CRISE CIVILIZATÓRIA

No fim do século IXX, em seu livro Assim falou Zaratustra, Nietzsche pôs a morte de Deus na boca de um personagem louco e chamou a atenção para a decadência metafísica da Europa, disse que a cultura européia já não podia aceitar racionalmente a noção deísta, que a ciência, a política e a arte estavam matando Deus. Pois bem: Deus não morreu. Melhor: os deuses não morreram. Nem o Deus único e com maiúscula dos judeus, árabes e cristãos, nem os deuses múltiplos da China, Índia, Brasil e de centenas de culturas ao redor do planeta.

Tampouco a História acabou como pensava o estadunidense Francis Fukuyama (Fim da História e o último homem) nos anos 1990, momento em que a União Soviética se dissolvia e o mundo passava do poder bipolar (URSS e EUA) para a superpotência única encarnada nos Estados Unidos. A tese central de Fukuyama: o neoliberalismo é o ápice da evolução econômica e vai promover uma tecnológia que suprirá todas as necessidades. Com tudo resolvido, seria o fim do desenvolvimento das instituições e das ideias. Até agora não aconteceu.

De todas as teses-profecias sobre o século XXI que ficaram na moda no fim do século passado, a única que está valendo é a do choque de civilizações, do nova-iorquino Samuel P. Huntington (The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, 1996), que pregava, como está no título, uma reconstrução da Ordem Mundial. O choque é, cada vez mais, uma fratura exposta: o Ocidente cristão em conflito com o Oriente islâmico, a China disputando em pé de igualdade com os EUA o posto de maior economia mundial, a Europa em crise aceitando a contragosto a invasão de seu território por milhões de migrantes africanos e asiáticos.

Já em pleno século XXI, além do choque de civilizações, o temor está se voltando cada vez mais para a possibilidade de duas guerras mundiais, que podem se juntar em uma só: a guerra da água potável e a guerra cibernética, a ciberguerra. Muita gente acredita que ambas já começaram, estão engatinhando. Indícios não nos faltam, desde a ameaça da cidade de São Paulo ficar sem água e de duas nascentes do rio São Francisco terem secado até o episódio da “guerra da água de Cochabamba”, na década passada, quando o Banco Mundial pressionou duramente a Bolívia para que privatizasse seu serviço de abastecimento de água.

A perspectiva é que a anunciada escassez dos recursos hídricos gere uma disputa imensamente maior do que a que já existe pelo petróleo e pelo gás natural. Afinal, o “líquido precioso” não é apenas um gerador de energia e riquezas: é essencial para a vida das pessoas e do planeta. E a luta pela vida não tem limites, não tem regras, não tem convenções de Genebra. E a Amazonia está no centro dessa questão.

Os engatinhamentos da ciberguerra também são bem perceptíveis, a espionagem eletrônica causa atritos entre países, confusão e quebras em empresas, o medo generalizado da privacidade de indivíduos e grupos se esfumaçar. O quadro que se pinta são ações de super hackers derrubando sistemas inteiros de países ou regiões, o que significa paralisação de governos, da economia, de forças militares, de serviços essenciais como saúde, transporte, energia elétrica, abastecimento de água. Seria a guerra da desordem, do caos. Seria também a logística, o lastro, para outras guerras, como a da água.

Espero que e rezo para que nada disso venha a acontecer, como não aconteceu o fim da História e a morte de Deus. Mas sinto que estamos vivendo uma tremenda crise civilizatória. A violência é a linguagem dessa crise, apresenta-se com muitas faces e é pandêmica, está em toda parte. O neoliberalismo, a Nova Ordem Mundial não estão dando certo, o capitalismo não está dando certo, entrou em parafuso, não sabe para onde vai. Ou é isso ou o homem, a humanidade, ficou menos inteligente e menos sensível, o que é improvável porque nunca fomos muito nem uma coisa nem outra, se perdemos o pouco que temos sobra nada.

