A  lógica do mercado não pode sufocar a memória, a arte e a vida coletiva de Vitória da Conquista

Por Herberson Sonkha[1]

Este artigo de opinião foi motivado pela leitura interessantíssima da matéria do jornalista Jeremias Macário, intitulada “A REVITALIZAÇÃO DO CENTRO DA CIDADE NÃO É NENHUMA NOVIDADE”, publicada no site www.aestrada.com.br em 16 de setembro de 2025, às 23h08. Parto dessa abordagem cirúrgica imprescindível de Jeremias para não apenas reafirmá-la, como também tentar contribuir com essa discussão necessária e urgente para o futuro de nossa cidade.

A recente audiência pública da Câmara de Vereadores sobre a revitalização do centro de Vitória da Conquista traz à tona um debate antigo, já discutido há mais de duas décadas. Como bem lembra Macário, não se trata de novidade, mas da retomada de um projeto que nunca saiu do plano do discurso ou foi reduzido a arremedos cosméticos: calçadões improvisados, intervenções superficiais na Praça Nove de Novembro e nada que toque na essência da vida urbana.

A cidade, como nos adverte Henri Lefebvre em O Direito à Cidade (1968), “não é uma coisa, mas uma obra; obra de uma história, de uma coletividade, de uma vontade”. O centro de Vitória da Conquista não pode ser reduzido a um “shopping a céu aberto” para atender consumidores, pois isso reproduz a lógica do capital que transforma tudo em mercadoria e esvazia a experiência coletiva de viver a cidade.

O centro como espaço de memória e cultura

Ao demolirem casarões, destruírem a Rádio Clube e transformarem patrimônio em estacionamento, o que se retira não é apenas uma construção física, mas camadas de história e identidade coletiva. Walter Benjamin, em suas Teses sobre o conceito de história (1940), advertia que a modernidade capitalista promove um “progresso destrutivo”, em que a ânsia por lucro imediato corrói a memória social. Vitória da Conquista corre o risco de se tornar apenas um entreposto comercial, sem centro histórico, sem alma, sem memória.

Revitalizar significa, antes de tudo, recuperar a cultura. O fechamento do Teatro Carlos Jheovah, do Cine Madrigal e da Casa Glauber Rocha é mais que descaso: é sintoma de uma lógica economicista que considera a arte inútil porque “não dá lucro nem voto”. Karl Marx já denunciava, em Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), que a lógica do capital reduz o ser humano ao trabalho alienado e à produção de mercadorias, ignorando suas necessidades essenciais: “A desvalorização do mundo humano aumenta em razão direta da valorização do mundo das coisas”.

Cultura como produção de vida

A economia marxista ensina que a riqueza não se resume ao lucro privado, mas ao conjunto de bens materiais e imateriais produzidos pela coletividade. A cultura é parte essencial dessa riqueza social, pois forma consciência crítica, constrói identidade e fortalece laços comunitários. Eric Hobsbawm, em A Era dos Extremos (1994), sinaliza que as cidades floresceram historicamente como espaços de efervescência cultural: “Sem os centros urbanos, não haveria a vida intelectual, artística e política que moldou a modernidade”.

A antropologia urbana de Milton Santos também reforça essa visão. Em A Natureza do Espaço (1996), o geógrafo baiano afirma: “A cidade é o espaço da coexistência, da multiplicidade, onde o valor de uso deveria prevalecer sobre o valor de troca”. Ou seja, Conquista só será plenamente cidade quando a população se reconhecer nela como produtora e usuária, não apenas como clientela de lojas.

A cidade que queremos

A Praça Nove de Novembro e a Barão do Rio Branco não podem ser apenas vitrines para carros ou cenários de consumo restrito ao São João e ao Natal. Elas precisam ser espaços permanentes de expressão popular: música, teatro, literatura, saraus, dança, exposições, feiras culturais. Isso não é gasto, é investimento social.

David Harvey, em Cidades Rebeldes (2012), é categórico: “O direito à cidade não é apenas o direito de acesso ao que já existe, mas o direito de mudar a cidade de acordo com o nosso desejo de corações e mentes”. Ao exigir a reabertura dos equipamentos culturais e uma programação permanente, os artistas de Conquista, respaldados por quatro mil assinaturas, não pedem favores: reivindicam o direito ao uso social da cidade. É uma luta por dignidade e participação.

Revitalizar é resistir ao esvaziamento neoliberal

Se a Câmara e o Executivo pretendem revitalizar o centro de Vitória da Conquista, não podem se limitar a fachadas e calçadões. É preciso resistir à lógica neoliberal que transforma ruas em estacionamentos, casarões em ruínas e cultura em mercadoria descartável. Revitalizar o centro significa revitalizar nossa memória, nossa cultura e nossa identidade coletiva.

Como diria Antonio Gramsci em Cadernos do Cárcere (1932-1935): “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, surge uma grande variedade de sintomas mórbidos”. A crise cultural de Vitória da Conquista é esse interregno: ou revitalizamos a cultura como nova base de desenvolvimento, ou sucumbiremos a sintomas mórbidos do mercado, que reduz a cidade a concreto e vitrines.

Vitória da Conquista precisa escolher: ou um centro vivo, pulsante, cultural e humano, ou um deserto de concreto, sem memória e sem povo.

[1] Herberson Sonkha é um homem negro de cor parda, militante social do movimento negro há mais de três décadas. É vinculado aos Agentes de Pastoral Negros e Negras do Brasil (APNs) e ao Movimento Negro Unificado (MNU) de Vitória da Conquista, além de ser filiado à Unidade Popular pelo Socialismo (UP). Atua como colaborador do Movimento Coletivo Ética Socialista (MCOESO), é poeta, compositor, escritor e militante da cultura no Movimento Cultura Conquista. Recentemente passou a integrar a construção coletiva do Sarau A Estrada. Atualmente é pesquisador marxista do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Política e Sociedade (NETPS/Uesb) e graduando em Economia pela Uesb.