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:: ‘Encontro Com os Livros’

FATOS CURIOSOS DO NORDESTE

CANGA E CANGAÇO

Existem muitas controvérsias em relação às origens do termo cangaço (cangalha). Para alguns estudiosos do assunto, sua origem vem de “canga” e surgiu no século XIV. Arrumação de madeira sobre telhados de palha, peça para prender junta de bois a carro ou arado. Pode ser instrumento de suplício chinês, ganga, domínio, opressão. A origem poder ser ainda quicongo kanga de nhanga. Outros falam da origem tupi acanga. Há quem diga que o termo cangaço é de origem africana.

GATO

Quando já era membro do bando de Lampião, certa feita o cangaceiro Gato pediu permissão ao chefe para irt visitar seus parentes. Aproveitou a ocasião para massacrar toda família. Como não tinha mais pais vivos, matou a avó, duas tias, quatro irmãs e dois primos. Adolfo Meia-Noite, de Afogados do Ingazeira, Pernambuco, foi espancado pelo tio para não cortejar sua filha. O cangaceiro se vingou e assassinou o agressor.

CIVILIZAÇÃO DO COURO

Para o pesquisador João Capistrano de Abreu, ao falar sobre a civilização do couro, dizia que essa pele era muito usado nas portas das cabanas, no rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde serviu de cama para partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforge de levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, ou para apurar sal; as broacas e surrões, a roupa de entrar no mato; os banguês para curtume.

A CAATINGA E SUAS DIVISÕES

A caatinga é o bioma predominantemente nordestino único no mundo, mas tem suas subdivisões. Dentro dela temos o Sertão (sete milhões de hectares), o Seridó, com 3,5 milhões, o Agreste (seis milhões de hectares, o Brejo e a Mata. Na caatinga, os solos podem ser rasos, de origem arqueana, como em Pernambuco. O Agreste do Piauí é todo em formação sedimentar, a topografia é bem plana e o solo carece de corretivo. Entre a Mata, parte chuvosa e a Caatinga interior, está o Agreste.

A ESTRADA DE FERRO

De acordo com o pesquisador Robert Levine, a estrada de ferro não só possibilitou novas ligações com a costa, como implementou mudanças no modo de vida do sertanejo. Numa região onde os únicos eram padres missionários, chegavam agora imigrantes para trabalhar como engenheiros das ferrovias. Mil trabalhadores vieram da Sardenha e da Itália, sendo a maioria de Turim, isto na segunda metade do século XIX. Os missionários evangélicos não eram bem vistos pelos católicos. Conta que o escocês David Law foi expulso de fábricas de Recife por distribuir e divulgar livros religiosos para os operários.

DE BELÉM PARA O NORDESTE

Quando o imperador D. Pedro II visitou lugares sagrados no território da Palestina, em 1887, conversou com autoridades locais que conseguiram recursos na França e enviaram grupos de Belém para o Nordeste. Essas pessoas, em sua maioria, foram morar no Ceará e no Piauí, mas não suportaram as duras condições climáticas e nem se adaptaram à cultura local. No entanto, em 1930, os árabes, sobretudo de origem palestina, controlavam o comércio atacadista de Recife.

ESTRANGEIRAS

As empresas estrangeiras, especialmente as ferroviárias, não eram bem vistas pelos cangaceiros porque serviam para transportar as forças volantes e transmitir informações. Lampião chegou a capturar representantes de vendas da Standart Oil e da Souza Cruz no sertão. Servidores que atuavam em empresas nacionais e estrangeiras levavam muitas notícias para aquelas áreas. Em Mossoró, no Rio Grande do Norte, entre 1872 e 1874, pelo menos dezoito firmas estrangeiras se registraram na cidade.

MINORIA DE ESCRAVOS

Na segunda metade do século XIX, os escravos existentes no sertão nordestino eram minoria e de interesse econômico menor do que os trabalhadores livres. No casso específico do cangaceiro romântico Jesuíno Brilhante, podia-se dizer que ele não fazia parte dos mais pobres. Era originário de uma família de posses.

RASO DA CATARINA

Os historiadores, de uma forma em geral, descrevem o Raso da Catarina (seis mil quilômetros quadrados), entre Paulo Afonso Glória) e Jeremoabo, na Bahia, como uma região inóspita e muito seca, de difícil acesso. Lampião e vários grupos de cangaceiros sempre utilizaram esse deserto dentro da caatinga como esconderijo, pois as volantes evitavam entrar ali, temerosas de enfrentarem as agressividades e a inclemência do clima.

SUBORNO DE POLICIAIS

Desde o início do cangaço, na segunda metade do século XIX, a maioria dos policiais era subornada pelos cangaceiros que requisitava dinheiro dos vilarejos para pagar os chamados “macacos”. Uma pequena parte dos roubos era distribuída entre os pobres, como fazia Antônio Silvino. Foi assim que ele chegou a conseguir apoio popular. As extorsões não tinham como principal objetivo redistribuir renda, mas assegurar quantias necessárias para si e para seus homens. Uma pequena porção do coletado era para os pobres.

GUERRA DO PARAGUAI

O historiador Ulysses Lins de Albuquerque narra que o “coronel” Tomás de Aquino Cavalcante, em 1866, como diretor dos índios carnijós, convocou todos eles para uma reunião em frente da Cadeia Pública de Águas Belas. Mandou a rapaziada entrar no salão e então anunciou que o pessoal teria que ir lutar na Guerra do Paraguai. Os indígenas foram algemados e enviados para Recife e, em seguida, para o combate.

O FIM DO CANGAÇO E SEUS MOTIVOS

Desde Jesuíno Brilhante, passando por Antônio Silvino a Lampião e Corisco, entre o final do século XIX até as quatro primeiras décadas do século XX, o cangaço durou mais de 50 anos e viveu seu auge a partir dos anos 1920. Alguns historiadores e pesquisadores falam do “arcaico” ao moderno e outros que houve o pré-cangaço e o cangaço, que vigorou até 1940.

Para entender melhor os motivos que levaram ao fim do cangaço no Nordeste temos que recuar um pouco no tempo quando nas primeiras décadas as forças volantes eram deficientes, despreparadas, mais violentas com a população, corruptas e os chamados “macacos” não podiam atravessar as fronteiras de outro estado em perseguição aos bandoleiros.

Até por volta de 1930, os vínculos dos cangaceiros com os coronéis, donos de engenhos, fazendeiros e os próprios políticos eram mais fortes e muitos contavam com os serviços deles para resolver encrencas com seus adversários. Isto tudo começou a ser desmantelado no Governo de Getúlio Vargas, com o fim dos “coronéis de patentes” que representavam a Guarda Nacional criada a partir de 1831.

Por outro lado, os estados nordestinos, em sua maioria, fizeram um pacto ou acordo de ajuntamento das forças para combater o cangaço, abolindo a proibição de uma força de uma província entrar na outra para lutar contra o banditismo. Esta medida contribuiu em muito para enfraquecer o movimento.

O autor da obra “Os Cangaceiros”, Luiz Bernardo Pericás, destaca que a quantidade de foras da lei no Sertão e Agreste nordestinos no final do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX causou grande impacto econômico e cultural na região.

