:: ago/2025
CABEÇAS DECEPADAS E DOIS “PARTIDOS” NORDESTINOS NA ÉPOCA DO CANGAÇO
A maioria das pessoas considera uma barbaridade a decapitação das cabeças de cangaceiros mortos pelas forças das volantes e tem suas razões, mas existem explicações.
Do outro lado, o cangaço, entre final do século XIX até 1940, fazia o mesmo com os chamados “macacos” e até esquartejavam impiedosamente. O cangaceiro Antônio Silvino tinha o prazer de sangrá-los depois de tombados em combate.
Sobre o assunto, veja o que nos diz o pesquisador e escritor Luiz Bernardo Pericás em sua obra “Os Cangaceiros”. Depois das lutas, o fardamento dos soldados das volantes (vestimentas parecidas a partir de 1925) ficam em péssimas condições, muitas esfarrapadas.
Quando ganhavam os embates, de acordo com Pericás, decepavam as cabeças dos rivais por eles assassinados. O autor do livro aponta três motivos para a decapitação do inimigo.
Um deles para demonstrar desprezo e, consequentemente, humilhar o rival. Se o cristianismo defende a inviolabilidade do corpo, a decapitação seria uma forma de tirar esse “privilégio” dos bandidos. Com a cabeça separada do tronco, sua alma estaria perdida. Essa seria uma forma estranha de punição. Exemplo claro foi o de Corisco, enterrado inteiro e depois exumado e decapitado. Para alguns, o ato teve como objetivo estudar seu crânio.
Luiz Pericás deixa claro que isso funcionava para os dois lados. Ao terminar o ataque a Betânia, os civis pediram a Lampião permissão para sepultar os soldados assassinados. O “governador do sertão” respondeu que “macaco” não se enterrava. Para ele, os policiais deveriam ficar por cima da terra para serem comidos pelos urubus. Depois de muita insistência, o cangaceiro deu permissão.
Antônio Silvino (1897-1914) havia feito o mesmo. Em 1904, após assassinar o sargento Manoel da Paz, proibiu que o povo de Mogeiro o enterrasse. Não poderiam colocá-lo num cemitério, já que seria uma profanação sepultar um “bandido” daquele tipo num lugar sagrado – disse Silvino.
O segundo motivo era de implicações mais práticas. Como era inviável o transporte de cadáveres e, considerando que era fundamental exibir as provas da eliminação de muitos cangaceiros procurados, o corte das cabeças se mostrava a melhor opção. A exposição em praça pública daria mais segurança para o povo de que aqueles indivíduos não seriam mais ameaças.
O último motivo é que as cabeças serviam como troféus macabros para os oficiais, que poderiam usá-las como símbolo de suas eficiências militares. Em última estancia, seriam estudadas por cientistas, antropólogos e criminalistas, e depois guardadas em museus.
Por outro lado, as cabeças terminaram virando moeda de troca com as autoridades. Qualquer bandido arrependido que entregasse a cabeça de um cangaceiro para a polícia teria seus crimes perdoados pelo governo e ainda ganharia prêmios e garantias de vida.
Com José Osório de Faria, o Zé Rufino, que alugou serviços às autoridades baianas, havia um acordo secreto com o governo. Cada cabeça era trocada por uma promoção. Após 16 combates e 22 decapitações ele se tornou coronel de polícia.
No começo do século XX, cidadãos comuns decapitavam cangaceiros para roubar seus pertences. O sujeito que não fosse sangrado e torturado poderia se considerar um privilegiado. Depois de capturar e interrogar “Lavandeira”, o tenente Alencar decidiu sangrar o bandido, mas atendendo a um pedido do soldado, deu um tiro na cabeça.
DOIS “PARTIDOS”
No final do século XIX e nas primeiras décadas do XX, o Nordeste, sem justiça, era uma terra de ninguém onde mandavam os coronéis, fazendeiros e senhores de engenho, se bem que os poderosos só mudaram de vestes e de lugar.
Os pobres e miseráveis ficavam numa linha de fogo cruzado e só tinham dois “partidos” para sobreviver, o do cangaço ou o da volante. Conforme relata Luiz Pericás, o governo contratava civis para as forças volantes.
