:: 30/set/2021 . 23:51
A SALVADOR DOS BONS TEMPOS
Oh quanta saudades da Salvador (Bahia) das décadas dos meados do século passado quando ainda não havia tanta violência e a cidade era convidativa para os boêmios da noite, sem perigo de assaltos, sem contar a calmaria do dia, com um trânsito de pessoas e veículos sem sinais de estafa!
Lembro dos finais da década de 60 até os anos 80 quando curtia as noitadas com os amigos sem a preocupação de horário para retornar para casa, muitas vezes a pé dando minhas baforadas de cigarro ao ar e apreciando as paisagens da Baia de Todos os Santos.
Da Cidade Baixa do Mercado Modelo subia pela Ladeira da Montanha ao Gravatá dos cabarés cortando a Avenida Carlos Gomes ao Braseiro, ou Avenida Sete de Setembro – Piedade – Campo Grande até o Corredor da Vitória. Saudades do prédio de “A Tarde” (hoje Hotel Fasano) onde comecei a laborar em início de 1973 como Revisor e depois Repórter de Redação!
A Rua Chile ainda era famosa com seus personagens cativos como a Mulher de Roxo, a escadaria rolante das Americanas, artistas e intelectuais papeando nos cafés e bares. O velho Cacique e o Anjo Azul estavam sempre com suas portas abertas para se farrear até o dia clarear.
Como era prazeroso assistir o pôr-do-sol do final da tarde caindo sobre a bela paisagem da Baia de Todos os Santos vendo no horizonte a orla de Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, tendo ao lado o Teatro São João e o Edifício Sulacap! Tomar um banho de mar sossegado no Porto e na Barra Avenida, acompanhado do Farol e do Edifício Oceânico!
Naquela época ainda era bom viver em Salvador porque ainda se podia respirar a qualidade do ar, não o de hoje tão poluído e arriscado por causa da violência da bandidagem. Tomar um cravinho com os amigos e as morenas no Centro Histórico com suas arquiteturas seculares, e depois pegar o buzú na Barroquinha, Baixa dos Sapateiros, ou descer o Elevador Lacerda!
Quantas boas lembranças daqueles tempos de andanças e causos para contar nas noites de boemias com companheiros e colegas de trabalho! Não tenho mais saudades da Salvador de hoje onde a cidade ficou mais desumana, e as pessoas pouco se conhecem. Não tenho mais saudades dessa Salvador estressada do corre-corre pelo ter que reduz nosso tempo de vida. Tenho saudades da Salvador do ser, do curtir e do existir.
BEM ACOMPANHADO
“Viva o Povo Brasileiro” é uma das obras-primas do jornalista e escritor baiano de Itaparica, João Ubaldo Ribeiro, que fala das nossas origens ancestrais, mistura do índio com o português, o negro, o turco sírio-libanês e do nosso caboclo. Esse caldeirão de ingredientes, para muitos indigesto, gerou a nossa cultura miscigenada. Em homenagem ao grande escritor, foi erguido na Praça da Luz, na Pituba, uma estátua onde ele apresenta a premiada obra. Até aí tudo bem, mas o inusitado é o personagem do idoso morador anônimo de rua que praticamente passa todo dia ao seu lado, como um vigia ou escutador das imortais palavras do escritor de tantos livros, artigos e crônicas em jornais e revistas. No flagrante da sua máquina fotográfica, o jornalista Jeremias Macário ouviu dele (o morador) que se sentia bem acompanhado do homenageado por tão bem ter retratado na literatura o povo brasileiro. Coincidência ou não, João Ubaldo em seus trabalhos literários e em seus comentários sempre escreveu sobre essa tão profunda desigualdade social e clamou por justiça e direitos humanos para todos. A impressão é que o idoso ali se aportou em segurança, na fé e na esperança de dias melhores. Em seu silêncio, parecia refletir sobre seu passado e presente, não sabendo ao certo o seu futuro. Só de uma coisa ele tinha certeza de que se sentia bem acompanhado do escritor.
O QUE RAUL DIRIA?
Versos de autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
Se vivo fosse, o que Raul diria?
Que ninguém quer mais alugar o Brasil,
A Amazônia vai virar uma pastagem,
Sem índios, só garimpos e pilhagem,
Na onda assassina vil dessa psicopatia.
O que mesmo Raul diria?
Sou a mesma mosca a lhe atanazar,
Em sua sopa venosa da loucura,
Estúpida que pede a volta da ditadura.
O que mesmo Raul diria?
Ainda sou a metamorfose ambulante,
Que cospe na cara do facínora farsante,
Negador da ciência e da letal pandemia.
O que mesmo Raul diria?
