:: 7/maio/2025 . 22:51
FASCISTA SÓBRIO E COMUNISTA BÊBADO
Início dos anos 60 do século passado, época da efervescência cultural onde se lia a perder de vista e se discutia de tudo numa pensão pobre, tipo cortiço, situada num velho casarão de Salvador nas imediações do Pelourinho deteriorado, cheio de putas, ratos e malandros. Naquele antro de perdição, estudantes, desempregados, ambulantes e até cafetões se misturavam na mesma igualdade social e racial.
As figuras mais bizarras e folclóricas pareciam sair dos livros de George Orwell, Jorge Amado, Aluísio Azevedo e dos filmes do Cinema Novo de Roberto Pires, Nelson Pereira dos Santos, Alex Viany, Rodolfo Nanni e Glauber Rocha, nosso baiano conquistense. Dia sim e dia não surgiam brigas de “arranca rabo” e a dona, uma ex-cafetina de bordel, colocava moral na bagunça, quer dizer, mais ou menos.
As noites eram um fuzuê danado no bar do “Zeca Molhado”, e o que mais saia era o chamado cravinho, a cachaça misturada porque a cerveja ficava mais cara e demorava de embebedar. Era um puteiro só e as mulheres entravam na roda das conversas que mais rolavam sobre os movimentos das reformas de base do Governo João Goulart com os sindicatos.
O Brasil estava fervendo literalmente com as greves camponesas de Francisco Julião, as manifestações dos trabalhadores nas portas das fábricas, as revoltas dos marinheiros, os rompantes políticos de Miguel Arraes, em Pernambuco, e Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul.
Quem destoava e desafinava do ritmo musical revolucionário era o oportunista de direita Carlos Lacerda, lá na Guanabara. Sem o celular na mão e essas coisas novas das tecnologias das redes socais, o que mais se fazia naqueles tempos era ler, estudar, questionar, protestar e pesquisar. O país estava pegando fogo, como no pensionato dos malucos, a maioria de duros ou lisos de grana, que vivia de bicos e malandragens.
Na turma dos mulambados, sem eira nem beira, que participava das passeatas do Terreiro, da Rua Chile, avenidas Sete de Setembro e Carlos Gomes, sem falar no Campo Grande, existia um sujeito franzino nordestino de altura mediana e cabeça grande que chamava a atenção pelo seu comportamento estranho, um tanto incoerente e paradoxal. Seu apelido era “Quinta Coluna”.
Outra personalidade exótica era um grandalhão negro musculoso que passava quase todo dia na cama, ora na fossa existencial de Sartre, ora vomitando suas teorias mirabolantes de conspirações de jogar bombas em Brasília. Poderia ser classificado como um terrorista se morasse nos Estados Unidos.
Ele tinha uma amante por nome “Navalha” de coxas grossas e rabo exuberante que sempre passava por lá e fazia aquele alvoroço na rapaziada que não podia ver uma mulher, de tanto tempo que ficava seco sem pegar uma para trocar o óleo. Alguns se viravam como podiam, na base da cultura do jeitinho brasileiro.
“Quinta Coluna” era nossa maior diversão e até “tombamos” o sujeito como patrimônio cultural baiano material e imaterial. Quando estava sóbrio era um fascista patriota, de raízes nacionalistas, que falava de Mussolini, dos integralistas de Plínio Salgado e admirava os discursos dilacerantes do Lacerda. Era como o gay de armário que quando começa a tomar umas, mostra o seu outro lado frescalhado e a rebolar os quadris.
Às vezes, as discussões terminavam em porrada e tinha um radical de esquerda que arrastava o “Quinta Coluna” até a porta da pensão e o empurrava na rua das prostitutas. Depois de um tempo ele voltava mais manso, calado e se encostava lá num canto.