“As tropas volantes, assim, se tornavam também uma forma de garantir um emprego e de ascensão social para muitos sertanejos. Outros se alistavam por terem recebido ameaças até mesmo de policiais e também para garantir sua segurança contra cangaceiros inimigos”.
A ideia de se perseguir desafetos que cometeram crimes contra suas famílias era um dos principais motivos de ingresso nas fileiras policiais. Pericás conta que um coiteiro de Lampião, Elias Marques, de Santa Brígida, depois de entrar em desavença com o “governador do sertão” ingressou na força policial.
Em alguns casos, quando o sertanejo não conseguia entrar nas volantes, caso do cangaceiro Tenente, decidia ingressar no grupo dos salteadores. “Fiapo”, depois de se desentender com Lampião, foi para a volante.
Quando “Volta Seca” foi capturado disse que nunca mais retornaria ao cangaço. Segundo ele, o jeito seria virar “macaco”. Também ocorria o inverso. Desertores da força pública se tornavam cangaceiros, como Ignácio Loyolla Medeiros, vulgo “Jurema”. Ficou na polícia até 1922 e depois se incorporou ao grupo de Lampião.
“Corisco” também foi militar, tendo servido no 28º Batalhão de Caçadores do Exército, em Aracaju-Sergipe. Após participar de uma rebelião, em 1924, desertou e mais tarde se tornou cangaceiro. O caso mais conhecido de um militar do exército brasileiro a se tornar um cangaceiro foi o de José Leite Santana, vulgo “Jararaca”, que chegou a lutar na revolta tenentista de São Paulo, em 1924, e também esteve no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.
Um, dos filhos de Antônio Silvino se tornou oficial do exército. Certa vez Lampião disse que não havia nascido para a vida de cangaceiro. “Se não houvesse nêgo na polícia pra manobrar com a gente, eu ainda iria ser soldado”. Joca Bernardo, coiteiro de “Corisco” e delator do paradeiro de Lampião em Angico, recebeu a oferta de cinco contos de reais e uma patente de sargento. Foi enganado e caiu em desgraça.
A NOSSA CULTURA ESTÁ NA UTI E PEDE SOCORRO PARA SER REANIMADA
O grupo “Estradeiros da Cultura”, do Sarau A Estrada, abriu uma discussão muito pertinente sobre a situação lamentável em que vive hoje a cultura em Vitória da Conquista, talvez nunca vista em sua história.
Dentro desse debate, cada membro se expressou livremente e apresentou suas sugestões para contribuir com o “Movimenta Cultura Conquista”. É bom que fique claro que se trata de uma manifestação suprapartidária, porque a única política que nos norteia e une é a luta por uma política cultural no município.
O “Movimenta Cultura Conquista” soltou uma nota pública no último dia 25 de agosto, onde faz um apelo ao poder executivo para que a classe artística e a sociedade civil sejam respeitadas em suas principais reivindicações, quais sejam abertura dos equipamentos Teatro Carlos Jheovah, Cine Madrigal e Casa Glauber Rocha há anos fechados.
A princípio, o Sarau A Estrada está elaborando uma carta onde pontua diversas reivindicações, como criação de um Plano Municipal de Cultura, Aumento do Orçamento Municipal para a Cultura na LDO para 2026, Reforma do Teatro Carlos Jehovah, Construção de um Centro de Convenções, Investimentos em Todas as Formas de Expressão Artística, Novo Espaço para o Conservatório de Música, Ampliação de Vagas, Contratação de Instrutores e Novos Módulos nos Bairros, Política de Salvaguarda do Patrimônio Cultural e Retomada do Natal da Cidade com Foco na Produção Local,
A gestão atual se mentem em silêncio. “É sabido que há muita dificuldade de escuta aos coletivos organizados por parte do grupo que governa a cidade” – informa a nota confirmando que foi entregue um documento com quatro mil assinaturas no início do ano sobre várias questões que constituem entrave para a revitalização da nossa cultura.
