Este texto, que se encontra no livro “ANDANÇAS”, de autoria do jornalista, escritor e poeta Jeremias Macário, é uma homenagem ao Dia do Nordestino, na figura do legítimo sertanejo. É uma descrição sobre seu perfil, costumes, sua vida diária na labuta da roça, suas crenças e sua cultura popular.

O meu sertão catingueiro, com espécies vegetais e animais exclusivos, é bem diferente do cerrado e da mata. Ora está retorcido, cinzento, desértico e árido, mas de repente fica florido e cheio de vida, de cores e encantos quando batem as chuvas. Aí arrebenta o aroma da terra molhada para o plantio.

O olhar dessa gente sertaneja é uma mistura de lealdade humilhada, cismado, doído, castigado, sofrido, resistente, bruto e pacato. Pode ser exótico matreiro tabaréu, mas não é o mesmo olhar do mateiro do sul ou de outras plagas do litoral. Nesse sertão, toda final de tarde ouço o canto cadenciado do nambu, como igual não existe em lugar nenhum.

Para o sertanejo, a simplicidade é a sua filosofia; a natureza sua arquitetura divina onde de tudo brota poesia; o pedaço de terra sua geografia; do barro faz-se a escultura; da seca sua prova de luta; e a chuva é o seu show da vida. A caatinga é mais fera e pantera que o deserto. Um tem caminho para o interior e o outro é tortura. A caatinga tem o cordel e seu boi encantado.

O sertão da caatinga, das palmas e dos mandacarus, é carregado de mistérios, contos e lendas (algumas ainda vivas) dos coronéis, dos pistoleiros, jagunços e vaqueiros bravos. Nesse descambado sem fim de espinhos de unhas-de-gato, tocas e malocas, rasgando serras e morros, o temido Lampião e sua tropa de coriscos conseguiam sair de seus labirintos e enganar as volantes.

Os encourados cavaleiros lendários são os verdadeiros guerreiros legionários desse agreste inóspito, esquecido e supersticioso cheio de emboscadas e armadilhas. Eles partem para suas cruzadas sem nenhuma benção do vigário-mor. São vaqueiros guardiões das tradições seculares de perseguir a rês até conduzi-la ao rebanho ou ao curral. A bravura não teme a morte. É uma questão de honra.

Em homenagem a esse chão, exclusivo do Brasil, e o mais degradado de todos, foi instituído, por decreto presidencial, o 28 de abril como o “Dia Nacional da Caatinga”, no intuito de preservar seu bioma, mas não é isso que acontece. Seu folclore e suas comidas, feitas do milho e da mandioca, têm características próprias, mas quando a seca bate à porta, o êxodo rouba sua magia e perde-se o encanto.

É assim a luta do sertão catingueiro das procissões, dos paus-de-arara rumo a São Paulo, dos carros-pipa eleitoreiros, das cisternas, das barragens, aguadas, das cacimbas e poços salobros erguidos para juntar um pouco de água, para enfrentar as estiagens. Os olhos marejam de dor e as lágrimas ficam presas nas gargantas. As crianças choram de fome e os animais tombam ao chão, virando carcaças que se tornam postais da crueldade de um cenário desolador.

Corta o coração ver o sertanejo lacrimar quando sua safra se perde na sequidão. Das tragédias da natureza é a que menos comove e sensibiliza as campanhas humanitárias de solidariedade e de socorro às suas vítimas. As enchentes e os desmoronamentos de terras no sul e sudeste do país ganham mais espaço na mídia do que esta devastação de morte mais penada e lenta.

É o sertão do Assum Preto e da Asa Branca nas cantigas de lamento da terra do Luiz Gonzaga “Rei do Baião”, e da “Triste Partida”, do poeta maior Patativa do Assaré, que continuam batendo suas eternas asas pelo mundo afora. É o sertão da sanfona “sankafa” chamando para o arrasta-pé do forró. É o sertão sertanejo dos cabras valentes do “Padim Ciço” e de Antônio Conselheiro. É o sertão da Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, dos guerreiros jagunços, de Euclides da Cunha, de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, do “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna e do “O 13”, de Raquel de Queiroz em suas histórias engraçadas e tristes. È o sertão bodeiro da “Casa dos Carneiros” na cantoria de Elomar. Foi cenário escaldante de “deus e o diabo na terra do sol” e o “dragão da maldade contra o santo guerreiro”, de Glauber Rocha.

