Do blog Refletor Tal-Televisión Latina  http://refletor.tal.tv/ponto-de-vista/orlando-senna-o-fator-mariel

O FATOR MARIEL

O acontecimento mais importante de 2014, no âmbito latino-americano, foi o reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e EUA depois de 53 anos de ruptura e de um bloqueio econômico avassalador contra a ilha caribenha imposto pela superpotência. Um fato importante também no âmbito global, pelos novos cenários geopolíticos e geoeconômicos que isso vai suscitar. Entre os dois países significa, também, a superação da Crise dos Mísseis de 1962. A instalação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, apontados para os EUA, fez a humanidade tremer, foi o ápice da Guerra Fria. Na verdade, a tensão entre os dois existe desde 1898, quando os EUA ocuparam Cuba por primeira vez, após derrotar a Espanha na disputa pela ilha.

Os cubanos receberam a notícia, no dia 17 de dezembro, durante sua maior festa religiosa, a de São Lázaro, padroeiro deles. Na cultura afro-cristã da ilha coexistem a santería, com referência central na religião iorubá e uma variedade de cultos afro-cubanos, e as religiões cristãs (como no Brasil). Nessa coexistência, São Lázaro é sincretizado com Babalu, ou Omolu, o orixá mais venerado por lá (é o deus da “doença e da cura”, a ponte entre os mundos material e imaterial, mortal e imortal). Foi durante essa festa de todos, com hinos nas igrejas e orikis nos terreiros, que os cubanos souberam que o fim de uma era estava começando a acontecer. A primeira mensagem que recebi a respeito, de uma amiga cubana, dizia o que muita gente estava gritando nessas celebrações religiosas: “es un regalo de Babalu” (é um presente de Omolu).

Obama vinha negociando a aproximação com Raúl Castro desde 2012 e enfrentava duas fortes pressões: a da poderosa comunidade cubana anticastrista de Miami, que há meio século exige a derrubada dos Castro e, a favor da aproximação, a dos empresários estadunidenses interessados nos bons negócios que a ilha proporciona, principalmente pela situação geográfica, e que estão sendo feitos por empresas europeias e brasileiras. A pressão empresarial se fez valer, somando forças com os muitos países que defendem a convivência pacífica entre Washington e Havana. Enquanto essas discussões esquentavam, Cuba fazia sua parte: a implantação de uma Zona Franca de grande porte, com saídas para Golfo do México e Atlântico Norte por um lado, Atlântico Sul pelo outro e a 7 mil milhas náuticas do Canal do Panamá, ou seja, do Pacífico.

Zona Franca, para quem não se lembra, é uma área com incentivos fiscais abundantes visando acelerar o desenvolvimento econômico de uma determinada região. Existem em 17 países, incluindo o Brasil com Manaus e o Chile com Iquique. A de Cuba se chama Zona Especial de Desarrollo del Mariel, ZEDM, na Província de Artemisa, recém criada para abrigá-la. Um triângulo com uma ponta no novo e impressionante porto de Mariel, outra no aeroporto de Havana e a terceira no chamado Aeroporto Russo, antiga base aérea da União Soviética, com reconstrução a cargo do governo de Vladimir Putin. A Rússia é um dos 40 países que já manifestaram disposição em investir na Zona de Mariel e o novo aeroporto estará vinculado à pequena cidade de San Antonio de los Baños, onde está a conhecida Escola de Cinema e TV de Cuba, uma das primeiras organizações internacionais a serem instaladas no país.

Desde que o projeto da ZEDM foi divulgado, com grandes obras em andamento (porto, aeroportos, rodovias, ferrovias), chamou a atenção do governo e do empresariado da Flórida, distante 150 quilômetros de Cuba. O comércio e a indústria da Flórida, e por extensão dos EUA, não admitiam ficar de fora da ZEDM, considerada a Zona Franca com melhor localização na parte ocidental do mundo. A pressão sobre Obama chegou a seu ponto máximo, apressando a decisão pela reconciliação. O próximo passo é o efetivo fim do embargo econômico, que não depende de Obama e sim do Congresso dos EUA. Pode ser difícil, já que a oposição é maioria, mas não tanto a ponto de complicar o programa Obama-Castro, que conta com o respaldo dos interesses financeiros estadunidenses.