Cita ainda que o Gabinete Civil recebeu o Movimenta, em 25 de março, acompanhado do secretário de Cultura, Eugênio Avelino (Xangai) e do coordenador Alexandre Magno “e nada de relevante foi apresentado”. Destaca que o grupo esperou por uma nova reunião marcada para o dia dois de maio, o que não aconteceu.
O documento assinala precarização dos trabalhadores da cultura, fechamento dos equipamentos, deterioração do patrimônio público e retorno de verbas da cultura para a União no valor de quase meio milhão de reais referentes aos editais das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc. Aponta também a descaracterização do nosso São João mediante privatização da festa, com gastos em torno de quatro milhões de reais.
“O evento deixou de acontecer no Espaço Glauber Rocha (Bairro Brasil) para ser realizado num local privado do Parque de Exposições. Dessa forma, torna-se urgente ampliar a mobilização e a luta por parte do setor cultural e da sociedade”. Todos são cumplices por esse atraso cultural, especialmente os poderes executivo e legislativo – completa o documento.
O Movimenta fala da necessidade de efetivação de políticas públicas para a cultura, mas deixou de reivindicar a criação do Conselho Municipal de Cultura, de suma importância para, através de leis, estabelecer diretrizes para a cultura que está sendo tratada como sobra de orçamento.
Bem, foi com base nesse documento que membros do Sarau A Estrada fez suas devidas colocações no intuito de contribuir para a melhoria da nossa cultura. Como os canais foram fechados, a única saída seria uma mobilização pacífica de protesto em frente da prefeitura abrangendo representantes de todas linguagens artísticas – conforme sugestões apresentadas.
O Sarau, fazedor de cultura, se integra e apoia o Movimenta em suas reivindicações e endossa a nota pública visando revitalizar o setor. A criação do Plano Municipal é uma antiga demanda da categoria.
De acordo com manifestações de membros do Sarau, os espaços fechados vêm prejudicando os artistas que ficam sem locais para realizar seus ensaios e apresentações de seus espetáculos.
“Na maioria das vezes não se tem uma política voltada para a formação e a educação da juventude no que se refere a uma visão transformadora e científica crítica. O sistema não favorece a proliferação de uma massa consciente crítica” – ressaltou um membro do Sarau.
Em minha opinião, o Sarau deve e tem a obrigação de tomar uma posição sobre tudo isso que está ocorrendo com relação ao desprezo com a nossa cultura. Afinal de contas, somos também um movimento cultural. O músico e compositor Manno Di Souza chama a atenção de que não houve respostas às reivindicações feitas.
”A situação em Vitória da Conquista é realmente preocupante e reflete uma questão mais ampla sobre o papel da cultura na sociedade. Quando o diálogo é silenciado e os espaços culturais são abandonados, a própria cidade perde sua alma. A cultura em sua essência, é a voz de um povo, o espelho de sua identidade e o motor de sua evolução”. – Ubuntu, A…
Para o músico Manno, Conquista tem um grande número de habitantes oriundos do sudeste e centro-oeste que não têm conhecimento da cultura do município, sobretudo da cultura nordestina. A professora Maria José afirma não entender como a pasta da cultura está nas mãos de uma artista renomado e o setor municipal está travado.
Em minha visão, precisamos de mais apoio das mídias em geral e mobilização de todos aqueles que fazem cultura em nossa cidade, saindo do individualismo e partindo para o coletivo. A professora Dayse, antes das eleições, fez um movimento com abaixo-assinado, mas não se sabe no que resultou. Um grupo chegou a angariar assinaturas nas feiras. Todo trabalho terminou em silêncio.
A classe artística também tem sua parcela de culpa nesse caos. “Por mais que se tente unificar os movimentos culturais, esbarra-se no individualismo, vaidades e estrelismos de alguns colegas que dirige, ou dirigiu alguns desses movimentos. A unificação pontual mudaria tudo “ – enfatiza Manno.
Dal Farias e a atriz Edna dizem estar de acordo que haja uma manifestação de todos, inclusive do legislativo. O blog Avoador publicou uma matéria onde ressalta que o coletivo de artistas denuncia o descaso da prefeitura com o setor cultural. O grupo alega que não consegue diálogo.
