Blog Refletor Televisión América Latina

TEMPO REAL    

Duas ações da Ancine-Agência Nacional de Cinema, anunciadas esta semana, referem-se diretamente ao propósito de fomentar a evolução da linguagem audiovisual no Brasil. Primeiro, o critério de “propostas de linguagem inovadora e relevância artística” para a escolha, através de edital público, de 17 projetos de filmes longos a serem produzidos em 2015, uma linha de ação que terá continuidade. Segundo, o investimento de 60 milhões de reais nas TVs públicas, comunitárias e universitárias. O presidente da agência, Manoel Rangel, justificou a iniciativa: “o campo da TV pública é um espaço de oxigenação e experimentação”.

Também esta semana tive contato com estudantes de cinema e nossa conversa, por iniciativa deles, girou em torno dos filmes em tempo real, um tipo de narrativa que querem trabalhar. As ações da Ancine, a inquietação artística dos jovens cineastas e um texto que postei aqui há duas semanas, Cinema de fluxo, estão imersos no mesmo caldo de cultura da inovação, de respostas pertinentes à necessidade de experimentação e ousadia para alimentar as artes audiovisuais em processo de mutação (devido às novas tecnologias e aos novos cenários sociais, psicossociais e políticos da humanidade).

Apesar de ser um procedimento antigo, experimentado por alguns cineastas clássicos, filmes em tempo real são raros na história do cinema, mas tudo indica que serão cada vez menos raros na contemporaneidade do cinema digital. Sobre o que estamos falando? Começando pelo princípio, a linguagem do cinema é construída com o tempo, como a música. Funciona a partir de dois princípios tecno-artísticos: tempo real e elipse. Tempo real é quando a duração da cena é a mesma da história que ela está contando. Por exemplo, um diálogo de três minutos é apresentado na tela durante três minutos. A elipse é um salto no tempo entre uma cena e outra, ou dentro da própria cena. Então os filmes são feitos com momentos de tempo real e saltos de tempo entre eles. Alguns teóricos se referem ao efeito produzido pelas elipses como “compressão”. É manipulando tempos reais e elipses que é possível contar em dez minutos uma história que dura um século.

Entre os raros clássicos realizados exclusivamente em tempo real, sem a contraparte das elipses, está Festim diabólico (Rope), 1948, de Hitchcock. Três jovens servem um jantar para convidados sobre um baú onde está escondido o corpo de um colega que mataram. É um tempo real radical porque é em uma só tomada, a câmera não é desligada nunca, não há cortes. Como na época fazer isso era impossível, na verdade Hitchcock fez dez tomadas e disfarçou os cortes entre elas. Em 1952 Fred Zinneman fez Matar ou morrer (High Noon), classificado pelos críticos como western psicológico. Um xerife que acaba de se casar e entregar o cargo, decide ficar na cidade e enfrentar um facínora que vem se vingar dele e da comunidade. Do casamento até o duelo final a história dura 90 minutos e os espectadores sabem disso porque há relógios no cenário cadenciando o suspense. Exatamente os 90 minutos do filme. Matar ou morrer não é um tempo real dito radical porque não é uma só tomada. São várias, são muitos cortes, mas não existe saltos no tempo.

O filme em tempo real foi desenvolvido com mais constância na América Latina. Há exemplos em vários países (como o premiado filme chileno Sábado, 2002, de Matías Bize), mas principalmente no México, a partir do trabalho de Jaime Humberto Hermosillo, que lançou em 1990 A tarefa (La tarea), filme referencial nessa linha. Tomada única, uma mulher grava cenas com o namorado com uma câmera escondida e o espectador não sabe exatamente o que está acontecendo entre eles até o minuto final. Hermosillo realizou em 1992 A tarefa proibida (La tarea prohibida), também estimulante, mas sem o sucesso da primeira Tarea.

O título de outro filme mexicano a mencionar é, exatamente, Tiempo real, 2002, de Fabrizio Prada. A câmera ligada sem interrupção narrando o roubo de um carro-forte pelos seus motoristas e cruzando uma cidade, passando por 15 diferentes cenários. Prada ensaiou com seus atores e técnicos durante oito meses, fez 11 tomadas de uma hora e meia e escolheu uma delas. Sem manipular o tempo, sem “compressões”.

O último exemplar mexicano inserido nessa linha, que vi, foi Preludio, 2013, de Eduardo Lucatero, uma situação romântica em um apartamento, minuciosamente ensaiada durante seis meses e gravada em um dia, conexão perfeita entre equipe e elenco. Possivelmente alguns dos leitores pensarão que é um cinema muito próximo ao teatro. Em alguns filmes isso pode ser percebido, mas outros passam bem longe disso, como Matar ou morrer e Tiempo real. É uma opção aberta tanto à aproximação das duas expressões, cinema e teatro, como a novas sendas de criação e invenção no território especificamente audiovisual, na linguagem estribada no tempo, no jogo mágico com esse profundo mistério.

Por Orlando Senna

Comentário:

O artigo Tempo real que gira em tornode fazer filme e o tempo suscitou lembranças, revirando a memória recordei-me dos idos 1977, quando da filmagem de Diamante Bruto, cujo principal cenário é a bela e encantada Lençóis. Naquela época, esperando o tempo mudar e preocupado com a continuidade das senas, o então diretor Orlando Senna, expressou um conceito “Fazer Cinema é a arte de esperar” jogando, também, com o ato de filmar e o tempo, muito embora em outra perspectiva fílmica.

Orlando Senna nasceu em Afrânio Peixoto, município de Lençóis Bahia. Jornalista, roteirista, escritor e cineasta, premiado nos festivais de Cannes, Figueira da Foz, Taormina, Pésaro, Havana, Porto Rico, Brasilia, Rio Cine. Entre seus filmes mais conhecidos estão Diamante Bruto e o clássico do cinema brasileiro, Iracema. Foi diretor da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños e do Instituto Dragão do Mar, Secretário Nacional do Audiovisual (2003/2007) e Diretor Geral da Empresa Brasil de Comunicação – TV Brasil (2007/2008). Atualmente e presidente da TAL – Televisão América Latina e membro do Conselho Superior da Fundacion del Nuevo Cine Latinoamericano.

Itamar Pereira de Aguiar nasceu em Iraquara – Bahia; concluiu o Ginásio e Escola Normal em Lençóis, onde foi Diretor de Colégio do 1º e 2º graus (1974/1979); graduado em Filosofia, pela UFBA em 1979; Mestre em 1999 e Doutor em Ciências Sociais – Antropologia – 2007, pela PUC/SP; Pós doutorando em Ciências Sociais – Antropologia – pela UNESP campus de Marília – SP. Professor Titula da Universidade Estadual do Sudoeste do Estado da Bahia – UESB; elaborou com outros colegas os projetos e liderou o processo de criação dos cursos de Licenciatura em Filosofia, Cinema e Audiovisual/UESB.