O pessoal, no entanto, preservava o cabra porque, afinal de contas, era um folclore ideológico, tipo vira folha, uma metamorfose ambulante ao pé da letra. Era só encher a cara de bebida e depois de umas biritas brabas, o fascista virava a casaca, fechava seu punho de valente e começava a fazer discursos comunistas.
Subia nas mesas e, com seu berro forte na garganta, criticava a burguesia, os capitalistas exploradores do trabalho humano; incitava as massas e pregava o marxismo da luta de classe. Metia o pau na religião, dizendo ser o “ópio do povo”.
O socialismo era sua bandeira de saída para uma humanidade mais digna e justa. Lenin, Stalin e Mao Tsé-Tung eram seus heróis revolucionários. Não demorava muito e soltava seus bordões de “povo unido, jamais será vencido! ”, “Operários do mundo, uni-vos! ”. Às vezes, cantava e declamava a Internacional Socialista.
A impressão era que ele incorporava o espírito de um grande intelectual filósofo socialista científico do passado, como o Friedrich Engels, a polonesa-alemã marxista Rosa Luxemburgo, Antônio Gramsci ou Gyorgy Lukacs. Citava até o anarquista francês Prudhon.
O cara virava uma fera, só que depois de sóbrio ficava uma besta quadrada nazifascista. Cada um fazia uma vaquinha para pagar sua bebida e ver o “Quinta Coluna” comunista de primeira rasgar o verbo contra as elites e os capitalistas. Todo mundo fazia uma roda, gritava, animava-o e metia mais pinga quente em sua goela.
Só que “Quinta Coluna” se lascou e se ferrou quando entrou a ditadura civil-militar de 1964. Naquela época começou a aparecer agentes federais por toda parte. Eram os Comandos de Caça aos Comunistas. Numa dessas suas bebedeiras de comunista, a federal levou nosso patrimônio para o porão do Doi-Codi e deixou o “Quinta Coluna” moído de tanta tortura.
Depois de sóbrio, o moço lá estava em frente do inspetor carrasco, apoiando o regime, elogiando o patriotismo e batendo no peito que era um deles. A princípio, o capitão da ditadura não acreditou no que viu, mas depois de umas duas ou mais passagens pela cadeia, deixaram ele para lá, só que davam uns tabefes e mandavam ir embora.
Investigaram que o nordestino não participava de nenhuma organização comunista, nem de grupo subversivo. Era um inofensivo ao regime. Com esse esquema, o “Quinta Coluna” era o único cidadão brasileiro daquela época com liberdade de ser comunista e meter o pau na burguesia, pelo menos nas bebedeiras. Vez ou outra ia para o xilindró e depois soltavam.
O FATÍDICO DIA SEIS DE MAIO QUE CASSOU VITÓRIA DA CONQUISTA EM 64
Naquela manhã frienta de seis de maio de 1964 os conquistenses acordaram com um pressentimento diferente em seus corações. A neblina deslizava como fumaça caída da Serra do Periperi e invadia as principais ruas e periferias da cidade. Esparramava seus fios finos no horizonte entre o Parque de Exposições; na final da Avenida Getúlio Vargas, em direção à Barra do Choça; no ponto do “Gancho” da zona sul, que leva à Itambé; e abraçava o outro lado oeste, na “Boca do Sertão”, com destino a Anagé e Brumado.
A abertura deste texto está no capítulo “O Cerco dos Fuzis na Terra do Frio”, extraído do livro “Uma Conquista Cassada”, do escritor e jornalista Jeremias Macário, que relata o fato histórico, infelizmente esquecido pelos conquistenses, sobre como se deu, logo no início, o desdobramento da ditadura civil-militar- burguesa de 1964, culminando com a cassação do prefeito José Pedral Sampaio, eleito pelo povo, em 1962.