Muitos apontam que a nossa cultura está sendo privatizada, como aconteceu no São João. O poeta, escritor e memorialista Carlos Maia também brada sobre esse descaso, principalmente quanto ao fechamento dos equipamentos culturais.
“Temos que fazer uma convocação geral para uma manifestação de protestos” – sugerem alguns artistas, acrescentando que está comprovado que documento não funciona porque termina sendo engavetado. O artista e cantor Dorinho Chaves concorda nestes pontos.
Para Eduardo Morais, tem que haver um levante nesta cidade, de forma organizada como instrumento de alertar a comunidade e a imprensa sobre o descaso dos poderes públicos em relação às práticas culturais. A maioria concorda com essa posição. Denunciar, mobilizar e reivindicar atenção à nossa causa que é também da população conquistense” – diz a professora Viviane Gama. A atriz Edna sugere se fazer o teatro do absurdo.
TOCOU, LEMBROU
(Chico Ribeiro Neto)
Com 12 anos eu queria namorar com uma menina lá da rua, mas ela queria um estudante de Medicina que não a queria, e passava perto de mim, em Salvador, cantando:
“Quem eu quero não me quer
Quem me quer é muito pequeno”.
Era uma versão adaptada da música “Quem em quero não me quer”, de 1961, de Raul Sampaio e Ivo Santos.
Eu gostava muito de cantar no banheiro do casarão 33 da rua Gabriel Soares ( Ladeira dos Aflitos), que ficava no primeiro andar e tinha uma janela que se abria para o mar, e acho que minha voz chegava até “quem eu quero não me quer”, quase minha vizinha.
Nessa época cantei muito “Pensando em Ti”, de David Nasser e Herivelto Martins, grande sucesso na voz de Nelson Gonçalves, gravada em 1957:
“(…) Nos cigarros que eu fumo
Te vejo nas espirais
Nos livros que eu tento ler
Em cada frase tu estás (…)”
Aos 11 anos cantei muito, no banheiro que tinha janela, “Quero Beijar-te as Mãos”, de Lourival Faissal, gravada pelo baiano Anisio Silva em 1957.
Em 1960 Anisio Silva gravou “Alguém me Disse”, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, e fez tanto sucesso que recebeu o primeiro Disco de Ouro do Brasil.
“Alguém me disse que tu andas novamente
De novo amor, nova paixão, toda contente (…)”.
Meu pai Waldemar tinha o disco “O Ébrio”, com Vicente Celestino, em 45 rotações. Aos 12 anos eu decorei todo o monólogo que antecede a música e fazia sucesso nas rodas da família. “Nasci artista,fui cantor”, assim começava o monólogo.
Teve a fase das matinês dançantes no Clube Comercial, na Avenida Sete de Setembro, e no Clube Sergipano, na Boca do Rio.
Aí eu já tinha uns 15/16 anos e colava o rosto nas garotas ao som do Trio Irakitan, com “Bejame Mucho”, “Perfídia” e “Solamente una Vez”. A gente dançava também ao som das orquestras de Ray Conniff e de Waldir Calmon.
E aí chega o Carnaval. Pulei nos bailes infantis do Clube Fantoches da Euterpe, na rua Democrata, perto do Largo 2 de Julho, do Clube Espanhol (na Vitória), e no Iate Clube, onde a turma entrava de “penetra” pelo mar, nadando nu com a roupa na cabeça.
“Quem sabe, sabe
Conhece bem
Como é gostoso
Gostar de alguém (…)”
“Ei, você aí,
Me dá um dinheiro aí
Me dá um dinheiro aí (…)”
“Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é Carnaval (…)”
Um dos maiores sucessos do Carnaval baiano foi “Chuva, Suor e Cerveja”, de Caetano Veloso:
“Não se perca de mim
Não se esqueça de mim
Não desapareça
A chuva tá caindo
E quando a chuva começa
Eu acabo de perder a cabeça (…)”
Toca Raul!