O pesquisador cita que teriam lutado, somente ao lado de Lampião, durante os anos em que esteve em atividade, mais de quinhentos bandoleiros. Há estimativas que tenha havido mais de mil baixas de ambos os lados, ou seja, polícia e criminosos. Optato Gueiros chega a afirmar que só em Pernambuco, onde o cangaço foi mais atuante, foram presos ou assassinados mais de mil cangaceiros.

Pericás aponta que os aspectos tecnológicos, logísticos, humanos e políticos tiveram grande contribuição para pôr fim ao cangaço. Após o assassinato de Lampião, o único “grande “ cangaceiro que restou foi Corisco, que não tinha as mesmas habilidades e qualidades do companheiro. Como a maioria se rendeu, o número de asseclas que poderia seguí-lo se reduziu em muito.

“Uma atuação maior da polícia, ofertas e garantias de vida para os que se entregassem, aperto ao cerco contra os bandidos, utilização de armas pesadas e modernas por parte das tropas, aumento de verbas federais para o combate aos quadrilheiros, a vontade política de Vargas para acabar com o banditismo que manchava a imagem do Brasil lá fora, a perda da força dos “coronéis”, a perseguição aos coiteiros, a presença da União nos assuntos do Sertão, foram alguns dos motivos para o término do cangaceirismo”.

A filmagem de Virgulino por Benjamim Abrahão Botto, mostrando ao mundo a existência de uma país supostamente “arcaico” e atrasado, fora da lei, que afrontava e desrespeitava a ordem jurídica vigente no novo regime, foi a gota d´água para eliminar os cangaceiros.

Luiz Pericás assinala ainda ser importante lembrar que muitos “coronéis” perderam seu prestígio e deixaram de apoiar os bandos. Muitos oficiais da polícia corruptos, que forneciam armas para os grupos, resolveram parar de negociar e seguir as ordens das autoridades estaduais.

A quantidade maior de soldados, todos dispostos e bem armados, dificultou a ação dos bandoleiros e fez com que muitos abandonassem o crime. Nos tempos passados, os “macacos” e sertanejos contratados para o combate recebiam pequenos soldos atrasados e, às vezes, até com dinheiro falso dos próprios governantes. Não existiam motivações por parte das volantes que eram mais violentas com o povo do que os próprios cangaceiros.

ENTRE O ARCAICO E O MODERNO

Uma das peculiaridades nordestina é o seu misticismo religioso, que ainda perdura até hoje. Os cangaceiros não fugiam disso, mas os tempos foram se modernizando e os sertanejos de um modo geral tiveram que conviver entre o arcaico e o moderno.

Dentro desse quadro, o folclorista Câmara Cascudo descreve que o sertão achava que a chuva vinha do céu e o trovão era castigo. O sol se escondia no mar até o outro dia. “Imperavam tabus de alimentação e os cardápios cheiravam ao Brasil colonial. Mandava-se fazer uma roupa de casimira para durar toda existência”.

Luiz Bernardo Pericás, em sua obra “Os cangaceiros” falava que o sebastianismo também estava arraigado na cultura oral, tanto de místicos como de cangaceiros. O povo do interior achava que algum dia o rei de Portugal, D. Sebastião, sairia das ondas do mar com todo seu exército e entraria no sertão para salvar os nordestinos das injustiças e da miséria.

No tempo arcaico, os livros mais lidos eram Lunário Perpetuo, a Missão Abreviada, o Dicionário da Fábula e o Manual Enciclopédico.  Só homens iluminados liam o Lunário. A Missão também foi muito difundida no sertão nordestino na metade do século XIX. Era a principal obra dos beatos, “profetas” e religiosos leigos.

A religião, seja a institucionalizada ou popular, utiliza os instrumentos acessíveis do contexto em que está situada. De acordo com Pericás, assim, um conjunto de tradições solidificadas determinará o sentido do normal, do aceitável, do permitido e do proibido. Os códigos morais e as leis não escritas não precisam ser impostos pela força.

No caso do sertão, o que se constatou foi uma religião vinda de fora que se impôs lentamente por meio da penetração dos colonos portugueses e mamelucos e se modificando ao longo do tempo. Qualquer elemento de fora que pudesse pôr em risco ou aparentar ser uma heresia, era rechaçado. Um exemplo disso é que os sertanejos não aceitaram levar dromedários para o Nordeste. A população se assustou quando levaram esses animais de Argel para o Ceará porque vinham acompanhados de árabes a caráter, inclusive com turbantes. Para os cristãos, eles eram inimigos hereges.

Em 1894, o missionário escocês Henry John e auxiliares chegaram a Garanhuns para pregar o evangélio. Eles foram recebidos com resistência pelo pároco local que convocou a população para perturbar e impedir a pregação. Num missa, o padre disse aos fiéis que havia chegado o satanás na cidade. Em torno de 200 cidadãos, carregando facões, foram atrás dos missionários, arrebentaram a porta de entrada do edifício onde se reuniam, destruíram o púlpito e os bancos da sala de culto.

Nas primeiras décadas republicanas, o império permaneceu entranhado nas mentes sertanejas. Em novembro de 1897, um cangaceiro emboscou uma patrulha policial, matou dois soldados e gritou vivas a Antônio Conselheiro e à monarquia. Era enorme o respeito dos cangaceiros pelos clérigos e aos santos católicos.

Conta Pericás que houve casos de padres que benzeram cacetes de jagunços antes dos combates. Padre Macário chegou a ser chefe de cangaceiros. Cangaceiros molhavam seus punhais em água benta e carregavam medalhas com imagens religiosas. O padre Mato Grosso, de Uauá-Bahia, chegou a dizer que Lampião era um enviado de Deus. Em dezembro de 1929, o “rei do cangaço” deu dia santo e feriado em Queimadas, além de ter batizado crianças e realizado casamentos.

Quase todos os cangaceiros importantes diziam ter o corpo fechado. O bandoleiro Cobra Verde garantia que Jesuíno Brilhante tinha o diabo no corpo. Apesar de toscos, os bandoleiros sabiam da existência das inovações tecnológicas e tinham noção do ambiente cosmopolita das grandes cidades. Lampião, por exemplo, se apropriava de tudo quanto era novidade, como lanterna elétrica, capa de borracha, binóculo e até garrafa térmica, para melhorar a vida do seu bando. Portanto, eles foram se adaptado ao moderno, bem como a população sertaneja.

Em sua bolsa, Lampião carregava algodão, iodo, ácido fênico, pinça, sonda, gaze e comprimidos. Por outro lado, dependendo do tratamento, preparava chás ou emplastros de pimenta malagueta com casca de angico torrada. O misticismo e o moderno passaram a conviver juntos.

Um episódio interessante foi o passeio de carro de Lampião, de Cumbe a Tucano. Ao saber que o padre César Berenguer era dono de um moderno Ford modelo T, ordenou ao clérigo que levasse ele e mais sete homens até Tucano. Os cangaceiros chegaram a transitar de automóvel, em novembro de 1929, de Capela a Nossa Senhora das Dores. Eles trocaram suas armas antigas pelas  modernas.

OS COMUNISTAS FLERTARAM COM O CANGAÇO QUE PREFERIU O BANDITISMO

O PCB “PAQUEROU O CANGAÇO, QUE RECEBEU CONVITE DO GOVERNO PARA COMBATER A COLUNA PRESTES, MAS PREFERIU CONTINUAR NO MUNDO DO CRIME.

