:: 5/dez/2024 . 23:55
“SAI DO SERENO MININO”
(Chico Ribeiro Neto)
Sete da noite, mamãe Cleonice me chamava: “Sai do sereno, Chiquinho, senão você adoece!”
Eu ficava pensando que diabo era esse sereno, um negócio que a gente nem vê e faz mal. A chuva, pelo menos, a gente vê.
Os barquinhos de papel, feitos com folhas de caderno, desciam a enxurrada. Tinha vontade de escrever o nome nos barquinhos: “Chico I”, depois viriam “Chico II”, “Chico III”, até o oitavo. E essa frota desceria o rio de Contas, passaria em Barra do Rocha, Ubatã, Ubaitaba, Aurelino Leal e Itacaré, onde desfilaria no Oceano Atlântico.
Falar em escrever, já escrevi um bilhete e o coloquei numa garrafa que joguei no mar do Unhão. Era adolescente, já em Salvador, não lembro mais o que escrevi. Se fosse hoje, eu escreveria: “Um náufrago em terra firme”.
De volta a Ipiaú. Depois da chuva (ou antes, não lembro) a gente ia à noite pra ver as mariposas em volta da lâmpada dos postes. Aposta para ver quem conseguia contar quantas mariposas estavam a voltear.
Tem coisa mais gostosa do que um banho de bica? Era uma festa para a meninada, aquele toró caindo na cabeça da gente. Na hora de dormir, sentir aquele leve chuvisco que caía do telhado e vinha borrifar a cabeça, e se cobrir com uma coberta Dorme Bem, que espinhava e esquentava.
Usei galochas para ir à escola primária. Galocha era um calçado todo de borracha que se calçava sobre o sapato de couro para não molhá-lo em dia
de chuva. Não sei por que se chama um cara muito chato de “chato de galocha”. Talvez seja porque era chato calçar a galocha: a borracha embolava na ponta e no calcanhar.
As tanajuras apareciam no período de chuva. A gente enfiava um palito na bunda da tanajura só para ouvi-la vibrar as asas. Ela acabava morrendo. Menino tem arte do capeta. “Cai, cai, tanajura, na panela da gordura”, todos cantavam. A bunda de tanajura frita ou na farofa é muito apreciada no Nordeste. “A tanajura é rica em proteínas e minerais e tem um perfil de ácidos graxos semelhante ao da carne do boi e do porco”, dizem os especialistas.
Vovô Chico fez um tanque de cimento que saía do chão, na área de serviço da casa (entre a cozinha e o quintal), para aparar água de chuva, pois ainda não havia água encanada. Era a chamada água de gasto, para limpeza e banheiros. A de beber era comprada dos aguadeiros, homens que traziam os carotes de água nos burros e passavam de casa em casa descarregando-os nos porrões de barro. Duas bicas conduziam a água da chuva para o tanque que era fechado com madeira pra não cair bicho dentro. Eu gostava de subir num banquinho pra brincar com a água do tanque.
Na enchente descia de tudo pelo rio de Contas: bois, galinhas, porcos, melancias, abóboras, pedaços de cerca, árvores, um cenário de destruição.
Vinte e poucos anos. Namorar de noite, debaixo de chuva, na praia de Amoreira. Outra bela lembrança.
Começa a chover no Chame-Chame, em Salvador, tô sem guarda-chuva e começo a correr. “Vai devagar, meu tio, que o senhor pode escorregar. E velho não pode cair, não é?”
(Veja crônicas anteriores em leiamais.com.br)
NOSSO SÍMBOLO NORDESTINO
Na chamada “Suíça Baiana” (só pode ser um deboche) que está no sertão nordestino em pleno Planalto da Conquista, o nosso imponente mandacaru, símbolo resistente da nossa região, contrasta com a paisagem da cidade entre árvores exuberantes. Faça frio ou faça calor, lá está ele, todo esbelto. Está plantado em minha rua e todas as vezes que passo por ele, orgulho da minha terra catingueira onde nasci, faço questão de saudá-lo e pedir a sua benção para que me torne mais forte. Sigo em frente imaginando que tem gente em Vitória da Conquista que não se considera nordestino e se porta como se fosse um sulista, mineiro ou europeu, ao ponto de colocar o nome de Caminho de Santiago da Serra do Periperi a uma trilha que nem chega a cortar a serra. Mas, deixa isso para lá. Cada um com seu imaginário de grandeza. Quero mesmo é homenagear meu predileto mandacaru a quem tantos cliques disparei com minha máquina fotográfica como repórter redacional ao lado do meu companheiro fotógrafo José Silva, o “Zé das Lentes” por este sudeste baiano a fora, fazendo nossas coberturas jornalísticas. Dizem que ele não dá sombra. Não é verdade. Com sua coragem de verde fincado na árida terra no meio da sequidão, ele sombreia nossos sertanejos de fé e esperança. Dura pouco tempo, mas sua flor é única e bonita de se ver. Se você for cantar o Nordeste em verso e poesia, ele tem que ser citado, senão a canção fica sem sentido e não sai bem na fita a melodia.
O VERBO E AS PALAVRAS
De autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
No princípio era o verbo,
Que se tornou carne,
Depois um fogo que arde,
E milhões de anos no gelo,
Apareceram as larvas,
Nasceram as palavras,
Do vate veio a arte,
No vento soprando o tempo,
Cada qual com sua parte.
O verbo e as palavras,
Benditas e malditas,
Faladas e escritas,
Como facas afiadas,
Com suas forças viscerais,
Que conduzem as boiadas,
Pelas estradas dos mortais.
O verbo e as palavras,
Com seus laços e travas,
Estão nas ondas do mar,
Do lavrador ao doutor,
Na paz e no amor,
No ódio intolerante,
Dessa gente inconsequente,
Podem ferir e magoar,
Fazer rir e chorar.
O verbo e as palavras,
De réplicas e tréplicas,
Críticas e elogios,
Sinceras e mentirosas,
Sempre com roupas novas,
Desde os fios dos bigodes,
Nas rodas de pagodes,
Aos documentos como provas,
Entra a inteligência artificial,
No uso do bem e do mal.
O verbo e as palavras,
Estão nos rasgos do orador,
Na garganta do camelô,
Nos deuses dos imortais,
Na lógica dos intelectuais,
Na expressão de liberdade,
Na luta pela verdade,
Na voz do opressor,
Na prece ao Senhor,
Na tristeza e na alegria,
Na canção da poesia.
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