O impedimento arbitrário de Pedral, com a força das armas, na 30ª sessão extraordinária da Câmara Municipal de Vereadores, que está completando 61 anos, interrompeu o avanço econômico e social de Conquista, naquela época com 45 a 50 mil habitantes na zona urbana. Contra a oligarquia de Gerson Salles e os poderosos da cidade, Pedral venceu Jesus Gomes e se tornou no prefeito mais jovem e popular de Vitória da Conquista.
Logo cedo a cidade foi invadida pelos coturnos da tropa de 100 homens comandados pelo capitão Bendock e cobertura do sargento José Antônio de Oliveira Salles que tomaram o centro da Praça Barão do Rio Branco e suas imediações, como Praça Tancredo Neves (Jardim das Borboletas), Sá Nunes (Clube Social) e transversais Alameda Ramiro Santos (Beco Chico Piloto), Lima Guerra (Beco da Tesoura), Ernesto Dantas (Beco Sujo), Avenida Siqueira Campos (Beco da Moranga), Rua das Sete Casas (Fórum João Mangabeira), Laudicéia Gusmão (Rua do Cobertor), Rua Dois de Julho (Rua da Vagem), Góes Calmon (Rua das Flores) e João Pessoa (Rua da Boiada).
O agente da ditadura já tinha os nomes dos ditos “comunistas e subversivos”, muitos dos quais apontados pelos opositores, com respaldo do jornal “O Sertanejo”, que perderam as eleições e queriam o revanchismo. Era chegada a hora da vingança, e o prefeito, que apoiou a campanha pela legalidade pela posse do vice-presidente João Goulart (1961), liderada por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, era a peça fundamental.
Logo após a prisão do chefe do executivo, em frente ao Clube Social, quando pela manhã se dirigia ao seu trabalho na Prefeitura Municipal, o capitão e seus coligados apoiadores do regime ditatorial convocaram uma sessão extraordinária dos vereadores, com a finalidade única de cassar o mandato democrático de Pedral, considerado como comunista. A Câmara foi cercada pelos soldados e os parlamentares foram forçados a destituir o chefe do governo. Orlando Leite foi indicado como substituto. Simbolicamente, todo povo de Vitória da Conquista foi cassado e amordaçado.
Outros fatos ocorreram antes, no seis de maio e depois, com várias prisões de companheiros que defendiam a liberdade e um governo progressista, inclusive aconteceu o “suicídio” do vereador Péricles Gusmão, no 9º Batalhão da Polícia Militar. O professor Públio de Castro foi outro visado que mais permaneceu preso em Salvador, cerca de nove meses. Ao todo foram aproximadamente 100 detidos, vistos como inimigos do regime militar.
Todos os fatos históricos que marcaram o fatídico seis de maio estão no livro “Uma Conquista Cassada – cerco e fuzil na cidade do frio”, com detalhes sobre o antes e após o golpe de 64 em pleno período da Guerra Fria entre Estados Unidos e a União Soviética. Era o mundo capitalista contra o socialismo das revoluções russa (1917), chinesa (1949) e a cubana (1954). A obra foca a ditadura em Conquista, mas faz uma contextualização do regime opressor dos generais na Bahia, no Brasil e na América Latina.
O mais lamentável é que esse seis de maio em Vitória da Conquista caiu no esquecimento quase que total, só lembrado por alguns artistas, professores, intelectuais e os da velha geração. O assunto nem é debatido nas escolas entre os nossos jovens. O pior ainda é que a Câmara de Vereadores, que foi obrigada a se curvar e cassar o prefeito Pedral, não faz menção e não registra esse episódio opressivo sofrido pelo município.
Essa perda da nossa memória tem levado os extremistas de direita a irem para as ruas pedir uma intervenção militar, o que significa uma nova ditadura e derrubada da democracia, como ocorreu em oito de janeiro de 2023, em Brasília, com a invasão dos três poderes e até ameaças de assassinato do presidente, do seu vice e de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Como as feridas continuam abertas e os torturadores da ditadura não foram punidos, um bando de traidores da pátria pedem anistia aos golpistas.
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