MACONHA, CINISMO E SOFRIMENTO

A humanidade sempre consumiu drogas alucinógenas e drogas terapêuticas, muitas delas servindo para ambos propósitos. Inicialmente como substâncias naturais e, com a evolução da ciência, também como substâncias sintéticas. Na atualidade, o ponto central das discussões sobre as drogas alucinógenas é sua descriminalização (o usuário não ser considerado um criminoso) ou a manutenção das leis proibitórias que começaram a entrar em vigor, em vários países, a partir do inicio do século passado, como resultado da Convenção Internacional do Ópio, realizada em Haia em 1912, que elegeu a repressão como solução. O fato de âmbito global mais recente sobre o tema é um documento da ONU, de março deste ano, afirmando que a luta mundial contra as drogas, baseada na repressão, fracassou e sugerindo a descriminalização do consumo.

O objetivo central desse combate é neutralizar a gigantesca ação do crime organizado em todo o planeta, as “corporações do tráfico” que se conformaram como um poder enorme, desumano, infernal, atuando em muitas regiões como governos paralelos. Seria cômico se não fosse trágico o fato de que o nefasto tráfico de drogas existe e cresce como consequência da decisão dos governos de proibir sua produção e distribuição legais, lá em 1912. O acontecimento mais importante referente à luta contra o narcotráfico neste ano de 2014 foi a descriminalização da maconha no Uruguai, uma lei considerada pelos especialistas no assunto como exemplar para os demais países e destinada a acabar com o tráfico no seu território.

Apesar das descriminalizações no Uruguai e em mais dez países e em alguns estados dos EUA, a posição oficialista majoritária no mundo continua eivada de ignorância, preconceito, contradições berrantes e interesses econômicos. O álcool e o tabaco, com níveis de toxicidade e geração de danos muitíssimo maiores do que a maconha, são considerados em todo o Ocidente e parte do Oriente como drogas legais, aptas para o consumo. Governos e grandes empresas midiáticas não querem mudar essa situação porque ganham muito dinheiro com ela. Os governos com os altos impostos cobrados por esses produtos, permitindo sua circulação e consumo e, ao mesmo tempo e cinicamente, fazendo campanhas sobre seus males. A grande mídia com a manutenção do cinismo, lucrando com anúncios pró e contra. Do álcool abertamente, de cigarros disfarçadamente (merchadising em filmes e novelas) porque estão proibidos.

Nesse caldo de cultura perverso viceja a maconha, que por ser uma “droga ilegal” também não pode ser utilizada como droga medicinal, apesar das comprovações científicas de várias propriedades terapêuticas da cannabis, incluindo a melhora ou superação de náuseas, vômitos e falta de apetite de aidéticos e pacientes submetidos à quimioterapia, eficácia no tratamento de glaucoma e efeitos analgésicos. Desde a década passada, vítimas de esclerose múltipla, alzheimer e depressão vêm encontrando na maconha um paliativo poderoso para seus sofrimentos e muitos cientistas dizem que os benefícios para outras doenças só não estão confirmados porque faltam recursos para pesquisas sobre a cannabis. Produtos sintetizados de canabinoides, ou seja, medicamentos legais à base de maconha, só existem na Alemanha e EUA (dronabinol), Inglaterra, Canadá e México (nabilone), com controle de tarja preta. Nos EUA e Canadá esses medicamentos não podem ser adquiridos por estrangeiros.

No Brasil, presume-se que já são milhares as pessoas que, durante tratamentos quimioterápicos, usam maconha para diminuir ou evitar os danos colaterais causados por esse procedimento. Muitos pacientes são aconselhados pelos seus médicos a fazer isso, já que o THC, o tetrahidrocanabinol, principal substância da maconha, é o único lenitivo comprovadamente funcional para esses danos. Os médicos apenas aconselham, não podem receitar porque não há fórmulas sintetizadas no Brasil, não se pode importar e o uso por inalação é crime no país.

Alguns desses pacientes têm a sorte de encontrar as santas pessoas que, correndo o risco de serem consideradas criminosas, cultivam a planta em suas casas para uso medicinal. Outras pessoas são forçadas a comprar a droga de traficantes para amenizar seus sofrimentos ou de familiares (acabo de ver na TV uma senhora dizendo que faz isso para amenizar as náuseas e tonturas de sua filha pequena e que, se for presa, outra pessoa da família continuará fazendo o mesmo). A estupidez e a ganância humanas, neste caso por parte de governantes e empresários, continua a fazer suas vítimas.

Por Orlando Senna

Comentário:

Neste artigo, como sói acontecer, Orlando trás à baila, um assunto dos mais comentados e noticiados mundo a fora: “Maconha, cinismo e sofrimento”, esta é sem sombra de duvida a tríade que atormenta, angustia e vitima o grosso da população brasileira em todos os rincões deste belo País. A criminalização da droga por governos cleptocráticos, deslegitimados, consorciada com os excessivos noticiários noite e dia, todos os dias, em quase todos os meios de comunicação, tem provocado competente efeito de marketing, divulgação, promoção de uma mercadoria que, passa a ser consumida e comercializada por uma horda enfurecida.

Mas, dentre todas as drogas usadas, vendias e traficadas ou não no mundo atualmente, uma ocupa lugar impar, suigeneris, pela sua fluidez e poder deletério, O cinismo, predominante principalmente entre os ricos, poderosos e seu entorno, para daí se espraia, grassar leve e solto, ser naturalizado, ocupando mente e coração de quase toda gente.                     

Orlando Senna nasceu em Afrânio Peixoto, município de Lençóis Bahia. Jornalista, roteirista, escritor e cineasta, premiado nos festivais de Cannes, Figueira da Foz, Taormina, Pésaro, Havana, Porto Rico, Brasilia, Rio Cine. Entre seus filmes mais conhecidos estão Diamante Bruto e o clássico do cinema brasileiro, Iracema. Foi diretor da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños e do Instituto Dragão do Mar, Secretário Nacional do Audiovisual (2003/2007) e Diretor Geral da Empresa Brasil de Comunicação – TV Brasil (2007/2008). Atualmente e presidente da TAL – Televisão América Latina e membro do Conselho Superior da Fundacion del Nuevo Cine Latinoamericano.

Itamar Pereira de Aguiar nasceu em Iraquara – Bahia; concluiu o Ginásio e Escola Normal em Lençóis, onde foi Diretor de Colégio do 1º e 2º graus (1974/1979); graduado em Filosofia, pela UFBA em 1979; Mestre em 1999 e Doutor em Ciências Sociais – Antropologia – 2007, pela PUC/SP; Pós doutorando em Ciências Sociais – Antropologia – pela UNESP campus de Marília – SP. Professor Titula da Universidade Estadual do Sudoeste do Estado da Bahia – UESB; elaborou com outros colegas os projetos e liderou o processo de criação dos cursos de Licenciatura em Filosofia, Cinema e Audiovisual/UESB.