Neste momento, tanto nos gabinetes oficiais como nas casas e ruas de Cuba, autoridades e cidadãos discutem e tentam fazer prognósticos sobre as mudanças que devem ocorrer a partir da nova realidade, dessa pequena China que começa a florescer no Caribe. Cuba não pretende mudar seu regime político, o que também não é empecilho para a aproximação com os EUA, que há muito deixou de levar em conta aspectos ideológicos em transações comerciais. As reformas postas em prática por Raúl Castro prosseguirão e têm a ver com a “ampliação da circulação de ideias e mercadorias”, com a limitação em cinco anos, sem reeleição, dos mandatos dos presidentes e a reestruturação da Assembléia do Poder Popular, órgão com 612 deputados responsável pela eleição indireta do Presidente.

Ou seja, muita coisa vai acontecer em Cuba nos próximos anos e meu desejo é que a cintilante cultura da ilha cultinue alegrando seus cidadãos e encantando o mundo. Como diz Silvio Rodríguez em uma de suas músicas: “te doy una canción como un disparo, como un libro, una palabra, una guerrilla, como doy el amor”. 

Por Orlando Senna

Comentário:

Orlando, como nos artigos anteriores reeditando neste Blog apresenta dados e analises pertinentes, acurados. Mas, na expressão “… nova realidade, dessa pequena China que começa a florescer no Caribe”. Parece-nos referir à “democracia Vertical”, isto é, de cima pra baixo e de baixo pra cima, definida por John & Doris Naisbitt (2011) “CHINA MEGATENDÊNCIAS: os oito pilares de uma nova sociedade”. Porem, levando-se em consideração conceitos de democracia desde Aristóteles aos dias atuais que, passa da “democracia direta” a “democracia representativa” modelos liberal e neoliberal, como resposta a tradicional Monarquia européia e, levando em consideração as peculiaridades culturais da China e de Cuba, os dados objetivos da economia de mercado como tamanho dos territórios e quantidades das suas populações, ser mais adequado tratar estes modelos políticos como “Monarquias de esquerda”, para dar conta da continuidade de indivíduos no poder e, sucessão por parentes, em processos indiretos de escolha.

Orlando Senna nasceu em Afrânio Peixoto, município de Lençóis Bahia. Jornalista, roteirista, escritor e cineasta, premiado nos festivais de Cannes, Figueira da Foz, Taormina, Pésaro, Havana, Porto Rico, Brasilia, Rio Cine. Entre seus filmes mais conhecidos estão Diamante Bruto e o clássico do cinema brasileiro, Iracema. Foi diretor da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños e do Instituto Dragão do Mar, Secretário Nacional do Audiovisual (2003/2007) e Diretor Geral da Empresa Brasil de Comunicação – TV Brasil (2007/2008). Atualmente e presidente da TAL – Televisão América Latina e membro do Conselho Superior da Fundacion del Nuevo Cine Latinoamericano.

Itamar Pereira de Aguiar nasceu em Iraquara – Bahia; concluiu o Ginásio e Escola Normal em Lençóis, onde foi Diretor de Colégio do 1º e 2º graus (1974/1979); graduado em Filosofia, pela UFBA em 1979; Mestre em 1999 e Doutor em Ciências Sociais – Antropologia – 2007, pela PUC/SP; Pós doutorando em Ciências Sociais – Antropologia – pela UNESP campus de Marília – SP. Professor Titula da Universidade Estadual do Sudoeste do Estado da Bahia – UESB; elaborou com outros colegas os projetos e liderou o processo de criação dos cursos de Licenciatura em Filosofia, Cinema e Audiovisual/UESB.