Um dia, lá pela grande estiagem de 1876 a 1879, um imperador chamado D. Pedro II disse que venderia todas as jóias da coroa se fosse o bastante para acabar com a seca e o sofrimento do sertanejo. Veio a de 1953/54 e há mais de 120 anos o meu sertão arde árido sem as jóias e as riquezas do reino.

Quando menino ouvia dos meus pais os causos, histórias e lendas de horror das secas desgraçadas desse meu sertão. Falavam do terror das volantes e de Lampião matando com suas carabinas e sangrando gente na ponta dos punhais. A Coluna Prestes também cortou o meu sertão com seu Laço Húngaro nos cavalos das patas de fogo da justiça.

É o sertão do cangaço da canga, do jugo, do valentão cangaceiro e dos trapos. É o sertão de Câmara Cascudo e da vegetação raquítica, rasteira e espinhenta. É o sertão cangacista que nasce dos conflitos familiares, das brigas pela posse da terra e dos casos de amores.

Os tempos se passaram e o cenário pouco mudou. As plantações morrem nas paisagens cinzentas; as pessoas continuam dependentes das esmolas; e os rebanhos são tragados pela fome e pela sede. As promessas são as mesmas saídas das línguas afiadas pelo diabo. O sertão não muda não. Ainda é o sertão da reza, da fé e do “Deus Dará”.

No meu sertão onde o sol é quente de torrar nas veredas e encruzilhadas do destino, a construção de uma barragem dura até 50 anos, desde a idéia à sua conclusão. Muitos dos reservatórios prometidos nem foram feitos porque os rios viraram riachos e os córregos definharam nas baixadas estorricadas. Até seus rastros foram apagados das memórias dessa gente que também perde suas culturas populares.

Em meio à ânsia de amealhar votos nem perenizaram nossos rios com as águas do nosso maior irmão “São Francisco” que, com suas lendas e histórias de caboclos, pescadores e negos d´água, corta extensa parte do nosso chão. Em sua margem degradada, o frei Capio fez greve de fome contra sua obra de transposição. Bem que o santo estava disposto em repartir o pão, mas sem tanto maltrato e ganância.

Muitos catingueiros não resistem às atrocidades e ao maldito sistema capitalista coronelista. Não aguentando, partem para outras terras onde não se ouve mais o choro da sanfona, a não ser do arranhado e barulhento som eletrônico movido aos berros de um cantor alienado. Que saudades do meu sertão da fartura do feijão, do milho cozido, do cuscuz, da canjica, do mugunzá e dos beijus quentes de tapioca da mandioca! Saudades das cantorias de adjutório! Saudades da sua sabedoria popular!

A saga da sua história é cantada em versos e prosas pelos poetas do desespero e do lamento no grito de protesto, da alegria, da agonia e da apologia à sua terra. Tudo está escrito e registrado nos cordéis de seus escritores, nas esculturas e nos quadros de seus artistas pintores. Tudo está riscado nos papéis dos historiadores e nas linguagens orais dos improvisadores e repentistas.

O meu sertão não é um bioma nacional exuberante e gigante como a Amazônia, a Mata Atlântica, a Serra Geral, o Pantanal e a Zona Costeira. O atraso e a pobreza se confundem com o luxo da casa grande e o poeirão das acanhadas armações de taipas. Outras mais parecem assombrações sem viventes.

A caatinga do meu sertão baiano ocupa uma área de 895 quilômetros quadrados (845 mil nacional com menos de 2% de sua área preservada em parques de proteção) ainda segregada entre Casa Grande e a Senzala. Mesmo assim, é um bioma rico em diversidade animal e vegetal (932 espécies foram registradas).

