:: 9/jan/2025 . 23:49
O VIVER É PERIGOSO
Dizem que todo nascer, natural ou artificial, ou vir à luz, como se fala no popular, é uma dádiva divina do supremo arquiteto do universo, não importa se é reencarnação ou qual seja a religião. Falam ser um privilégio. No entanto, esse viver é perigoso e, acima de tudo, uma arte superior, principalmente nos tempos atuais de uma humanidade conturbada, desumana e decadente.
Tem aquela história de que tal pessoa, fulano ou fulana, escolheu viver em perigo quando se entra no mundo da bandidagem, da contravenção, da marginalidade, do tráfico de drogas, do assalto, do roubo, dos confrontos com a polícia, mas o viver fora desse mundo também é perigoso. Temos no planeta terra cerca de oito bilhões de viveres humanos perigosos.
Até o viver em paz é perigoso e conflituoso. Não é apenas a guerra que nos deixa em agonia e aflição. O amor também é perigoso, não apenas o chamado bandido. O sorriso, o olhar, o aperto de mão também podem ser perigosos. A natureza é perigosa quando se invade seu espaço.
Não estou me referindo aqui apenas ao animal ser humano, mas sobre todas as outras coisas, incluindo a nossa fauna e a nossa flora, que vivem ameaçadas pelos desmatamentos e queimadas, sem contar o aquecimento global, consequência da própria ação destruidora humana. O viver dos bichos é também perigoso.
A vida pode até ser bela e maravilhosa, cheia de altos e baixos, angústias e prazeres, emoções e sentimentos, risos e lágrimas, amores e dissabores, encontros e desencontros, mas, antes de mais nada, o esse viver em si é perigoso, especialmente nos grandes centros urbanos porque no rural ainda oferece uma sensação de calmaria, mesmo com suas típicas dificuldades e sofrimentos.
Viver sempre foi perigoso desde o homem da caverna, do neandertal ao sapiens do sapiens. Desde a fase do crescer, a criança tem que começar a aprender a arte da sobrevivência. Talvez seja a arte das artes, a primeira e a mais difícil para se obter as outras.
Viver é perigoso e conflituoso, e cada dia você tem que ser um vencedor das frustrações, das ansiedades, dos estresses, das decepções, dos erros, dos problemas, das coisas não realizadas, dos fracassos e encarar tudo isso se quiser extrair alguma vitória, uma aqui e outra acolá, com perdas e ganhos.
O convívio um com o outro já um modo do viver perigoso conflituoso, mas ainda é a lida na rua, nas cidades grandes, nas empresas, nos escritórios, nas indústrias, nas escolas e no seu trabalho diário o mais ardiloso. Você tem que estar sempre vigilante para os golpes virtuais e presenciais e ficar atento ao transitar nesse mundaréu de carros e de multidões.
Viver é perigoso, quer queira quer não, consciente ou inconsciente, e cada um tem que aprender a driblar do seu jeito, ou dar o passe certo e receber a bola lá na frente. “Os pernas de paus” da vida não conseguem ir muito longe e podem perecer antes do tempo.
Viver é perigoso, dividido em etapas pelo tempo, o nosso rei eterno, até a velhice rumo a um fim natural que é a morte. Todos preferem que ela seja súbita e inesperada, como dizem os próprios filósofos, mas este querer nos é negado. Só os felizardos conseguem.
Diante de toda essa confusão, sempre fica aquela indagação sem explicação convincente: Qual o sentido da vida? Vale a pena o existir? Será que a resposta seja o viver perigoso e conflituoso porque é esse próprio viver perigoso o alimento vital para a alma?
AS 78 ROTAÇÕES DA MEMÓRIA
(Chico Ribeiro Neto)
A memória gira em 78 rotações e me traz muitas canções, saídas daquele imenso móvel claro chamado radiola, onde se levantava uma tampa e um prato preto rodando me transportava para outro mundo.
Quando alguém botava uma cadeira junto da radiola, eu, com uns 8 pra 9 anos, percebia que aquele ia sonhar. Estrategicamente colocada no canto da sala, ela era um autêntico refúgio, renovando a alma através da música.
Lembro-me de um tio que tinha acabado de terminar o noivado e que botava o prato preto de Maysa Matarazzo, o cotovelo sobre o móvel da radiola e a cabeça inclinada pra baixo. Entre pensativo e apaixonado, meu tio ficava lá, sem se mexer, todo o lado A e o lado B.
Os primeiros discos chegados lá em casa, ainda em 78 rotações, foram de chorinho, xote e baião. Primeiro, foram dois, depois, mais três e assim, de mês em mês, pingava sempre mais um disquinho.
A radiola – me esqueci de dizer – tinha quatro pés finos, com ponteira de metal, que lhe davam uma elegância na sala. Em cima daquelas pernas, parecia uma ave musical, sempre limpa com óleo de peroba.
Hoje, lembro-me de uma história que Fred Souza Castro conta com um jeito engraçadíssimo: o sujeito (um petroleiro) morava no IAPI e convidou uma turma para a inauguração da radiola. Teve champanhe, fita inaugural e discurso. No fim da inauguração, o petroleiro, uns cinco uísques depois, falou pra mulher: “E para o mês é o quê, nêga?” E ela, em cima da bucha: “Uma televisão”.
