outubro 2021
D S T Q Q S S
 12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31  

:: 9/out/2021 . 0:05

UM REVOLUCIONÁRIO MASSACRADO PELO REGIME DITATORIAL DA NIGÉRIA

Através do seu afrobeat, com letras revolucionárias que questionaram os sistemas colonialistas, bem como o puritanismo das elites africanas cristãs e islâmicas, apegadas ao poder, à violência e à corrupção, o músico Fela Kuti foi preso e torturado pelo regime ditatorial nigeriano no governo de Olusegun Odasango, na década de 70.

De acordo com o professor Amaílton Magno Azevedo, que escreveu um capítulo sobre Fela Kuti na obra “Intelectuais das Áfricas”, ele nasceu na Nigéria no ano de 1938 e, ao longo da sua carreira até 1977, compôs uma significativa produção musical que o alçou à cena mundial ao fundar o estilo afrobeat.

O professor organizou o texto em temas chaves, como a África de Fela; o Afrobeat no contexto do Atlântico Negro; Fela, a dança e o corpo negro; Fela, o revolucionário e as questões de gênero (ele tinha uma visão machista); e Zombie: Uma pedrada no poder.

O africanista cita o escritor Carlos Moore, em seu livro “Fela. Esta Puta Vida” onde destaca toda sua história, que se transformou em referência estética e política no contexto da música popular negra do lado de cá da margem atlântica.

Diz o autor do texto que, se a África viveu décadas perdidas no período pós-colonial, em termos social e econômico, a vibração cultural das artes negras reposicionou o continente numa dimensão de vitalidade e pujança, principalmente quanto as lutas de resistência cultural.

Assinala que a obra de Fela sempre esteve inserida na dinâmica de reinvenção da África sob o prisma da descolonização e imersa na ordem do renascimento. Fela viveu nos períodos colonial e pós-colonial. Ele testemunhou essas duas experiências. Uma, amarga, sombria e devastadora. A outra vislumbrava um tempo de esperança e renascimento.

Pela sua historiografia, segundo Amailton Magno, a África transitou de uma esperança utópica de renascimento com a meta narrativa da independência para uma realidade de frustrações e desencantos. Apesar de tudo isso, o estudioso de Fela afirma que a África continua sendo aquilo que Gilberto Gil falou de “terra fundante, terra matriz, terra onde se encravam as raízes corporais e álmicas da humanidade, reconhecido berço de todos nós”. É a terra dos mais injustiçados do mundo, completa Amaílton.

Depois de fazer uma descrição sobre o pan-africanismo e as influências das diásporas negras na musicalidade da África, o autor do texto ressalta que desde os anos 20 encontram-se vestígios de memórias sônicas ligadas a jazz, às músicas rítmicas do Brasil e Caribe.

“Essas conexões guardam também um rastro de memórias rítmicas entre Brasil e Nigéria desde a década de 30 do século XIX, quando os retornados brasileiros se estabeleceram em Lagos e outros locais. Os iorubas e crioulos nascidos no Brasil formaram uma comunidade e contribuíram na culinária, arquitetura e musicalidade”.

Conta que Fela se inseriu no universo do highlife antes do seu envolvimento no afrobeat. “A visão de Fela se cristalizou num período em que os povos negros da África, Caribe e das Américas estavam estabelecendo uma aliança política, cultural, artística e pessoal sem precedentes. Direitos civis, descolonização e independência tornaram-se os temas centrais da luta negra na segunda metade do século XX”.

Durante sua trajetória, Fela incorporou estilos musicais, instrumentos e ideias do discurso nacionalista negro dos Estados Unidos (antes ele passou por Londres). Seu contato com Malcom X também contribuiu na configuração estética e política do afrobeat.

Após essa experiência, ele modifica sua forma de pensar, nascendo dali uma nova consciência sobre si, os negros e a África. A partir dali ele passou a adotar atitudes mais combativas, descolonizada e ativista. Suas bandas adquiriram um tom político e contestador.

“Inspirada na vida dos injustiçados, do gueto e contra as instituições do status quo, o afrabeat surgiu da necessidade de recomposição da História da África, do seu renascimento, da superação do passado colonialista e do esquecimento no pós-independência. A retórica de Fela pró-negra atraia inclusive setores políticos com inclinações marxistas que desprezavam as convenções estabelecidas”.

Alguns trechos do texto de Amaílton em “Intelectuais das Áfricas” sobre Fela: “Ele fez do afrobeat um instrumento crítico da pilhagem da África. Desejou encarar a “dimensão trágica da África”, dilacerada pela contradição em negar uma herança de submissão e afirmar um novo destino, como assim sugerem o repertório das letras, que se transformavam em “pedras atiradas nas classes dominantes”. Nelas revelam-se a orientação ideológica e política de crítica ao Estado pós-colonial, de repulsa ao imperialismo euro-americano e de apoio aos ideais pan-africanistas”.

“Seu canto é manifestação de resistência. É improviso, é canto anasalado, é um canto negro. Gilberto Gil fala dessa maneira de cantar em que se busca uma “excelência da alma, numa emissão mais natural, mais malemolente, mais negro mesmo”.  O músico revolucionário, segundo ainda Amaílton esbarrava numa visão torpe quando refletia sobre o universo feminino. Dizia ele acreditar na superioridade masculina e na obrigação da mulher em se conformar com sua inferioridade física”. No final da sua carreira ele não adotava mais esse conceito machista.

Seu disco Zombie foi uma pedrada no poder que, conforme Fela, era violento e devastador. As letras expressavam uma encorpada crítica ao governo ditatorial da época (1976). Para protestar contra o II Festival Mundial de Artes Negras, na Nigéria, em 1977, Fela criou o dele em sua República Kalakuta, que foi cruelmente atacada por mil soldados que estupraram várias mulheres (27) de Fela, feriram sua mãe e destruíram seus acervos.

Fela foi preso e torturado pela ira do general presidente Olusegun Obasango. Sua República foi totalmente destruída. Ele foi um músico popular e querido na Nigéria e no continente. “Sempre clamou por democracia, desejou ser candidato a presidente da República; sem, no entanto, ter conseguido o direito de disputar eleições”.

“Desejou justiça e felicidade para a África, mesmo sabendo das dificuldades enfrentadas com prisões e torturas. A repressão sofrida por Fela não foi praticada pela colonização e sim por um poder negro”. Depois de tudo isso, transformou-se num homem solitário, desconfiado e sisudo. No final da sua vida passou a recorrer a práticas de misticismo, como forma de autoproteção.





WebtivaHOSTING // webtiva.com . Webdesign da Bahia