A nação nordestina tem suas peculiaridades na religiosidade do seu povo, na cultura popular, nas inclementes secas, na profunda desigualdade regional, na sua mestiçagem diversa, no cangaço, no seu misticismo e na sua intelectualidade artística e cultural que precisam ser mais estudados, pesquisados e analisados.

Existem fatos inéditos e inusitados desconhecidos, como a primeira guerrilha armada do Brasil de enfrentamento às injustiças sociais contra os poderosos ter ocorrido no Nordeste. Na época da Coluna Prestes, os comunistas, que pouco conheciam a realidade da região, idealizaram conquistar e incorporar o cangaço às suas lutas, achando, ingenuamente, que os cangaceiros eram revolucionários.

Pela sua profunda religiosidade e crenças populares, o povo nordestino de um modo geral era bem mais anticomunista que simpatizante do sistema. A Igreja Católica que, naquela época exercia muita influência na população, via em Prestes o satanás, bem como a União Soviética.

SEM COMPONENTE IDEOLÓGICO

De acordo com o pesquisados Luiz Bernardo Pericás, os bandoleiros nunca tiveram um componente ideológico e nem uma consciência de classe, apesar de alguns militantes terem procurado a existência de embriões de guerrilhas sociais. Na verdade, o que os camponeses queriam mesmo era um pedaço de terra para trabalhar e produzir.

“As raízes da importância revolucionária das massas camponesas, há que buscá-las no arcaísmo do mundo rural, um mundo onde não apresenta os elementos que permitem o desenvolvimento do processo dialético”- comenta Pericás em sua obra “Os Cangaceiros”. Nunca houve uma “revolução camponesa”.

Os militantes socialistas estavam mal preparados intelectual e ideologicamente para elaborar um projeto de mudanças estruturais no campo. Havia escassez de livros marxistas no Brasil, ainda que a partir de 1930 textos de Marx, Lenin, Bukharin e Engels começassem a ser divulgados e vendidos no país.

As discussões e as questões do campo eram insuficientes. Mesmo assim, em 1928 foi criado o BOC – Bloco Operário e Camponês. Em 1932, membros do Comitê Central do PCB, por sugestão do dirigente José Caetano Machado, influenciado pela atuação dos cangaceiros, apoiaram a ideia de se constituir guerrilhas no campo.

Documentos avaliavam que grupos de cangaceiros de Lampião e outros arrastavam massas de jovens camponeses. Esta faixa que perdeu as esperanças de receber alguma coisa do Estado Feudal Burguês chegou a organizar grupos armados.

Para os teóricos, os cangaceiros tinham um potencial revolucionário que deveria ser aproveitado pelos comunistas. Na concepção deles, seria valido que se desse mais atenção ao interior de São Paulo e ao sertão nordestino.

O PCB insistiu nessa tese. Num informe para a III Conferência de Partidos Comunistas da América Latina e Caribe, realizado em Moscou, em 1934, preparado pelo chefe da delegação brasileira, Antônio Maciel Bonfim, houve uma posição oficial com relação à situação do campo e uma interpretação distorcida da realidade.

Imaginaram que os cangaceiros estavam unindo e chamando os camponeses à luta. Após a Conferência, os comunistas soviéticos, segundo assinala Pericás, iriam apoiar a intensificação dos contatos com os cangaceiros. Para a Secretaria Nacional do Partido, o cangaceiro era um revolucionário porque lutava contra o Estado.

Os comunistas achavam que se poderia dar um caráter revolucionário ao cangaço, ao ponto de idealizar que grupos de bandoleiros iriam adotar o programa da ALN-Aliança Nacional Libertadora, mas existiam várias pedras no caminho, como a religiosidade tradicional, o todo poderoso Padre Cícero Romão Batista, o “Padim Cicço” e os governos.

O projeto de guerrilhas no Nordeste se intensificou. O jornal A Classe Operária, na edição de 31 de julho de 1935, defendia que as lutas no campo deveriam estar ligadas com os cangaceiros. Entendiam que podiam ser conquistados e elevados ao nível político de suas lutas, só que não houve nada disso.

Desde os anos 20, a organização do PCB no Nordeste era frágil. Pelos meados da década de 30 seus componentes tinham que lutar contra os integralistas locais, contra o Governo Vargas e ainda atuar no campo onde os “coronéis” tinham muita força. As disputas políticas regionais, os caudilhos, os jagunços e os cangaceiros contavam com mais visibilidade que a luta armada comunista.

A avaliação dos comunistas sobre os bandoleiros estava equivocada. Os cangaceiros eram bandidos e não havia possibilidade de vínculo com os programas de mudanças sociais no meio social.

GRUPOS ARMADOS E OS “BANDIDOS VERMELHOS”

A experiência guerrilheira que mais tempo durou foi no Rio Grande do Norte, de julho de 1935/36, mas fracassou. Foram três grupos armados de doze homens cada, dois deles no município de Açu e um de Areia Branca. Contam que o cangaceiro Rouxinol, do bando de Lampião, preso e sentenciado a 30 anos de prisão, fugiu e se uniu a Gavião, membro do PCB, para formar um núcleo guerrilheiro.

Esses “bandoleiros vermelhos”, ou “bandidos vermelhos” eram compostos de gente do Partido. Muitos ingressaram nesse bando para encontrar refúgio, já que eram ladrões e assassinos sentenciados e condenados ao encarceramento.

Dos grupos citados, somente um, com 40 pessoas, entrou em ação. Os líderes reuniam seus homens no meio da caatinga, discutiam aumentos salariais e métodos para convocar camponeses para atacar fazendas de algodão e eliminar seus donos. Suas ações se limitavam a assaltos e assassinatos.

Com poucas armas e com gente participando à força, o bando foi perdendo seu potencial “revolucionário”. A maioria nem sabia o que era comunismo. Em setembro de 35, alguns guerrilheiros serraram os trilhos da ferrovia Areia Branca – Mossoró, na tentativa de descarrilhar o trem que levava uma comitiva de integralistas para o sertão. As autoridades descobriram a sabotagem e evitaram o ataque.

No Levante Comunista, os “bandidos vermelhos” não tiveram nenhuma ação de destaque. Embrenhados no Nordeste, os comunistas faziam de tudo para sobreviver. Contavam com o apoio de caudilhos, alguns deputados da Aliança Social e pequenos comerciantes que forneciam armas, alimentos e esconderijos.

Nos poucos combates, os guerrilheiros cantavam e gritavam. No lugar de “Mulher Rendeira” dos cangaceiros, se ouvia gritos de Viva a ANL, Viva Luis Carlos Prestes. A aventura terminou com a denúncia contra os combatentes feita Manoel Feliciano Pereira, que se entregou à polícia e indicou onde ficava o esconderijo. Todos “revolucionários” foram detidos.

Durante todo período do cangaço, apenas o bandoleiro comerciante pernambucano Manuel Vitor, que iniciou sua vida no cangaço, em 1926, se tornou comunista e foi assassinado pela polícia alagoana, em 1937. Outro cangaceiro que demonstrava sensibilidade política foi Antônio Silvino (1897-1914). Foi até admirador da Revolução Russa de 1917 quando estava preso na Casa de Detenção de Recife. Teve até contato com Gregório Bezerra.