Nessa queimada ardente em brasas, o forte explora o fraco. É o sertão arrasado pelos séculos da extração impiedosa dos colonizadores que sugaram todo ventre da terra. É o sertão chicoteado pelos opressores oligárquicos que se mudaram para as cidades grandes, mas não largaram seus latifúndios.

Esse bioma, que abrange mais da metade dos territórios dos estados do Piauí, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Sergipe, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas e o norte de Minas Gerais, é o mais especial e o mais subjugado e desprezado de todo o brasileiro.

Mais de 60% de todo território baiano estão inseridos no semiárido (40% do brasileiro), o equivalente a 265 dos 417 municípios (quase sete milhões da população). São os mais esmolados e imolados.

É o sertão das espécies em extinção, como a Arara-Azul, o Sofrer, o Pássaro Preto, a Rolinha, a Juriti, o Tatu-Bola, o Veado, a Barriguda, o Juazeiro, a Aroeira, o Pau-Ferro, o Mulugu, a Baraúna, a Imburana e tantas outras.  Na labuta da roça quando menino encantava com a beleza do Sofrer e o canto do Pássaro Preto, que “furaro os óios dele pra cantá mió”. Que judiação! Mas é a sobrevivência.

O Tatu e o Veado sempre estiveram na mira dos caçadores para reforçar a escassa cozinha dos sertanejos. Das impolutas árvores, cartões postais da vegetação, algumas raras são altezas, mas a maioria foi sacrificada a golpes de machado, para ser carvão das siderúrgicas. As frondosas sempre foram xodós das aves para cantoralar e aninhar em seus galhos. Seus nomes fogem da memória dos jovens.

Não dá para esquecer do velho umbuzeiro do fruto saboroso, que por meses fica solitário nas entranhas da caatinga, mas no verão é o mais visitado pelos sertanejos! É o engana a fome. Até suas raízes são arrancadas e cozidas quando aperta o cerco da seca. Depois, nem se fala mais nele para agradecer. Bom dia senhor umbuzeiro!

A ação predadora vem dos tempos coloniais da cultura do extermínio que alterou mais de 70% de sua área, restando algumas raras espécies. Desmataram, plantaram, criaram gado e depois se foram, deixando a terra exaurida. A monocultura foi a maior praga.

É o ecossistema menos preservado do planeta, só lembrado pelas manchetes da imprensa nos tempos cruéis da seca. As cenas de destruição viram “belas” páginas fotográficas nos jornais e deslumbrantes imagens sofridas nas emissoras de televisão. Eles adoram uma bagaceira que chame a atenção. Focam as lágrimas e arrancam os corações. São vampiros da emoção e do sentimentalismo. Quanto pior, melhor!

Abundante em forrageiras e em espaços para a introdução de experiências de criatórios em benefício da população, os senhores do poder prometem oferecer meios sustentáveis ao sertanejo. Só prometem, e mais nada.

O meu sertão só é mesmo lembrado nas épocas de eleições, ou quando a seca racha o chão na paisagem cinzenta das carcaças dos animais. Os rostos enrugados pelo rigor do sol pedem clemência quando tudo vira pó. Com os olhos para o alto e mãos em forma de reza, o sertanejo pede misericórdia a Deus e se humilha à boa vontade dos homens da terra.

De tanto sofrer, a cor e as rachaduras de suas peles se assemelham às tonalidades da sequidão desse chão. Quando a cobra, o calango e a lagartixa não se atrevem mais a se arrastar pelo chão, o poder manda rodar os carros-pipa pela terra poeirenta do calor infernal. O sertanejo, contrito e fervoroso, faz sua prece aos santos e carrega pedras em procissão. O luar do céu limpo é uma desesperança.

Ainda é o sertão das esmolas, das aguadas, cisternas e dos poços. É este o meu sertão caveira que se perfuma todo e se enche em flores quando no estrondo dos trovões e nos raios dos relâmpagos as nuvens escuras se contorcem, retorcem, espremem e derramam suas águas como cachoeiras encharcando a terra e os rios. É este também o sertão da alegria e da felicidade nos ventos bravios das tempestades que enchem de fé e esperança os bornás dos sertanejos.