Os primeiros LPs foram recebidos com festa. Como é que cabia tanta música naquele prato só um pouco maior do que o de 78? E aí apareceu uma brincadeira interessante, mas só quando minha mãe não estava perto: colocar um LP em 78 rotações e morrer de rir com o som de 33 rotações totalmente distorcido.
“Feito para Dançar”, “Uma Noite no Arpége”, com a orquestra de Waldir Calmon – Antonio Matos me disse, outro dia, que comprou uma regravação – eram LPs que animavam muito. Foi com eles e com minhas primas de Jequié que ensaiei os primeiros passos, o coração batendo e, de vez em quando, pisando no dedão de uma.
Você já foi em festa de radiola? Era interessante, no Clube Comercial, na Avenida Sete. Ficava aquele mundão de disco, um em cima do outro, e a expectativa era o que vai tocar agora, enquanto aquela moça não olha e a timidez quase apavora.
Em festas lá na rua, pintava sempre aquela pequena radiola Philips portátil, uma em que a própria tampa era a caixa de som. O som era terrível, pior ainda quando a pilha estava fraca, mas o que valia era a novidade. Nossos olhos namoravam também aquela caixinha pequena, de onde vinha a música e que, na hora de ir embora, era só botar embaixo do braço. Era fácil ligar e desligar: o braço pra lá e esperar fazer “traque”. Hora de ir, precisava contar os discos, sempre ficavam alguns emprestados, outro dia ainda danço de novo “Michele” com ela, “ma belle”.
Uma vez, um disco 78 quebrou lá em casa, e minha mãe juntou os pedaços pra jogar no lixo quando a empregada interveio: “Não jogue fora, não, dona Cleonice, que eu quero aprender a letra.” Caso apurado, ela pensava que a letra vinha escrita no disco. Era só colar os cacos e ler.
O compacto simples vinha primeiro, trazendo o grande sucesso da cantora. Depois vinha o LP, trazendo o sucesso e mais – vejam como toca! – umas 11 músicas. Entre uma e outra, uma enorme faixa, que dava para ouvir o chiado da agulha. Era botar um LP e fechar os olhos, navegar naquelas ondas até receber o tapinha nos ombros: “Já fez o dever?”
(Crônica publicada no jornal A Tarde, edição de 19/04/1989)
SALVADOR/CONQUISTA
Nos últimos anos Vitória da Conquista tem se transformado num quintal de Salvador, colônia ou num protetorado comandado pelo ACM Neto e o prefeito da capital, Bruno Reis. Isso é uma vergonha em se tratando da terceira maior cidade da Bahia com cerca de 400 mil habitantes, sem contar que aqui já foi uma trincheira da resistência contra a direita conservadora, inclusive na época do golpe da ditadura militar-civil-burguesa de 1964. Em maio daquele ano, 100 homens do exército, sob as ordens do capitão Bendock, cercou Conquista e cassou o mandato do prefeito José Pedral, eleito legitimamente em 1962. De uma cidade politizada, virou um reduto da direita de Salvador, e isso ficou mais acentuado após os resultados das últimas eleições. Por que o povo apoia seus próprios algozes que o desprezam? Até as instituições, como a histórica OAB entrou nessa onda direitista conservadora! Na Câmara de Vereadores, praticamente não existe mais oposição. Está todo mundo virando a casaca. A culpa maior por esse triste quadro está também na própria esquerda que esqueceu suas bases e não se renovou. Depois do pleito de outubro, simplesmente os partidos de esquerda cruzaram seus braços. Cadê a oposição dessa cidade que já foi forte no passado? A nossa cultura, por exemplo, foi sepultada e os intelectuais, artistas e líderes da esquerda não se mobilizam para protestar nas ruas. Esses manifestos virtuais ou documentos por escrito não vão reverter este fúnebre cenário da nossa cultura onde os três principais equipamentos, como Teatro Carlos Jheovah, Cine Madrigal e Casa Glauber Rocha estão fechados há anos. Estou falando apenas desse setor, mas os outros também se encontram abandonados.
VOU ME EMBORA PRA SODOMA
Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
Meu poeta Manuel Bandeira,
Deixa eu entrar
Em sua roda de capoeira!
Mas não vou para sua Passárgada,
Estou indo pra Sodoma,
Porque lá tem festa o ano inteiro,
Baticum pra gingo estrangeiro,
Uma fartura de mulheres,
De energias gostosas,
Pra comer, não preciso de talheres,
Vou na mão, no papo e nas prosas,
Por isso, meu caro Bandeira,
Vou me embora pra Sodoma,
Como na antiga Roma.
Tudo lá é devassidão,
Rufam os tambores na multidão,
Tem músicas lixo de montão;
Descem todos das ladeiras,
Como águas de cachoeiras,
E nem importo ser queimado,
Pelo fogo ardente do seu Deus,
Se todos já somos plebeus.
Só não quero virar estátua de sal,
Pois ainda tem o esfrega do carnaval.
Isso aqui é uma zorra,
Com cultura de massa alienada,
Nessa loucura da muvuca,
Nem é preciso ser bom da cuca!
Meu amigo Bandeira,
Você está dando uma de bobeira,
Pior é ficar em estado de coma,
Vou me embora pra Sodoma,
Quem quiser que vá pra porra,
E de lá sigo pra Gomorra,
No embalo, eu vou, eu vou
Ver o nosso Cristo Redentor,
E cair no samba, sim senhor!
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