueles carregadores de mala que lhe levava até o andar, abria a porta, entrava e ainda ensinava como ligar a televisão e o ar condicionado. É a máquina substituindo a mão-de-obra.
Furioso, joga o maldito cartão na mesa e sai arretado pela mesma porta giratória. De tão puto da vida pegou o primeiro taxi na porta do hotel e naquele trânsito maluco se picou para a rodoviária, sem nem olhar para trás. No entanto, para não perder a viagem, pediu ao condutor para ver o mar, como era o seu desejo.
Pensou consigo mesmo que aquilo ali era coisa de doido e nunca mais iria pisar os pés numa capitá. Bom mesmo de viver feliz é na nossa terrinha onde se ouve o canto dos pássaros ao amanhecer, o berro da vaca e a chuva molhar o chão para a semente germinar.
–
NÃO É FÁCIL, NÃO!
(Chico Ribeiro Neto)
Não é fácil, não, cidadão, ter que saltar do caminhão, abrir o coração e aguentar a corrupção.
Não é mole, não, resistir ao desespero, a esse seu tempero e a tanto esmero.
Estender a mão, morar em pensão, conviver com a solidão e ver assombração.
É difícil, irmão, passar no vestibular, esse cara devagar e não chorar no luar.
Mudar de moradia, sofrer de azia e essa vida vazia.
Não é fácil, não, espinho no pé, cair o picolé e a cara de Seu Zé.
Filho doente, cerveja quente e a cara da gente.
Pular daquele rochedo, engolir calado e sentir que tem medo.
Ter que dizer Não, ver uma agressão e o resultado da eleição.
Não é mole, não, irmão, sentir saudade, ver tanta maldade e violência na cidade.
A viagem de volta, segurar a revolta e abrir a comporta.
Pedir guarida, a viagem de ida e essa vida.
Café frio, olhar absorto e passarinho morto.
Lidar com o “cidadão de bem”, com o desdém e ter que dizer Amém.
É difícil, irmão engolir o óbvio, dispensar o necessário e entender o vário.
Televisão quebrada, entupiram a privada e o silêncio da madrugada.
Não é fácil, não, já dizia minha tia, engolir problema é soprar poesia.
Joelho inchado, o vizinho do lado, carro quebrado e IPVA vencido.
Não é mole, não, dor de barriga no meio da rua, aposta ganha não foi a sua e a verdade nua e crua.
Peido no Elevador Lacerda lotado, sanitário de barzinho e ver destruído um ninho.
Não é fácil, não, irmão: acreditar que Maria vai voltar, que aquela coisa vai mudar, que esse mundo tem jeito, que vai imperar o respeito, que vamos melhorar cantando Belchior e que iremos desta para melhor.
(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)
MEU “VELHO CHICO”!
Dizem que ele tem 523 anos desde que um tal de Américo Vespúcio e sua turma de exploradores gananciosos depravados o viram em sua foz e lhe “batizaram” de São Francisco em homenagem ao santo. Isso não passa de uma grande mentira porque ele tem milênios de anos desde que nasceu lá nos Gerais, na Serra da Canastra, e era conhecido como Oporá (rio-mar) pelos índios. O Vespúcio não batizou coisa nenhuma. No entanto, não é disso que quero falar. É que sempre que visito o meu “Velho Chico”, sinto-me na obrigação de fazer um registro depois de lhe pedir a benção. Após aquele estrago todo há uns oito anos, aparentemente ele vai bem com suas águas banhando as margens e sustentando os ribeirinhos. As embarcações navegam pra lá e pra cá cheias de gente que apreciam suas belezas naturais. Os empresários das frutas só querem saber de irrigar suas plantações com suas águas. Acontece que, de lá para cá, depois da seca rigorosa que o castigou severamente, ninguém fala mais em revitalizá-lo. Continuam jogando esgotos em seu leito sujo, como ocorre em Juazeiro, que se transformou na capital das muriçocas. O homem é um animal perverso e irracional quando se trata de preservar o meio ambiente. O negócio é só retirar e nada de retribuir. É um tremendo ingrato e burro, sem contar que é um desmemoriado e destruidor de si mesmo. Mais uma vez, a benção, meu “Velho Chico”, e perdoe seus algozes, se for possível!