Que soltaram todos os capones,
Deletaram provas e os telefones,
No país do samba e da hipocrisia.
O que mesmo Raul diria?
Essa via é trevas da Idade Média,
Com milhões nas filas da fome,
De gente sem nome a penar todo dia.
O que mesmo Raul diria?
Ele ainda falaria de amor e dor,
Tocaria outra canção alternativa,
Para esta sociedade alienada primitiva.
O que mesmo Raul diria?
Que tenho medo, muito medo,
Das pedras que rolam a chorar,
Nas gigantes ondas revoltas do mar.
O que mesmo Raul diria?
Que se continua aceitando a mentira,
De que Deus é quem quer assim,
E que assim seja seu castigo e ira.
O que mesmo Raul diria?
Que o nosso Brasil regrediu,
Como há dois mil anos atrás,
Quando a terra era quase vazia.
O que mesmo Raul diria?
Que você vive como gado em manada,
Com a morte escancarada no sofá,
Aceitando o cloro pra seu vírus curar.
O que mesmo Raul diria?
Que não tente errar outra vez,
Na tentação do pecado capital,
Na estação do mal todo mês.
O que mesmo Raul diria?
Alibabá tem milhões de ladrões,
Pra fazer sucesso tem que a bunda rebolar,
E fingir que é o enviado de Javé e Alá.
O que mesmo Raul diria?
Hei anos vinte e vinte e um de horror!
Muito fanatismo evangélico e militar,
Lixo, violência e estação sem cor.
O que mesmo Raul diria?
Com esse diabo nem lero levar,
Que ele só quer do ser humano,
Levar para o sacrifício do altar.
A PRESERVAÇÃO DA NOSSA HISTÓRIA AINDA RESISTE A DURAS AMEAÇAS
Quem não conhece o seu passado não pode vislumbrar o seu futuro. É uma pena lamentável que a cultura em nosso país esteja sendo destruída por falta de um maior apoio dos governantes. As instituições vivem sempre em crise, com a cuia na mão, sob ameaça de perder seus valiosos e inestimáveis acervos, como é o caso do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, guardiã da Independência da Bahia (2 de julho de 1823).
Em minha recente viagem a Salvador fui visitar o meu amigo diretor do Instituto, Fernando Souza, quando, na oportunidade, fiz a doação dos meus livros “Uma Conquista Cassada – cerco e fuzil na cidade do frio” e “Andanças” – causos, versos e prosas. Ouvi relatos das dificuldades para manutenção do Instituto Histórico que guarda nossa preciosa história em livros, jornais e revistas inéditos, muitos dos quais originais não mais encontrados em outros lugares.
Encravado na Avenida 7 de Setembro, em frente da Praça da Piedade, palco da condenação dos líderes da Revolução dos Alfaiates (Conjuração Bahiana), e ao lado do Gabinete Português, outra casa de grande valor cultural, o Instituto por si só é a própria história da Bahia que deveria estar em boas condições financeiras para preservar seu acervo, mas não é isso que ocorre.
Em conversas sobre essa questão do desprezo e até odiosa posição política contra nossa cultura, ouvi de Fernando que o Teatro da Gamboa (não desmerecendo suas atividades em prol da cultura) recebe do Governo do Estado uma maior subvenção financeira que o Instituto Histórico. Não dá para entender esse tipo de tratamento desproporcional.
Além do aporte de livros (mais de 50 mil), o Instituto possui várias relíquias do nosso poeta maior Castro Alves, como uma mexa do seu cabelo e suas obras mais importantes, intituladas “Espumas Flutuantes” e “Navio Negreiro”, grande parte escrito durante sua última viagem de navio do Rio de Janeiro para a Bahia quando já se encontrava doente.
Mesmo com parcos recursos, a direção da Casa conseguiu digitalizar grande parte dos principais jornais baianos e espera começar esse mesmo processo a partir de todo seu acervo, de modo a disponibilizar conhecimento e saber aos interessados pesquisadores pela internet. Pelo Instituto já passaram grandes nomes como de Pedro e Jorge Calmon (meu chefe de Redação do jornal A Tarde), Consuelo Pondé (tive o privilégio de ser seu aluno), Theodoro Sampaio e tantos outros que lutaram para manter a instituição em funcionamento.
Quero agradecer a boa receptividade e acolhida do meu amigo Fernando e sua equipe de trabalho, bem como agradecer pelos livros recebidos sobre “Manuel Querino”, de autoria dos colegas Carlos Alberto Dória e Jeferson Bacelar, “Mestre Josaphat – um militante da democracia”, de Luiz Almeida e a “Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia”, editada em 2020, que traz um estudo sobre “Luiz Gama – o advogado dos escravos”, de autoria de Nelson Câmara.
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