A brava Estela

Um dia, entusiasmado diante da multiplicidade de abordagens sobre um mesmo tema, o também super observador Eduardo Galeano disse que “desejaria ter tantos olhos como a câmera de Estela Bravo”. Estava se referindo à qualidade dos pontos de vista que essa cineasta estadunidense-cubana faz jorrar em seus documentários. Não apenas no que se refere a posicionamentos dramáticos, políticos e humanistas mas também na expressão de sentimentos diante da situação que está filmando, das tristezas que afloram na meio da alegria, do humor que se esconde entre os horrores da guerra, dos vários e surpreendentes tipos de resistência que o ser humano inventa e reinventa diante de fracassos, perdas e danos.

Seus documentários tratam de questões sociais e políticas em escala macro, envolvendo países, nações, ideologias, rupturas históricas, coletividades de milhões de pessoas. Estela aborda essas questões abrangentes a partir de unidades, de individualidades, de dramas pessoais, de retalhos dramáticos — fazendo-me lembrar da lição capital de Alberto Cavalcanti a jovens documentaristas, na década de 1930, ao dizer que um bom caminho para um documentário sobre os correios é seguir uma carta, que o melhor caminho para um filme sobre a humanidade é filmar um ser humano, a alma de um ser humano. Um bom exemplo desse enfoque direto nas individualidades é Miami-La Habana (1992), envolvendo com altas doses emotivas as famílias cubanas divididas, parte morando em Cuba, parte morando nos Estados Unidos. Referindo-se a esse documentário, e com lágrimas nos olhos, o cineasta argentino Eliseo Subiela disse que “a dor também serve para entender e crescer”.

Essa cineasta pan-americana começou a filmar ainda adolescente, no inicio da década de 1950, e suas primeiras gravações já apontavam para o rumo que iria seguir em documentários realizados nos Estados Unidos, Cuba, Argentina, Chile. Ela filmou os filhos do casal Julius e Ethel Rosenberg diante da Casa Branca, em Washington, pedindo ao presidente Eisenhower que não executasse seus pais, condenados à cadeira elétrica por espionagem, por terem passado para a União Soviética informações sobre a bomba atômica. O que atraiu a menina Estela naquele assunto, que punha em perigo a segurança do mundo bipolar de então, não foi o fato em si, nem os aspectos polêmicos do processo, nem a disputa Leste/Oeste mas sim o sofrimento e o desemparo de duas crianças a ponto de se tornarem órfãs e, de alguma maneira, amaldiçoadas.

Anos depois estava na Argentina, onde se casou com o médico Ernesto Bravo, seu companheiro inseparável desde então, e para onde retornou várias vezes para filmar a tragédia dos desaparecidos e das Mães e Avós da Plaza de Mayo. No Chile abordou a ditadura de Pinochet através dos graves problemas de identidade dos jovens, filhos de exilados ou assassinados, quando a ditadura caiu e retornaram a um país que não conheciam. Em Niños endeudados (1987), a questão da dívida externa latino-americana é tratada a partir do impacto devastador em crianças argentinas, bolivianas, colombianas e peruanas. Em Fidel – La historia no contada (2001), que registra o primeiro discurso do líder cubano após a vitória da revolução, o clímax, a cena que fica na memória de quem vê o filme, é o momento em que uma pomba branca pousa no ombro de Fidel e a surpresa da multidão, composta em sua maioria por pessoas relacionadas com a santería, com o candomblé — aí ele recebeu a alcunha popular Cavalo de Oxum, a deusa do amor, do parto e da água (e o codinome secreto de Fidel na CIA passou a ser El Caballo). Na narrativa sobre a visita de João Paulo II ao Chile em 1986, em plena era Pinochet (El Santo Padre y la Gloria), o que marca nosso coração e nosso inconsciente é a imagem e a história de uma jovem que se encontra com o Papa: Gloria, que havia sido molhada com gasolina e incendiada pelos militares e sobreviveu.

Esses são os caminhos dessa documentarista que há mais de meio século vive entre Nova York e Havana, sentindo na pele e nas entranhas as ondas de choque causadas nas pessoas comuns pela relação de dentes arreganhados entre Estados Unidos e Cuba. A Guerra Fria iniciada depois da Segunda Guerra Mundial e encerrada com a implosão da União Soviética, em 1991, nunca deixou de existir entre os dois países vizinhos, como um eterno filme de James Bond rodado no Caribe. O drama de milhares de famílias divididas, separadas, danificadas por essa situação é o foco mais importante da cineasta: além de Miami-La Habana vale salientar Los que se fueron e Los Marielitos, dos anos 1980, e Los excluíbles cubanos, realizado para a TV canadense em 1996.

Esta semana revi Operación Peter Pan, de 2011, sobre episódio dantesco, hiper dramático, desmesurado ocorrido no início dos anos 1960, quando 14 mil crianças foram levadas de Cuba para os Estados Unidos em uma operação da CIA, para serem salvas do comunismo. Foram centenas de voos Havana-Miami e o plano era devolver os meninos e meninas (muitos ainda bebês) às famílias alguns meses depois, quando Fidel fosse derrubado ou morto. Isso não aconteceu e muitas, muitíssimas crianças, jamais foram resgatadas pelos pais. Esses são os caminhos da sorridente e corajosa Estela, palavra que em espanhol significa o rastro no ar ou na água produzido por um objeto em movimento. No caso de Estela Bravo, um rastro de fina e luminosa percepção marcando o tempo em que vivemos.

Por Orlando Senna

Alguns Dados Biográficos: Itamar e Orlando Senna

Orlando Senna nasceu em Afrânio Peixoto, município de Lençóis Bahia. Jornalista, roteirista, escritor e cineasta, premiado nos festivais de Cannes, Figueira da Foz, Taormina, Pésaro, Havana, Porto Rico, Brasilia, Rio Cine. Entre seus filmes mais conhecidos estão Diamante Bruto e o clássico do cinema brasileiro, Iracema. Foi diretor da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños e do Instituto Dragão do Mar, Secretário Nacional do Audiovisual (2003/2007) e Diretor Geral da Empresa Brasil de Comunicação – TV Brasil (2007/2008). Atualmente e presidente da TAL – Televisão América Latina e membro do Conselho Superior da Fundacion del Nuevo Cine Latinoamericano.

Itamar Pereira de Aguiar nasceu em Iraquara – Bahia; concluiu o Ginásio e Escola Normal em Lençóis, onde foi Diretor de Colégio do 1º e 2º graus (1974/1979); graduado em Filosofia, pela UFBA em 1979; Mestre em 1999 e Doutor em Ciências Sociais – Antropologia – 2007, pela PUC/SP; Pós doutorando em Ciências Sociais – Antropologia – pela UNESP campus de Marília – SP. Professor Titula da Universidade Estadual do Sudoeste do Estado da Bahia – UESB; elaborou com outros colegas os projetos e liderou o processo de criação dos cursos de Licenciatura em Filosofia, Cinema e Audiovisual/UESB.