PAIXÃO DE CRISTO NO PALCO
(Chico Ribeiro Neto)
Quem já saiu de anjo numa procissão, quando criança, lembra a grande labuta. Aquela roupa branca de manga comprida, um calor retado, e as asas do anjo, ah!, as asas!, sempre entortava uma, e não apontava mais pro céu.
Ninguém queria ser Judas na encenação da Paixão de Cristo no auditório do colégio.
Foi num colégio do Ceará ou de Pernambuco, não me lembro. Mas recordo bem a história que me contaram.
Combinaram fazer uma representação da Paixão de Cristo no colégio estadual da cidade. Durante a encenação, o aluno que fazia o papel de Cristo, sentindo a cruz balançar, virou-se para o bom ladrão e disse entredentes: “Essa zorra vai cair! Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem”. O bom ladrão aconselhou: “Guenta mais um pouco, falta pouco pra acabar”.
“Cristo” aguentou (afinal, já tinha aguentado tanta coisa na vida!) até que sentiu a cruz oscilar com maior intensidade e disse apreensivo ao bom ladrão: “Essa zorra vai cair!” “Guenta mais um pouco”. Não deu outra. PAM! A cruz de “Cristo” caiu pra frente e atingiu até a segunda fila do auditório, ferindo alunos, pais e professores. Com o nariz ensanguentado, “Cristo”, com os pulsos amarrados à cruz, gritava: “Me tirem daqui! Me tirem daqui!”
XXX
Li recentemente “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, e reproduzo o belo parágrafo final do livro:
“Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava”.(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)