Destaca Luiz Pericás, que o PCB, nos anos 30, parecia interpretar a situação de forma equivocada, tanto quanto os jornais do Ceará na segunda metade do século XIX. Alguns periódicos, impressionados com a Comuna de Paris, viam perigo do comunismo nas fileiras do cangaço. Para os jornais, a ação dos salteadores seria suficiente para caracterizar a “proclamação do comunismo no sertão”.

A situação incomodava tanto os sertanejos que, supostamente, o “Padim Ciço” teria sonhado, em 1872, ter visto um urso feroz com grandes patas sobre todo o planeta, causando sofrimento e ruínas aos países.

Correu boatos que em 1925 quando estava na fazenda do Poço, no Ceará, Lampião teria demonstrado simpatia pelos revoltosos da Coluna Prestes. Sua admiração ao “Cavalheiro da Esperança” seria tanta que planejava formar um batalhão para se unir aos rebeldes tenentistas para travar uma guerra aos estados de Pernambuco e Paraíba. Nessa época, os revoltosos estavam tentando aliciar o “rei do cangaço”, conforme Flores da Cunha. Comentou-se até que uma farda do exército teria sido presenteada a Virgulino.

No entanto, não existem documentos oficiais de que Lampião tivesse manifestado entusiasmo em se unir aos rebeldes. Pelo contrário, o cangaceiro se aliou, por um breve tempo, ao governo para combater Prestes e seus soldados. O apoio da população a Prestes foi uma decepção e ele mesmo confessou isso. “Achávamos que éramos uns loucos, uns aventureiros…” disse o próprio Prestes, ao acrescentar que jovens, que queriam sair de casa, aderiram à causa.

Pericás diz que “de fato os “tenentes” tinham um projeto ideológico e intelectual insuficiente e horizontes políticos limitados. Seu conhecimento das particularidades do meio rural nordestino era grande”. O próprio Prestes afirmava que não existia essa noção de classe.

Quando A Coluna Prestes cruzava uma localidade era comum haver saques e roubos praticados por bandos de ladrões. Em seguida as forças regulares chegavam pilhando o que restava, praticando todo tipo de violência contra os habitantes.

APELO A LAMPIÃO E AOS CANGACEIROS

Pelas dificuldades em combates contra os “revoltosos” no Nordeste, o governo do presidente Artur Bernardes apelou para a ajuda de jagunços e cangaceiros. Quem fez essa intermediação foi o deputado Floro Bartolomeu e o Padre Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço”.

No início o sacerdote não queria ter participação na luta contra os homens de Prestes. Chegou a enviar uma carta ao “Cavaleiro da Esperança”, exaltando sua bravura, mas sugeriu que suas tropas fizessem paz e que seriam acolhidas em Juazeiro, com todas garantias. Disse não se sentir bem ver esse espetáculo de brasileiros contra brasileiros numa luta fraticida e exterminadora. Na longa carta, insistiu em dar garantias legais e ser advogado de todos perante os poderes constitucionais da República. Em seu convite pela paz, falou em Deus e pátria.

Do outro lado, o Floro Bartolomeu, que foi nomeado para administrar o Ceará, encaminhou uma carta a Lampião por meio de emissários. A missiva, assinada pelo caudilho e o “Padim Ciço”, convocava o “rei do cangaço” a um encontro com o padre, em Juazeiro, onde estariam sediados mil homens recrutados com vistas a lutar. Na bagagem, Floro conseguiu, no Rio de Janeiro, mil contos de reais e um vasto material bélico para organizar um “Batalhão Patriótico”. Em 31 de dezembro de 1925 ele se deslocou de trem de Fortaleza até Juazeiro, para realizar tal objetivo. Antes, o Floro sediou as tropas em Campos Sales.

Lampião ficou desconfiado em ir ao encontro por acreditar ser uma armadilha e uma traição, com a intenção de prendê-lo. Só depois de mostrarem a assinatura do sacerdote foi que ele aceitou ir a Juazeiro com 49 cangaceiros, no dia quatro de março de 1926, ficando ali por três dias.

Virgulino foi recebido com muita festa por cerca de quatro mil pessoas que cercaram os bandidos para ver de perto aqueles homens. O chamado “governador do sertão” foi assediado por repórteres e fotógrafos. O padre foi o responsável por convencê-lo a entrar na luta contra a Coluna Prestes e pediu que Lampião largasse a vida de bandido.

“Padim Ciço” mandou buscar o inspetor agrícola do Ministério da Agricultura, Pedro de Albuquerque Uchoa, que ficou incumbido de, em nome do governo, entregar as patentes militares. Com as anotações do padre, Uchoa fez a suposta “promoção”. Nomeou Lampião ao posto de “capitão” e outros a primeiro e segundo tenentes. A carta foi data em 12 de abril de 1926, mas só que o “capitão” se encontrava em Juazeiro no começo de março. Era uma farsa. Além disso, o suposto documento concedia a Lampião e seus comparsas a liberdade de se locomoverem, podendo atravessar as fronteiras de qualquer estado nordestino.

Antes de receber a patente forjada de ‘capitão, Lampião teria contado que chegou a combater a Coluna entre São Miguel e Alto de Areias, mas teve que recuar depois de forte tiroteio. Contou ainda que chegou a ter o desejo de se incorporar às forças patrióticas de Juazeiro.

Depois de supostamente se tornar militar, Lampião não foi levado a sério. Em pouco tempo percebeu que continuaria sendo considerado um bandido pelas policias dos estados e que o documento não seria respeitado. Diante disso, resolveu permanecer na vida do crime.

 

 

 

O GENOCÍDIO NORDESTINO DURANTE O FLAGELO DAS SECAS E DO CANGAÇO

Entre os anos de 1877 a 1930/35 milhares de nordestinos foram dizimados pelo flagelo das secas prolongadas e em campos de concentração por falta de amparo do governo imperial e dos presidentes das províncias. Levas de mendigos se refugiaram nas capitais, principalmente em Fortaleza, no Ceará, e lá foram abandonados à própria sorte, vítimas de um verdadeiro genocídio.

Além das estiagens que mataram milhares de fome, os sertanejos nordestinos ainda tinham em seu encalço os bandidos cangaceiros que extorquiam o povo miserável e ceifavam vidas. Para ficarem livres desse incomodo social, os governantes, no final do século XIX e nas primeiras décadas do XX, incentivaram e levaram os famintos para os seringais amazonenses onde centenas foram mortos pelas doenças da floresta.

A concentração de terras nas mãos dos latifundiários e as violentas disputas políticas foram outros fatores que contribuíram para as matanças dos pobres sertanejos, apesar da prosperidade e abundância de dinheiro nos cofres públicos de algumas cidades, consideradas como terras “selvagens”, como Canhotinho, Garanhuns e Pesqueira, em Pernambuco.

A atuação de jagunços e cangaceiros foi explícita, culminando em 1917 com o episódio conhecido como a “hecatombe”, quando um grande número de bandoleiros do cangaço entrou em Garanhuns e massacrou diversos cidadãos.