A opção socialista está cada vez mais como uma luz no horizonte, voltou a ser considerada utopia, que em grego significa “nenhum lugar”. Restam apenas alguns bastiões, mesmo levando em consideração o grande território do “capitalismo de estado” da China. O que precisamos de verdade é uma nova Nova Ordem, eu acho. Então, pensamento e ação. Pensação, diria Guimarães Rosa. Um projeto cultural planetário, creio que diriam Glauber Rocha e Fernando Birri. Voltem na próxima semana.

Por Orlando Senna

Comentário:

O bem elaborado artigo de Orlando, sobre graves questões contemporâneas que, ameaçam extinguir a vida, a sobrevivência e a existência do homem no belo, sensível e encantado planeta azul (a Terra), provoca reflexões, convida-nos a filosofar, a assumir a ironia socrática e perguntar: sendo a água um bem indispensável à vida e, especialmente, à vida humana, sendo o homem um ser que criou a Ciência e a Tecnologia, que inventou máquinas para operar com a virtualidade, que produziu a Química e descobriu a composição da água, que construiu equipamentos para retirar dela o sal (dessalgá-la), porque ainda não a produziu artificialmente? Por limitações na produção do Conhecimento dito Científico? Pela força do mito da água presente em todas as culturas humanas em todos os tempos? Por ser ela fartamente encontrada no cosmo? Por questões de natureza econômica? Por qual, ou por quais razões, a sua “escassez” é considerada uma ameaça à vida humana?

Parece-nos “existir mais segredos entre o céu e a terra do que imagina a nosso van Filosofia”, mesmo com “algo no ar além dos aviões de carreira” expressão genial do Barão de Itararé (Aparício Torelli), refiro-me aos satélites girando em torno da Terra e, movimentando, a maquinaria das tele comunicações e dinamizando o mudo virtual. A pesar das tentativas de Marx e dos marxistas, parece-nos o futuro não é mesmo alcançável por quaisquer das Ciências, no sentido Acadêmico e Moderno do termo, pois se coloca em não lugares, transcende a dimensão concreta do real, é possivelmente o lugar do onírico, meta, das ideologias, das profecias, da magia dos encantamentos e encantados, dos fantasmas, onde operam os magos, os feiticeiros, os alquimistas, os profetas e, porque não dizer, os artistas, os poetas.

Assim, é possível que qualquer construção política, tida como perfeita, a melhor, a que vai apresentar soluções “definitivas” para as questões da sobrevivência ou da existência do homem no mundo ou em sociedade, daremos “com os burros n’água”, pois o homem, como disse Erasmo de Roterdão na obra Elogio da Loucura (s/d, p. 44): “enjoado de tudo quanto com êle tiver relação, tornar-se-á, em pouco, objeto de ódio, aversão e horror aos seus próprios olhos, pois a natureza, em geral mais madrasta do que mãe, deu aos homens, e sobretudo aos que possuem certa sabedoria, um poder infeliz que os leva a desdenhar o que tem, para admirar o que não têm, um pendor funesto que altera e destrói inteiramente todas as vantagens, todas as alegrias, todos os encantos da vida”.

Alguns Dados Biográficos: Itamar e Orlando Senna

Orlando Senna nasceu em Afrânio Peixoto, município de Lençóis Bahia. Jornalista, roteirista, escritor e cineasta, premiado nos festivais de Cannes, Figueira da Foz, Taormina, Pésaro, Havana, Porto Rico, Brasilia, Rio Cine. Entre seus filmes mais conhecidos estão Diamante Bruto e o clássico do cinema brasileiro, Iracema.

Itamar Pereira de Aguiar nasceu em Iraquara – Bahia; concluiu o Ginásio e Escola Normal em Lençóis, onde foi Diretor de Colégio do 1º e 2º graus (1974/1979); graduado em Filosofia, pela UFBA em 1979; Mestre em 1999 e Doutor em Ciências Sociais – Antropologia – 2007, pela PUC/SP; Pós doutorando em Ciências Sociais – Antropologia – pela UNESP campus de Marília – SP. Professor Titular da Universidade Estadual do Sudoeste do Estado da Bahia – UESB.