Início dos anos 60 do século passado, época da efervescência cultural onde se lia a perder de vista e se discutia de tudo numa pensão pobre, tipo cortiço, situada num velho casarão de Salvador nas imediações do Pelourinho deteriorado, cheio de putas, ratos e malandros. Naquele antro de perdição, estudantes, desempregados, ambulantes e até cafetões se misturavam na mesma igualdade social e racial.

As figuras mais bizarras e folclóricas pareciam sair dos livros de George Orwell, Jorge Amado, Aluísio Azevedo e dos filmes do Cinema Novo de Roberto Pires, Nelson Pereira dos Santos, Alex Viany, Rodolfo Nanni e Glauber Rocha, nosso baiano conquistense. Dia sim e dia não surgiam brigas de “arranca rabo” e a dona, uma ex-cafetina de bordel, colocava moral na bagunça, quer dizer, mais ou menos.

As noites eram um fuzuê danado no bar do “Zeca Molhado”, e o que mais saia era o chamado cravinho, a cachaça misturada porque a cerveja ficava mais cara e demorava de embebedar. Era um puteiro só e as mulheres entravam na roda das conversas que mais rolavam sobre os movimentos das reformas de base do Governo João Goulart com os sindicatos.

O Brasil estava fervendo literalmente com as greves camponesas de Francisco Julião, as manifestações dos trabalhadores nas portas das fábricas, as revoltas dos marinheiros, os rompantes políticos de Miguel Arraes, em Pernambuco, e Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul.

Quem destoava e desafinava do ritmo musical revolucionário era o oportunista de direita Carlos Lacerda, lá na Guanabara. Sem o celular na mão e essas coisas novas das tecnologias das redes socais, o que mais se fazia naqueles tempos era ler, estudar, questionar, protestar e pesquisar. O país estava pegando fogo, como no pensionato dos malucos, a maioria de duros ou lisos de grana, que vivia de bicos e malandragens.

Na turma dos mulambados, sem eira nem beira, que participava das passeatas do Terreiro, da Rua Chile, avenidas Sete de Setembro e Carlos Gomes, sem falar no Campo Grande, existia um sujeito franzino nordestino de altura mediana e cabeça grande que chamava a atenção pelo seu comportamento estranho, um tanto incoerente e paradoxal. Seu apelido era “Quinta Coluna”.

Outra personalidade exótica era um grandalhão negro musculoso que passava quase todo dia na cama, ora na fossa existencial de Sartre, ora vomitando suas teorias mirabolantes de conspirações de jogar bombas em Brasília. Poderia ser classificado como um terrorista se morasse nos Estados Unidos.

Ele tinha uma amante por nome “Navalha” de coxas grossas e rabo exuberante que sempre passava por lá e fazia aquele alvoroço na rapaziada que não podia ver uma mulher, de tanto tempo que ficava seco sem pegar uma para trocar o óleo. Alguns se viravam como podiam, na base da cultura do jeitinho brasileiro.

“Quinta Coluna” era nossa maior diversão e até “tombamos” o sujeito como patrimônio cultural baiano material e imaterial.  Quando estava sóbrio era um fascista patriota, de raízes nacionalistas, que falava de Mussolini, dos integralistas de Plínio Salgado e admirava os discursos dilacerantes do Lacerda. Era como o gay de armário que quando começa a tomar umas, mostra o seu outro lado frescalhado e a rebolar os quadris.

Às vezes, as discussões terminavam em porrada e tinha um radical de esquerda que arrastava o “Quinta Coluna” até a porta da pensão e o empurrava na rua das prostitutas. Depois de um tempo ele voltava mais manso, calado e se encostava lá num canto.

O pessoal, no entanto, preservava o cabra porque, afinal de contas, era um folclore ideológico, tipo vira folha, uma metamorfose ambulante ao pé da letra. Era só encher a cara de bebida e depois de umas biritas brabas, o fascista virava a casaca, fechava seu punho de valente e começava a fazer discursos comunistas.

Subia nas mesas e, com seu berro forte na garganta, criticava a burguesia, os capitalistas exploradores do trabalho humano; incitava as massas e pregava o marxismo da luta de classe.  Metia o pau na religião, dizendo ser o “ópio do povo”.

O socialismo era sua bandeira de saída para uma humanidade mais digna e justa. Lenin, Stalin e Mao Tsé-Tung eram seus heróis revolucionários. Não demorava muito e soltava seus bordões de “povo unido, jamais será vencido! ”, “Operários do mundo, uni-vos! ”. Às vezes, cantava e declamava a Internacional Socialista.

A impressão era que ele incorporava o espírito de um grande intelectual filósofo socialista científico do passado, como o Friedrich Engels, a polonesa-alemã marxista Rosa Luxemburgo, Antônio Gramsci ou Gyorgy Lukacs. Citava até o anarquista francês Prudhon.

O cara virava uma fera, só que depois de sóbrio ficava uma besta quadrada nazifascista. Cada um fazia uma vaquinha para pagar sua bebida e ver o “Quinta Coluna” comunista de primeira rasgar o verbo contra as elites e os capitalistas. Todo mundo fazia uma roda, gritava, animava-o e metia mais pinga quente em sua goela.

Só que “Quinta Coluna” se lascou e se ferrou quando entrou a ditadura civil-militar de 1964. Naquela época começou a aparecer agentes federais por toda parte. Eram os Comandos de Caça aos Comunistas. Numa dessas suas bebedeiras de comunista, a federal levou nosso patrimônio para o porão do Doi-Codi e deixou o “Quinta Coluna” moído de tanta tortura.

Depois de sóbrio, o moço lá estava em frente do inspetor carrasco, apoiando o regime, elogiando o patriotismo e batendo no peito que era um deles. A princípio, o capitão da ditadura não acreditou no que viu, mas depois de umas duas ou mais passagens pela cadeia, deixaram ele para lá, só que davam uns tabefes e mandavam ir embora.

Investigaram que o nordestino não participava de nenhuma organização comunista, nem de grupo subversivo. Era um inofensivo ao regime. Com esse esquema, o “Quinta Coluna” era o único cidadão brasileiro daquela época com liberdade de ser comunista e meter o pau na burguesia, pelo menos nas bebedeiras. Vez ou outra ia para o xilindró e depois soltavam.