Quem fala dessa situação de horror no sertão e agreste nordestino é o pesquisador Luiz Bernardo Pericás em sua obra “Os Cangaceiros”. Sobre a ação das estiagens inclementes, ele cita que no Rio Grande do Norte, após a dizimação de 70% do rebanho bovino, durante a seca de 1915, o algodão atuou como uma força na economia do Nordeste.

Pericás considera as condições climáticas adversas como possíveis responsáveis pela deterioração na produção, fome, aumento da pobreza e consequente incremento nas atividades dos bandidos. No século XX, de acordo com seu estudo, ocorreram estiagens prolongadas em 1900, 1903, 1915,1916 e 1932, “mas foi no período em que não aconteciam secas que o cangaço se mostrou mais robusto”.

No ano de 1877, talvez a mais dura seca do século XIX, houve um incremento nas pilhagens e saques, sobretudo na região do Cariri. No seu entendimento, grande parte dos roubos e furtos em períodos de secas era praticada por gente comum, por retirantes e flagelados.

O principal efeito das secas foi o êxodo para as grandes cidades, inclusive para as capitais das províncias. A população do Ceará, por exemplo, em 1877, foi reduzida a um terço. No entanto, a capital inchou. Em 1872, Fortaleza tinha 21 mil habitantes. Em 1877 emigraram para lá 85 mil pessoas. Um ano mais tarde esse número ultrapassou os 100 mil. A cidade de Aracati, que tinha uma população de cinco mil moradores, em 1878, chegou a 60 mil.

“Como resultado da grande estiagem de 1877, chusmas de mendigos percorriam as ruas em busca de algum tipo de caridade. Uma carta de um leitor de “O Cearense”, daquele ano, dizia que o povo está em desespero e logo as pessoas começarão a esmolar pelas portas, ou, como último recurso, iniciarão a rapinagem”.

Um artigo de “A Opinião”, da Paraíba, de 11 de novembro de 1877, afirmava que os sertões estão ficando desertos pela emigração para os brejos, impelida pela seca, a procura de recursos para manter a própria vida; e nos brejos surge a miséria pela superabundância de emigrantes que de tudo precisam, e nada conduzem.

O mesmo jornal, um mês depois descrevia que a seca lança consternação no seio de todas as famílias, e os criminosos e desordeiros roubam o que ainda nos resta, mesmo a honra e a própria vida. “Em todas as ruas veem-se cadáveres ambulantes e nus, sem forças para implorar uma esmola.

O jornalista Rodolfo Teófilo, falando do Ceará, citava que os comissários, distribuidores de socorros, tinham a ordem de dar uma ração ao retirante unicamente no dia da chegada. No dia seguinte, se quisesse ter direito a ajuda, deveria ir à pedreira de Mucuripe, seis quilômetros da capital, carregar pedras. Aquilo era bastante para roubar-lhe a vida – ressaltava

Escreve Pericás que, de abril a dezembro de 1877, cerca de 500 mil flagelados precisavam do auxílio do governo, que enviou 2.700 contos, uma quantia insuficiente para resolver a questão. Conforme pesquisas da época, a seca de 1877/79 matou mais de 500 mil pessoas. No período entre 1877 e 1907 houve um desfalque populacional superior a dois milhões de habitantes.

As duras condições climáticas de 1915 foram responsáveis por ceifar a vida de 30 mil cearenses e de expulsar do estado 42 mil flagelados. Aliado a tudo isso, houve um significativo aumento nos preços dos alimentos.

“A população civil, esfomeada, sem ter dinheiro nem condições de esperar pela distribuição da comida, acabava saqueando os armazéns de depósitos. Políticos e cangaceiros incitavam o populacho a tomar posse dos alimentos. Alguns cangaceiros davam alimentos em busca de apoio dos sertanejos”.

Segundo dados, de 1869 até o final do século XIX, mais de 300 mil pessoas saíram do Ceará, sendo mais de 250 mil para a Amazônia e mais 45 mil para o Sul do país. Por causa da seca, mais de 50 mil retirantes saíram do Rio Grande do Norte entre 1895 e 1910 para outros estados, inclusive para a região amazônica.

O Maranhão foi outro estado de destino dos retirantes, sobretudo entre 1900 e 1920. Os estados que continuaram mandando mais gente para fora do que recebendo, entre 1920 e 1940, foram Piauí, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, em geral para o Sul do país.

No Passeio Público de Fortaleza, no ano de 1915, três mil miseráveis se apinhavam em péssimas condições. O jornalista Tomaz Pompeu Sobrinho narra aquela cena como um espetáculo inédito que atraia muitos curiosos. Dizia ele que era um local de promiscuidade e imundície aos olhos de milhares de expectadores e exploradores da miséria.

Incomodado com a situação deplorável, o presidente da província determinou que os retirantes fossem transferidos para o Sítio do Alagadiço, situado ao lado norte da rua Bezerra de Menezes. O local se transformou num verdadeiro campo de concentração de milhares de pedintes, sobretudo de mulheres com seus filhos pequenos ao colo, sujos, nus ou maltrapilhos. O campo se tornou insuficiente, apesar de comportar cerca de oito a nove mil almas.

Como forma de “solucionar” o problema, o presidente resolveu fomentar a emigração para os seringais da Amazônia. Ali, o paludismo e o beriberi completavam a obra de destruição das miseráveis vítimas das secas.

“A situação era desesperadora. Crianças desnutridas, enfermidades, cadáveres empilhados em grande quantidade em caminhões, e a ajuda do governo era precária e ineficiente”. Em 1932, ano de seca intensa, ocorreram a batalha de Mranduba, a prisão de Volta Seca e escaramuças de cangaceiros com a polícia.

Para Luiz Pericás, uma parcela significativa da população pobre não entrava para o cangaço, mas os cangaceiros atacavam o povo humilde do sertão.

Em dezembro de 1932, por causa do desespero causado pela dura estiagem e atacados pela fome, Corisco, sete “cabras” e duas mulheres entraram em Mocambo, perto de Pindobaçu, e saquearam as casas de todos os moradores, comendo tudo que encontraram pela frente. O fenômeno do cangaço acabou, mas as secas e a miséria continuam.

A INFLUÊNCIA INDÍGENA NO NORDESTE FOI MAIS MARCANTE QUE A AFRICANA

Quando falamos de mestiçagem sempre damos destaque para o negro, só que no interior do Nordeste, a influência indígena, desde os tempos coloniais, foi mais presente e marcante, com a mistura de várias tribos que conviviam com os sertanejos nos aldeamentos.

De acordo com antropólogos, folcloristas e sociólogos, a mestiçagem do branco com o negro aconteceu em maior proporção no litoral. Ao longo da história, a impressão que temos é que os índios foram riscados do mapa, talvez porque foram praticamente extintos e exterminados.

Em sua obra “Os Cangaceiros”, Luiz Bernardo Pericás assinala que o termo “caboclo” muitas vezes era popularmente usado como sinônimo de índio ou de forma pejorativa. Muitos indígenas eram tratados como negros. Numa carta do Padre Nóbrega, de 1551, o clérigo se referia às mulheres indígenas como negras.

Descreve que em 1607, o Padre Luis Figueira designava na “Relação do Maranhão”, de “negro” Cobra Azul a Bóia obi, o morubixaba potiguara. “A quantidade de escravos íncolas no Nordeste, nos dois primeiros séculos do período colonial, era volumosa, explicando por si só tanto o uso dessa terminologia como a formação étnica da região”.

