SE ENTRAR, NÃO COMA
Quem aqui já entrou num restaurante e pediu para visitar a cozinha antes de fazer sua refeição? É bom lembrar que o cliente, como consumidor, tem esse direito, mas ninguém exerce essa prerrogativa
– Aquele patrão da peste só faz nos explorar como escravo. Trabalho dez horas por dia numa cozinha apertada e suja, num calor horrível de pingar o suor. Faltam panelas, frigideiras e o fogão é acanhado e velho. Só tenho folga para almoçar.
O desabafo é da cozinheira Luzia com sua amiga Maria das Dores numa fila de ponto de ônibus que passou superlotado e nem parou. Elas moram no mesmo bairro, numa periferia e tem muitas coisas em comum, como trabalhar duro para criar os filhos que seus maridos são imprestáveis.
– Sei como é amiga, fui babá de um menino “capeta”, cheio dos gostos de uns grã-finos e comi o pão que o diabo amassou nas mãos deles. Agora estou sendo cuidadora de um idoso que sofre numa cadeira de rodas. Os filhos são ingratos e nem ligam para ele – disse “Das Dores”.
– Olha o nosso “buzú”, depois de uma hora de espera e lotado. Vamos penduradas nesse mesmo, no esfrega-esfrega dos tarados fazendo “terra” em nosso corpo, com caras de insolentes – falou Luzia para sua amiga.
Um ônibus que carrega gente é um laboratório de queixas e de pessoas esquisitas, uns até alegres e falantes que levam a vida numa boa, outros calados, roendo seus sofrimentos e mágoas. Os jovens modernos de hoje fingem que dormem e não dão mais assentos para os mais idosos.
É isso aí, mas nosso assunto mesmo é sobre as cozinhas de restaurantes e hotéis populares a médios, se bem que os mais sofisticados apresentam os mesmos problemas. Só têm fachadas de limpos. As cozinhas de hotéis ainda são piores e o trabalho é estafante.
A maioria deles é aquela sujeira e os cozinheiros (ras), lavadores de pratos (os plongeurs em francês), garçons e os que exercem outras funções auxiliares trabalham diariamente sobre pressão e vivem estressados para ganhar um salário mínimo ou pouco mais que isso, muitos até sem carteira assinada.
– Minha amiga, aquilo ali é um inferno e acontecem coisas horríveis, especialmente em termos de higiene. A geladeira é uma velha enferrujada, a fiação elétrica é solta e antiga, usam até alimentos enlatados vencidos. Na parte de verduras, o dono, um careca gordo, pega os legumes numa xepa de feira livre – ia conversando Luzia com sua amiga de lutas para passar o tempo.
– O lavador de pratos é um bruto cavalo que xinga o dia todo e briga com todo mundo. Só sabe reclamar da vida. Às vezes chega bêbado e entorna o caldo. Fala palavrões e um dia até me chamou de gorda vagabunda.
Certa vez enxaguou o pano de prato numa sopa, para se vingar do patrão. Tem vez que deixa as louças gordurentas para lavar no outro dia. A gente convive com ratos e baratas. Ele consegue roubar comida dentro das calças e assim passa na revista.
“Das Dores” ia ouvindo tudo entre uma “arrumação de freio” e outra do motorista, também esgotado de tanto trabalhar e ouvir desaforos de passageiros, sem contar os assaltos sofridos com armas em sua cabeça.
Ela também contava suas lamentações e até se compadecia do sofrimento do velho, esquecido pelos filhos que só pensam em ganhar dinheiro, na ganância do ter e nem pensam na velhice do amanhã.
– Alguns aparecem lá no final de semana, mas demoram pouco tempo. O mundo hoje está virado, minha amiga! Antes os filhos zelavam de seus pais até o final da vida. Atualmente tratam como molambos. Coisa é quando têm bens para herdar, aí as brigas viram cenários de inferno e ocorre até mortes.
A grande maioria desses restaurantes da capital e cidades médias a grandes, como Vitória da Conquista, apresentam as mesmas cenas de horror, e a coisa engrossa em épocas de temporadas turísticas e festas de carnaval, caso de Salvador. O trabalhador (ora) é explorado, com jornadas estressantes e desumanas. Os clientes comem gato por lebre.
– Estou nessa amiga há mais de um ano porque não tem outro jeito. Sinto dores pelo corpo todo, falta de ar e pulmão poluído. Muitas vezes nem tenho vontade de comer quando vejo aquele piso nojento cheio de restos de alimentos – se queixava Luzia, enquanto chegava em casa morta de cansada e ainda com um monte de coisas para arrumar.
Alguém deve estar indagando sobre a fiscalização sanitária e trabalhista. Esquece isso no Brasil porque tudo não passa de um arremedo, do faz de conta que o sistema funciona. São poucos os fiscais e ainda existem muitos que aceitam aquele suborno e fazem vistas grossas.
Que se lasquem o trabalhador e o consumidor! Fim de papo, meu amigo e amiga. O restante da conversa é só você fazer suas deduções e tirar suas conclusões. O sistema é bruto e cruel. Quase ninguém se importa mesmo. Ninguém se interessa em ver como funciona uma cozinha. O negócio é comer e tomar umas, comemorar! O resto é papo furado.