AS 78 ROTAÇÕES DA MEMÓRIA
(Chico Ribeiro Neto)
A memória gira em 78 rotações e me traz muitas canções, saídas daquele imenso móvel claro chamado radiola, onde se levantava uma tampa e um prato preto rodando me transportava para outro mundo.
Quando alguém botava uma cadeira junto da radiola, eu, com uns 8 pra 9 anos, percebia que aquele ia sonhar. Estrategicamente colocada no canto da sala, ela era um autêntico refúgio, renovando a alma através da música.
Lembro-me de um tio que tinha acabado de terminar o noivado e que botava o prato preto de Maysa Matarazzo, o cotovelo sobre o móvel da radiola e a cabeça inclinada pra baixo. Entre pensativo e apaixonado, meu tio ficava lá, sem se mexer, todo o lado A e o lado B.
Os primeiros discos chegados lá em casa, ainda em 78 rotações, foram de chorinho, xote e baião. Primeiro, foram dois, depois, mais três e assim, de mês em mês, pingava sempre mais um disquinho.
A radiola – me esqueci de dizer – tinha quatro pés finos, com ponteira de metal, que lhe davam uma elegância na sala. Em cima daquelas pernas, parecia uma ave musical, sempre limpa com óleo de peroba.
Hoje, lembro-me de uma história que Fred Souza Castro conta com um jeito engraçadíssimo: o sujeito (um petroleiro) morava no IAPI e convidou uma turma para a inauguração da radiola. Teve champanhe, fita inaugural e discurso. No fim da inauguração, o petroleiro, uns cinco uísques depois, falou pra mulher: “E para o mês é o quê, nêga?” E ela, em cima da bucha: “Uma televisão”.
Os primeiros LPs foram recebidos com festa. Como é que cabia tanta música naquele prato só um pouco maior do que o de 78? E aí apareceu uma brincadeira interessante, mas só quando minha mãe não estava perto: colocar um LP em 78 rotações e morrer de rir com o som de 33 rotações totalmente distorcido.
“Feito para Dançar”, “Uma Noite no Arpége”, com a orquestra de Waldir Calmon – Antonio Matos me disse, outro dia, que comprou uma regravação – eram LPs que animavam muito. Foi com eles e com minhas primas de Jequié que ensaiei os primeiros passos, o coração batendo e, de vez em quando, pisando no dedão de uma.
Você já foi em festa de radiola? Era interessante, no Clube Comercial, na Avenida Sete. Ficava aquele mundão de disco, um em cima do outro, e a expectativa era o que vai tocar agora, enquanto aquela moça não olha e a timidez quase apavora.
Em festas lá na rua, pintava sempre aquela pequena radiola Philips portátil, uma em que a própria tampa era a caixa de som. O som era terrível, pior ainda quando a pilha estava fraca, mas o que valia era a novidade. Nossos olhos namoravam também aquela caixinha pequena, de onde vinha a música e que, na hora de ir embora, era só botar embaixo do braço. Era fácil ligar e desligar: o braço pra lá e esperar fazer “traque”. Hora de ir, precisava contar os discos, sempre ficavam alguns emprestados, outro dia ainda danço de novo “Michele” com ela, “ma belle”.
Uma vez, um disco 78 quebrou lá em casa, e minha mãe juntou os pedaços pra jogar no lixo quando a empregada interveio: “Não jogue fora, não, dona Cleonice, que eu quero aprender a letra.” Caso apurado, ela pensava que a letra vinha escrita no disco. Era só colar os cacos e ler.
O compacto simples vinha primeiro, trazendo o grande sucesso da cantora. Depois vinha o LP, trazendo o sucesso e mais – vejam como toca! – umas 11 músicas. Entre uma e outra, uma enorme faixa, que dava para ouvir o chiado da agulha. Era botar um LP e fechar os olhos, navegar naquelas ondas até receber o tapinha nos ombros: “Já fez o dever?”
(Crônica publicada no jornal A Tarde, edição de 19/04/1989)