(EM HOMENAGEM A TODOS OS MESTRES)

Este texto foi publicado no livro “Andanças”, de autoria do jornalista, escritor e poeta Jeremias Macário. A obra pode ser encontrada na livraria Nobel, na Banca Central, ou diretamente através do autor pelo e-mail macariojeremias@yahoo.com.br e pelo tel 77 98818-2902. 

O homem sem instrução é um homem iludido. Em minha vida nunca imaginei que uma profissão tão linda e nobre fosse se transformar em medo, angústia e pesadelo. O orvalho da manhã está cada vez mais escasso, e a relva e a grama da minha casa estão secas. O prazer de ensinar e levar conhecimento aos rebentos virou uma obrigação. Sem o riso de antes, muitos estão partindo para outras atividades enfadonhas e chatas, seguindo a lei da sobrevivência a qualquer custo.

Aprendi as primeiras letras e a entoar a tabuada para fazer umas continhas de somar, diminuir e multiplicar com a real professora leiga dona Nina, não aquela personagem título de livros, de peças teatrais, crônicas e contos como símbolo da nossa imaginação para identificar a profissão. Como tudo que acontece pela primeira vez na vida, nunca me esqueci daquela frágil, terna e carente mulher. Mas, o que mais me marcou foi a sua extrema pobreza e como arranjava forças para ensinar.

Era meado dos anos 50 do século passado quando tive minha primeira professora Nina. A infância na roça da fazenda Queimadinha, isolada de tudo, não me dava nenhuma noção do porquê tinha que caminhar com minha irmã dois, três quilômetros dentro de um matagal todos os dias para encontrar com a professora, para ler soletrados os textos de uns livros e ouvir o clamor, choros e brigas de uma família de mais de dez pessoas por causa de um prato de comida nas horas do almoço.

A professora Nina morava como agregada de um vasto latifundiário que mais lembrava os condes e duques franceses da pré-revolução. A fazenda de quilômetros e mais quilômetros de capim e gado se situava num território pertencente ao município de Mundo-Novo e depois Piritiba e Tapiramutá. Como meeira, ela dividia com o patrão usurário e opressor os poucos pés de cafés que tinha no quintal da velha casa. O quadro não mudou. O capitalismo se alimenta de carne humana.

Todos definhavam de fome. Um rapaz anêmico vivia chorando pelos cantos da casa e o velho pai era um alcóolatra à beira da morte que pegava vísceras de bois em matadouros da vizinhança para cozinhá-las numa aguada panela de feijão. Meu pai, também pobre, pagava seus préstimos de professora com um pouco de dinheiro e farinha da terra donde colhia a mandioca do roçado. Eram tempos de muita dureza e o homem trabalhava como escravo, sem direitos a nada. Não mudou muito. A fome batia quase todos os dias na nossa porta e nos olhava com aquela careta de monstro.

O velho e o rapaz morreram e, como já viviam na miséria, nem foram notados. Eram lixos deteriorados ocupando o espaço. Como observou Shakespeare, “Quando morre um mendigo nenhum cometa é visto, mas os céus cospem fogo quando morre um príncipe”.

A professora Nina e o restante dos seus filhos pegaram um pau-de-arara e tomaram o rumo de São Paulo. Meu pai vendeu a terrinha e fomos para outro local onde pelo menos tinha um tanque d´água. Passei anos longe das minhas primeiras letras e só depois fiz, com muito sacrifício, o primário em Piritiba. Mais algum tempo parado e somente em 1962 ingressei no Seminário Nossa Senhora do Bom Conselho, em Amargosa. Bons tempos de estudos e aprendizagem, com professores de qualidade. Ensino puxado!

Passaram-se quase 65 anos e a educação teve suas reviravoltas de altas e baixas, mais que baixas, para cair numa vala lamentável de decadência e menosprezo, numa cruzada de greves, paralizações, ocupações, protestos, desespero, revolta, lamentos e violência nas salas de aulas onde existem mais discórdias que harmonias.

Até o final dos anos 70 e início dos 80, a educação pública era uma referência de qualidade e conteúdo. O professor era o verdadeiro mestre respeitado na sala e os alunos o reverenciavam como um pai, somente abaixo do Eterno. De lá pra cá foi entrando em degradação de promiscuidade total, diferente da missão primordial de transmitir sabedoria e conhecimento.

Aquela imagem da professora Nina e sua família continua viva em mim através de cenas reportadas nos dias atuais de professores comendo bolachas num reservado escondido de uma sala para matar a fome e outros vendendo seus livros de literatura nas ruas para sobreviver, sem contar as agressões sofridas no exercício de suas atividades.

Uma professora chora quando lembra que um dia um aluno colocou um revólver em sua cabeça e lhe intimou que desse uma nota máxima em sua prova para passar de ano. Perdeu, professora! Para não morrer, teve de ceder, mas, traumatizada, nunca mais retornou à sala de aula. Para sobreviver foi ser doceira. Igual a ela, tantos outros se afastaram do ministério de ensinar. De amigo e conselheiro, o professor é visto hoje pelos seus estudantes como um inimigo que merece ser castigado porque escolheu ensinar e formar crianças e adolescentes rebeldes de um lar, cujos pais se ausentaram de suas obrigações, valorizando mais o capital que o humano.

Pelo nível a que chegamos, de baixos índices de aproveitamento escolar que envergonham a nação, com imagem tão negativa lá fora, a pátria como mãe biológica ou adotiva, carece parar com todas suas obras, pontes, estradas, viadutos e projetos de portos e aeroportos, para só cuidar da educação. Esta filha desamparada de mãe desnaturada caiu em desgraça na prostituição das ruas e das drogas.

A figura de um professor qualificado e motivado é o fator mais importante para o sucesso do aluno na escola e na vida, conforme estudos realizados em vários países. No Brasil, quem tira maiores notas nas escolas prefere fazer outros cursos universitários ao invés de pedagogia, isto porque a profissão oferece pouca atratividade, devido à baixa remuneração e más condições de trabalho. O próprio Ministério da Educação constatou que o curso de pedagogia tem sido o destino dos alunos com as piores notas nos exames do ensino médio.

Chegamos ao ponto crucial de que a educação não é mais apenas uma questão de prioridade, mas de salvação de vidas. Milhões são vitimados antes do tempo no Brasil por falta de educação. A professora Nina foi a primeira a me dar régua e compasso para escrever este texto. Outros mestres vieram depois fazendo o demorado processo de lapidação