Houve um grande número de nativos escravizados no Nordeste porque o número de silvícolas era bem maior, bem como o preço do cativo negro. Existem relatos de que bandeirante Sebastião Raposo levou consigo para o Piauí 250 escravos indígenas carijós onde construiria uma fazenda de gado.

Foram levados para o Nordeste, pelos paulistas (mestiços mamelucos que se consideram brancos), 170 mil indígenas, só para trabalhar na produção de açúcar. Entre final do século XIX e início do XX, os indígenas viviam num acelerado processo de aculturação e dissolução tribal. No começo do século XX, os indígenas nordestinos viviam em condições precárias, em fase de assimilação.

Os membros de algumas aldeias ainda existentes apresentavam traços fenotípicos negroides ou caucasoides. Eles conviviam com os sertanejos de povoados vizinhos e recebiam em seus territórios mascates, tropeiros, padres e todos que quisessem com eles se relacionar. Muitos esqueceram até seus idiomas. Seus vestuários e construções eram similares aos dos sertanejos.

Cita Luiz Pericás, que a aldeia Cimbres, antes chamada de Ororubá, onde viviam índios xucurus, “brancos” e mestiços, que em 1855, possuía 861 habitantes, em 1861, tinha em torno de 789 moradores. Em 1897, o governo decidiu extinguir a aldeia. Os nativos ficaram sem seu território. Um século mais tarde, viviam aldeados na serra do Orurubá.

Os Pankararus, no sertão pernambucano, também são um caso sintomático. Eles remontam do século XVII, quando foi criada a vila Tacaratu. Em meados do século XIX havia apenas 580 indígenas. Em 1861, esse número diminuiu para 270 habitantes. Havia grande quantidade de posseiros “brancos” na região.

Nas primeiras décadas do século XIX ocorreu uma grande dispersão de uma diversidade de tribos indígenas no sertão de Pernambuco. Ao longo do tempo, as populações indígenas foram desaparecendo e tratadas como caboclos sertanejos.

Algumas tribos procuraram manter suas culturas, como os fulniôs (carijós) pernambucanos que preservaram sua língua iatê e continuaram realizando suas cerimônias de culto ao Juazeiro Sagrado na caatinga. Mesmo assim, foram sendo tragados pelos sertanejos que compravam seus lotes de terras.

Em 1861 o governo imperial extinguiu a aldeia devido aos conflitos entre índios e “brancos” locais. Somente em 1877 as terras nativas foram demarcadas.  No entanto, a partir de 1916 a relação entre eles se tornou insustentável. Muitos dos habitantes originários foram expulsos.

Outros índios que tiveram destaque na formação da mestiçagem nordestina foram os cariris, tapuaias (Ceará, Paraíba), os tupinambás, Pataxós, aymorés e outros, na Bahia. Segundo Pericás, é compreensível que os cangaceiros, portanto, fossem produto de seu meio e tivessem em suas fileiras a mesma formação ética da região.

O Cabeleira, o bandido pernambucano do século XVIII era apresentado por alguns escritores como “brancoso”, de cabelos longos encaracolados. Outros o descreviam como mameluco e mestiço. Nesse ambiente de intensa mestiçagem, onde muitos bandoleiros eram caboclos ou cafuzos, existia lá dentro o preconceito contra o homem de cor.

Os Calangros, chamados de cabras, famosos bandidos potiguares, formavam uma grande família de mestiços, produtos do cruzamento do índio e do africano. O cabra era pior do que o caboclo e o negro.

 

O ESTADO TEM UMA DÍVIDA COM AS MULHERES NORDESTINAS ESTUPRADAS

Durante quase 100 anos mulheres nordestinas, entre crianças, jovens e adultas, foram estupradas pelo cangaço e pelas volantes de forma cruel e brutal. O Estado corrupto foi negligente e conivente com essa situação porque suas forças, além de precárias e despreparadas, foram as maiores estupradoras dessas mulheres desprotegidas, também vítimas dos cangaceiros.

Por muitos anos, entre o meado do século XIX até quase metade do século XX, essas mulheres, além do sistema patriarcal opressor onde os homens eram seus donos e as usavam como mercadorias, viviam boa parte do seu tempo escondidas nas caatingas, ora fugindo dos bandoleiros, ora das volantes que estupravam crianças e até idosas. Elas viveram anos de terror sem nenhuma proteção do Estado.

Sobre o assunto, vejamos o que descreve o escritor e pesquisador Luiz Bernardo Pericás em sua obra “Os Cangaceiros-ensaio de interpretação histórica”. Ao falar sobre o ato de ferrar pessoas pelo cangaço, ele cita que o mais famoso “ferrador” de mulheres foi o “Zé Baiano”, do bando de Lampião, também conhecido como a “pantera negra dos sertões”.

Em 1932, depois de receber em mãos uma carta “provocadora” escrita por algumas “damas respeitáveis” da cidade de Canindé, onde mandavam um recado para Lampião de que se ele desaprovava cabelos curtos em mulheres, elas iriam fazer o que bem entendessem, pois não eram donas do rei do cangaço.

Como lição, Lampião invadiu a cidade e mandou o “Zé Baiano” marcar a ferro em brasa o rosto e outras partes íntimas do corpo das mulheres casadas ou parentes de soldados, com sua marca “JB”. Ele também cortava as línguas das mulheres que usassem maquiagem e vestidos curtos.

O bandido Lucas da Feira, baiano nascido num povoado de Feira de Santana, que formou um bando a partir de 1828 até 1840, responsável pelo assassinato de cerca de 150 pessoas, estuprava as filhas dos senhores rurais num misto de bullying e de ódio racial.

“Sua crueldade chegava a tal ponto que costumava, depois de consumado o estupro, passar mel de abelha nas jovens, que eram amarradas, sem roupas, em tronco de árvores para serem devoradas pelos insetos e animais. Lucas chegou a “sangrar o ventre” de uma mulata em adiantado estado de gravidez com “lapadas de relho cru”.

Era notório sua crueldade para com as mulheres. Lucas crucificou uma jovem branca de 15 anos num pé de mandacaru, repleto de espinhos, tão somente porque foi rejeitado por ela. O bandido se relacionava muito bem com figuras políticas locais de prestígio, para as quais prestava serviços.

As volantes, que perseguiam os cangaceiros, quando chegavam em algum vilarejo ou cidade, descarregavam todas suas raivas por serem mal pagos pelos governos (muitas vezes ficavam sem receber seus soldos ou eram “pagos” com dinheiro falso) nas mulheres que eram vítimas de estupros e outras atrocidades bárbaras.

 

CABEÇAS DECEPADAS E DOIS “PARTIDOS” NORDESTINOS NA ÉPOCA DO CANGAÇO

A maioria das pessoas considera uma barbaridade a decapitação das cabeças de cangaceiros mortos pelas forças das volantes e tem suas razões, mas existem explicações.

Do outro lado, o cangaço, entre final do século XIX até 1940, fazia o mesmo com os chamados “macacos” e até esquartejavam impiedosamente. O cangaceiro Antônio Silvino tinha o prazer de sangrá-los depois de tombados em combate.

