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:: 26/abr/2025 . 0:59

“NA PIOR EM PARIS E LONDRES”

Quando comecei a ler o livro “Na Pior em Paris e Londres”, de George Orwell, bateram em mim as lembranças dos meus tempos em Salvador nos anos 1970/71 de dias difíceis para sobreviver, sem um teto onde morar, sem contar que a fome consumia meu cérebro.

Havia passado no vestibular para Jornalismo e, para segurar a barra pesada, vivia de uns bicos aqui e acolá para comprar um pão e uma garrafinha de mel da marca Kall, se não me engano, feito de milho. Eram minhas refeições diárias, isto quando conseguia uns cruzeiros. Meu desespero não foi maior, com consequências imprevisíveis, porque um amigo me ajudou naquilo que pode.

Bem, não quero retratar esse meu passado ingrato porque quem já atravessou por ele fica com trauma e medo de que um dia tudo venha se repetir. A vantagem é que você sai dele com mais forças e tudo faz para que não mais ocorra em sua vida. Você, no entanto, não tem mais certeza se suportaria encarar outra fase de pobreza e miséria.

Algumas coisas que o autor descreve aconteceram comigo, daí as tristes recordações. Certa vez meu pai enviou um dinheiro suado do seu trabalho para mim por um conhecido “amigo” e ele não me entregou a quantia com a desculpa que teria gastado por necessidade. Era um alento ao meu espírito. Nesse dia fiquei ainda mais arrasado e aniquilado.

O autor mostra o lado miserável de Paris lá pelo final da I Guerra Mundial anos 1917/18 e inicia pela Rua Du Coq d´Or, um local de mendigos, ambulantes, brigas, crianças perseguindo cascas de laranjas nas pedras do calçamento e o fedor azedo das carroças de lixo.

Todas as casas eram hotéis lotados até os ladrilhos com inquilinos, principalmente italianos, poloneses e árabes. O seu se chamava Hôtel des Trois Moineaux. “Era um labirinto escuro (me fez lembrar de uma pensão no Politeama, em Salvador) de cinco andares, separado por divisórias de madeira em quarenta quartos. Eram sujos. A Madame F. era a patronne (patroa). Lembra “O Cortiço”, de Aloísio Azevedo.

No início ele faz uma descrição das pessoas e dos locais de pobreza. Sem emprego, seus francos foram se acabando e aí ele recorre ao amigo russo de nome Boris. Os dois unem forças no Bairro Coq d´Or, na mesma situação de miséria, e quase tudo que eles planejam não dava certo. O Boris havia lutado na Rússia durante a guerra civil e se refugiou em Paris. Chegou a ser garçom, mas caiu em desgraça.

-Você descobre o que é sentir fome. Com pão e margarina na barriga, você sai e olha as vitrines. Outra passagem que me toca quando andava esmo de barriga vazia pela Avenida Sete de Setembro e via e ouvia o tilintar dos talheres nos restaurantes cheios, com farta comida. Aquilo era como se fosse um soco no estômago.

– Você descobre o tédio que é inseparável da pobreza; os momentos em que você não tem nada para fazer e, estando subnutrido, não pode se interessar por nada.  Passa metade do dia deitado na cama, sentindo-se como o jeune squelette (jovem esqueleto) do poema de Baudelaire.

Em um dos trechos da sua obra, Orwell desabafa afirmando que, quando você está se aproximando da pobreza, você faz uma descoberta que supera algumas das outras. Descobre o tédio, as complicações mesquinhas e os primórdios da fome, mas também descobre o grande traço redentor da pobreza: O fato de ela aniquilar o futuro.

O Boris, seu amigo, amaldiçoa o judeu com quem vivia no quarto apertado. Ele confessava ao inglês que era uma tortura para um russo de família estar à mercê de um judeu. Eu que era capitão, aqui estou, comendo o pão de um judeu.

O russo, então contou a história de um velho judeu que lhe levou uma moça de dezessete anos ao seu acampamento de guerra e lhe cobrou cinquenta francos, só que a menina era sua própria filha. O judeu! Levou meus dois francos, o cachorro, o ladrão! Ele me roubou enquanto eu dormia – disse Boris, espumando de raiva.

A parte mais forte e que me chocou é quando o escritor fala sobre a fome. “A fome reduz a pessoa a uma condição totalmente covarde e sem cérebro, mais parecida com os efeitos colaterais da gripe do que qualquer outra coisa. É como se alguém tivesse se transformado em água-viva, ou como se todo seu sangue tivesse sido bombeado para fora e substituído por água morna. A inércia completa é minha principal lembrança da fome; isso, e ser obrigado a cuspir com muita frequência, e a saliva sendo curiosamente branca e floculante, como uma secreção espumosa de inseto. Não sei a razão, mas todo mundo que passou fome há vários dias percebeu isso”.





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