Sobre o assunto, veja o que nos diz o pesquisador e escritor Luiz Bernardo Pericás em sua obra “Os Cangaceiros”. Depois das lutas, o fardamento dos soldados das volantes (vestimentas parecidas a partir de 1925) ficam em péssimas condições, muitas esfarrapadas.

Quando ganhavam os embates, de acordo com Pericás, decepavam as cabeças dos rivais por eles assassinados. O autor do livro aponta três motivos para a decapitação do inimigo.

Um deles para demonstrar desprezo e, consequentemente, humilhar o rival. Se o cristianismo defende a inviolabilidade do corpo, a decapitação seria uma forma de tirar esse “privilégio” dos bandidos. Com a cabeça separada do tronco, sua alma estaria perdida. Essa seria uma forma estranha de punição. Exemplo claro foi o de Corisco, enterrado inteiro e depois exumado e decapitado. Para alguns, o ato teve como objetivo estudar seu crânio.

Luiz Pericás deixa claro que isso funcionava para os dois lados. Ao terminar o ataque a Betânia, os civis pediram a Lampião permissão para sepultar os soldados assassinados. O “governador do sertão” respondeu que “macaco” não se enterrava. Para ele, os policiais deveriam ficar por cima da terra para serem comidos pelos urubus. Depois de muita insistência, o cangaceiro deu permissão.

Antônio Silvino (1897-1914) havia feito o mesmo. Em 1904, após assassinar o sargento Manoel da Paz, proibiu que o povo de Mogeiro o enterrasse. Não poderiam colocá-lo num cemitério, já que seria uma profanação sepultar um “bandido” daquele tipo num lugar sagrado – disse Silvino.

O segundo motivo era de implicações mais práticas. Como era inviável o transporte de cadáveres e, considerando que era fundamental exibir as provas da eliminação de muitos cangaceiros procurados, o corte das cabeças se mostrava a melhor opção. A exposição em praça pública daria mais segurança para o povo de que aqueles indivíduos não seriam mais ameaças.

O último motivo é que as cabeças serviam como troféus macabros para os oficiais, que poderiam usá-las como símbolo de suas eficiências militares. Em última estancia, seriam estudadas por cientistas, antropólogos e criminalistas, e depois guardadas em museus.

Por outro lado, as cabeças terminaram virando moeda de troca com as autoridades. Qualquer bandido arrependido que entregasse a cabeça de um cangaceiro para a polícia teria seus crimes perdoados pelo governo e ainda ganharia prêmios e garantias de vida.

Com José Osório de Faria, o Zé Rufino, que alugou serviços às autoridades baianas, havia um acordo secreto com o governo. Cada cabeça era trocada por uma promoção. Após 16 combates e 22 decapitações ele se tornou coronel de polícia.

No começo do século XX, cidadãos comuns decapitavam cangaceiros para roubar seus pertences. O sujeito que não fosse sangrado e torturado poderia se considerar um privilegiado. Depois de capturar e interrogar “Lavandeira”, o tenente Alencar decidiu sangrar o bandido, mas atendendo a um pedido do soldado, deu um tiro na cabeça.

DOIS “PARTIDOS”

No final do século XIX e nas primeiras décadas do XX, o Nordeste, sem justiça, era uma terra de ninguém onde mandavam os coronéis, fazendeiros e senhores de engenho, se bem que os poderosos só mudaram de vestes e de lugar.

Os pobres e miseráveis ficavam numa linha de fogo cruzado e só tinham dois “partidos” para sobreviver, o do cangaço ou o da volante. Conforme relata Luiz Pericás, o governo contratava civis para as forças volantes.

“As tropas volantes, assim, se tornavam também uma forma de garantir um emprego e de ascensão social para muitos sertanejos. Outros se alistavam por terem recebido ameaças até mesmo de policiais e também para garantir sua segurança contra cangaceiros inimigos”.

A ideia de se perseguir desafetos que cometeram crimes contra suas famílias era um dos principais motivos de ingresso nas fileiras policiais. Pericás conta que um coiteiro de Lampião, Elias Marques, de Santa Brígida, depois de entrar em desavença com o “governador do sertão” ingressou na força policial.

Em alguns casos, quando o sertanejo não conseguia entrar nas volantes, caso do cangaceiro Tenente, decidia ingressar no grupo dos salteadores. “Fiapo”, depois de se desentender com Lampião, foi para a volante.

Quando “Volta Seca” foi capturado disse que nunca mais retornaria ao cangaço. Segundo ele, o jeito seria virar “macaco”. Também ocorria o inverso. Desertores da força pública se tornavam cangaceiros, como Ignácio Loyolla Medeiros, vulgo “Jurema”. Ficou na polícia até 1922 e depois se incorporou ao grupo de Lampião.

“Corisco” também foi militar, tendo servido no 28º Batalhão de Caçadores do Exército, em Aracaju-Sergipe. Após participar de uma rebelião, em 1924, desertou e mais tarde se tornou cangaceiro. O caso mais conhecido de um militar do exército brasileiro a se tornar um cangaceiro foi o de José Leite Santana, vulgo “Jararaca”, que chegou a lutar na revolta tenentista de São Paulo, em 1924, e também esteve no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.

Um, dos filhos de Antônio Silvino se tornou oficial do exército. Certa vez Lampião disse que não havia nascido para a vida de cangaceiro.  “Se não houvesse nêgo na polícia pra manobrar com a gente, eu ainda iria ser soldado”. Joca Bernardo, coiteiro de “Corisco” e delator do paradeiro de Lampião em Angico, recebeu a oferta de cinco contos de reais e uma patente de sargento. Foi enganado e caiu em desgraça.

OS LADRÕES DE LIVROS

Estava na Feira Literária de Itapetinga e papo vem, papo vai, pintou a conversa sobre a questão da leitura que anda desmilinguida e definhada no Brasil. Falei sobre os antigos ladrões de livros que hoje são escassos nas livrarias e sebos. Um colega de lá sugeriu que eu escrevesse uma crônica sobre o tema, e aqui vou eu com essa incumbência delicada e difícil.

– Vambora cumpadi, que na pista tombou um caminhão! Tão dizendo que é de carne, frutas, feijão, milho, celulares ou de bebidas. Nesses casos, o saque é repentino e a polícia não tem condições de controlar a multidão, como ocorreu recentemente numa zona do Rio de Janeiro.

Em pouco tempo os moradores da redondeza ocuparam o local da serra, como abelhas em enxames. Não se sabe de onde apareceu tanta gente em questão de minutos. A notícia corre com rastilho de pólvora.

Para surpresa ou decepção, era um caminhão de livros que estava indo em direção à capital e perdeu o controle na descida de uma ladeira.

– É cumpadi, perdemo a viagem. Só tem livro espalhado pelo asfalto! Coisa pra doutor! Esses papéis não serve de nada pra noís. Queremo é comida, bebida e celular. Nem pra ser de cigarro ou outro produto de contrabando.

Alguns começaram a esbravejar e até ensaiaram xingamentos. Coisa foi ver a cara do malandro que jogou óleo na estrada para provocar o acidente! Quem ia imaginar que aquela carreta estava cheia de livros! Azar da peste! – Gritou alguém irritado.

A carga permaneceu intacta sem ninguém tocar. Um olhava para o outro com o semblante de frustração e ia saindo de mãos vazias para suas casas. O policiamento só observa de longe e o carregamento foi salvo, sem precisar acionar o serviço do seguro.

Essa conversa rolou em tom de gracejo num realismo-fantástico nos dias de hoje, mas lembramos das eras dos anos 50, 60 e até início dos 70 dos ladrões de livros. Não era coisa surreal.

Eles tinham até o apelido de ratos de livrarias, sebos e bibliotecas. Os donos e funcionários responsáveis ficavam de olhos atentos, mesmo porque nem existiam câmaras para vigiá-los, como atualmente.

– Hoje não existem mais ladrões de livros como antigamente quando se levava uma obra debaixo do braço para se ler e discutir com um amigo-parceiro num botequim, bar ou restaurante – disse para um companheiro escritor.

– Você que pensa assim, mas ainda tem alguns soltos por aí. O Raí, do sebo, me contou que fica bem atento porque vez ou outra, numa feira literária, alguém lhe furta um exemplar – retrucou o amigo.

Para não perder a viagem imaginária sobre a queda de leitores e a importância do livro na vida das pessoas, tive que sair pela tangente.

– Naqueles tempos, ainda menino moço, presenciei um assalto inusitado a mão armada na cidade grande. Enquanto um jovem concentrado lia num banco de jardim, aproximou-se um sujeito mascarado de revólver na mão:

– Perdeu, meu camarada, passe o livro de Fiódor Dostoiévsk. O ladrão foi quem perdeu porque se tratava de uma obra de um autor brasileiro, o nosso maior Machado de Assis.

Aí ninguém aguentou e caiu na risada, mesmo insistindo que foi fato verdadeiro e citei até o dia, a hora e o ano, inclusive retratei o local. Nem assim acreditaram.

– Isso não passa de uma lorota. Você deve ter avançado pelo túnel do tempo futurístico e se esborrachado no celular onde tem ladrão por toda parte e um monte de gente dando bobeira, batendo com a testa até em poste e tropeçando em calçadas.

Quanto ao livro, você pode ficar em pé ou sentado num banco da praça com ele aberto e lendo que ninguém encosta. Vão é te chamar de maluco desajuizado da cabeça que anda no mundo da lula. Você já viu alguém assim por aí?

– É, mas que existem ladrões de livros, existem, mesmo raros – falou o portuga entre uma discussão e outra, para passar o tempo durante a falta de leitores interessados em comprar uma obra.

 

 

 

 

“NA PIOR EM PARIS E LONDRES”

Quando comecei a ler o livro “Na Pior em Paris e Londres”, de George Orwell, bateram em mim as lembranças dos meus tempos em Salvador nos anos 1970/71 de dias difíceis para sobreviver, sem um teto onde morar, sem contar que a fome consumia meu cérebro.

Havia passado no vestibular para Jornalismo e, para segurar a barra pesada, vivia de uns bicos aqui e acolá para comprar um pão e uma garrafinha de mel da marca Kall, se não me engano, feito de milho. Eram minhas refeições diárias, isto quando conseguia uns cruzeiros. Meu desespero não foi maior, com consequências imprevisíveis, porque um amigo me ajudou naquilo que pode.

Bem, não quero retratar esse meu passado ingrato porque quem já atravessou por ele fica com trauma e medo de que um dia tudo venha se repetir. A vantagem é que você sai dele com mais forças e tudo faz para que não mais ocorra em sua vida. Você, no entanto, não tem mais certeza se suportaria encarar outra fase de pobreza e miséria.

Algumas coisas que o autor descreve aconteceram comigo, daí as tristes recordações. Certa vez meu pai enviou um dinheiro suado do seu trabalho para mim por um conhecido “amigo” e ele não me entregou a quantia com a desculpa que teria gastado por necessidade. Era um alento ao meu espírito. Nesse dia fiquei ainda mais arrasado e aniquilado.

O autor mostra o lado miserável de Paris lá pelo final da I Guerra Mundial anos 1917/18 e inicia pela Rua Du Coq d´Or, um local de mendigos, ambulantes, brigas, crianças perseguindo cascas de laranjas nas pedras do calçamento e o fedor azedo das carroças de lixo.

Todas as casas eram hotéis lotados até os ladrilhos com inquilinos, principalmente italianos, poloneses e árabes. O seu se chamava Hôtel des Trois Moineaux. “Era um labirinto escuro (me fez lembrar de uma pensão no Politeama, em Salvador) de cinco andares, separado por divisórias de madeira em quarenta quartos. Eram sujos. A Madame F. era a patronne (patroa). Lembra “O Cortiço”, de Aloísio Azevedo.

No início ele faz uma descrição das pessoas e dos locais de pobreza. Sem emprego, seus francos foram se acabando e aí ele recorre ao amigo russo de nome Boris. Os dois unem forças no Bairro Coq d´Or, na mesma situação de miséria, e quase tudo que eles planejam não dava certo. O Boris havia lutado na Rússia durante a guerra civil e se refugiou em Paris. Chegou a ser garçom, mas caiu em desgraça.

-Você descobre o que é sentir fome. Com pão e margarina na barriga, você sai e olha as vitrines. Outra passagem que me toca quando andava esmo de barriga vazia pela Avenida Sete de Setembro e via e ouvia o tilintar dos talheres nos restaurantes cheios, com farta comida. Aquilo era como se fosse um soco no estômago.

– Você descobre o tédio que é inseparável da pobreza; os momentos em que você não tem nada para fazer e, estando subnutrido, não pode se interessar por nada.  Passa metade do dia deitado na cama, sentindo-se como o jeune squelette (jovem esqueleto) do poema de Baudelaire.

Em um dos trechos da sua obra, Orwell desabafa afirmando que, quando você está se aproximando da pobreza, você faz uma descoberta que supera algumas das outras. Descobre o tédio, as complicações mesquinhas e os primórdios da fome, mas também descobre o grande traço redentor da pobreza: O fato de ela aniquilar o futuro.

O Boris, seu amigo, amaldiçoa o judeu com quem vivia no quarto apertado. Ele confessava ao inglês que era uma tortura para um russo de família estar à mercê de um judeu. Eu que era capitão, aqui estou, comendo o pão de um judeu.

O russo, então contou a história de um velho judeu que lhe levou uma moça de dezessete anos ao seu acampamento de guerra e lhe cobrou cinquenta francos, só que a menina era sua própria filha. O judeu! Levou meus dois francos, o cachorro, o ladrão! Ele me roubou enquanto eu dormia – disse Boris, espumando de raiva.

A parte mais forte e que me chocou é quando o escritor fala sobre a fome. “A fome reduz a pessoa a uma condição totalmente covarde e sem cérebro, mais parecida com os efeitos colaterais da gripe do que qualquer outra coisa. É como se alguém tivesse se transformado em água-viva, ou como se todo seu sangue tivesse sido bombeado para fora e substituído por água morna. A inércia completa é minha principal lembrança da fome; isso, e ser obrigado a cuspir com muita frequência, e a saliva sendo curiosamente branca e floculante, como uma secreção espumosa de inseto. Não sei a razão, mas todo mundo que passou fome há vários dias percebeu isso”.





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