(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)
OS ATESTADOS DE ÓBITOS
Somente agora, depois de mais de 40 anos, o governo federal, através do Conselho Nacional de Justiça, vem liberando os atestados de óbitos de presos políticos pela ditadura civil-militar de 1964 com a verdadeira causa morte devido a torturas nas prisões do regime. Até, então, esses corpos eram dados como desaparecidos ou com laudos falsos da causa morte. Em minhas andanças, por coincidência, nossas lentes flagraram nas barrancas do rio São Francisco, o “Velho Chico”, ou Opará, no cais da orla de Petrolina (Pernambuco), inscrições em grafite indagando onde estão os mortos da ditadura. Os atestados verdadeiros, no entanto, não fecham as feridas abertas daquele tenebroso regime que torturou, matou e desapareceu com centenas de corpos. Pela anistia geral e irrestrita imposta à sociedade, em 1979, os torturadores no Brasil ficaram impunes, diferente de outros países da América do Sul (Argentina, Uruguai e Chile) que colocaram na cadeia os generais e oficiais que torturaram e mataram milhares de presos políticos que lutaram contra a opressão. Portanto, os novos atestados servem apenas como paliativos porque muitas famílias não tiveram o direito de enterrar seus parentes, conforme manda a tradição cristã.
POR ESSAS TRILHAS NORDESTINAS
Poema de autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
Sou cavaleiro encantado,
Como um D. Quixote
Por essas trilhas nordestinas:
Terras agrestes milenares,
Milhas de misteriosas ilhas,
De gentes diferentes espartares,
Parando o tempo,
Cortando a lâmina do vento,
Entre torres e placas solares.
Por essas trilhas nordestinas,
De culturas únicas no Brasil,
De expressões misturadas divinas,
Região resistente varonil:
Vejo as floras agrestinas,
A caatinga que esgarça na seca,
A chuva que brota na restinga,
Floresce todo aquele mundão,
E o preto velho faz sua mandinga.
Vejo o cangaço de aço,
Na ponta do rifle e do punhal,
As matas feras ribanceiras,
O céu que dá o seu sinal,
Rios com suas corredeiras,
Meu prateado luar,
As águas cortando curvas,
Rumo às portas do mar.
Por essas trilhas nordestinas,
Vejo os senhores de engenho,
Mirrados meninos e meninas,
Coronéis que perderam seus anéis,
Poetas, trovadores-repentistas,
Os grandes riscados cordelistas,
Dos lajedos, cavernas e grutas,
Nascer a cultura e a literatura,
Desse povo de muitas lutas;
De suas nascentes ainda jorrar,
A tradição rica e popular.
Por essas trilhas nordestinas,
Vejo feiras de trabalhadores,
Com suas enxadas e foices,
Machados, cabaças e facões,
Poderosos dando coices,
Asas parar no ar,
O voo dos carcarás e gaviões,
O choro calado em cada lar,
A exploração dos patrões,
O som rasgado de Zé Ramalho,
A fé que não faia do Gil,
O protesto de Vandré,
Na gaita melódica do vinil,
De Caetano o sol bater,
Nas bancas de jornais,
Cantando Alegria, Alegria,
Atrás dos trios dos carnavais.
Por essas trilhas nordestinas,
Cada humano cruzando estradas,
No jumento em suas picadas,
Gado ferrado em manadas,
Do cangaceiro Antônio Silvino,
As dores que perderam o nome,
Nos cantos dos casebres da fome.
Por essas trilhas nordestinas,
Vejo a Colônia perversa passar,
O império e a nobreza prometer,
E a oligarquia nos violentar;
Vejo o capitão Virgulino,
O Conselheiro e seus penitentes,
A emboscada do pistoleiro assassino,
O pau de arara comendo poeira,
Mutirões em suas frentes,
A mulher solitária rendeira,
Compositores e escritores,
Que nos deram régua e compasso,
O vaqueiro certeiro no laço,
E assim vou seguindo,
Meu destino no lento passo.
Por essas trilhas nordestinas,
De tantas caras e faces,
Umas duras enrugadas,
Outras de semblantes magoadas,
Vejo o alvorecer das madrugadas,
O pôr do sol ensanguentado,
Brilhar nas pinturas rupestres,
Os registros se eternizar,
Nas escrituras dos mestres.
Por essas trilhas nordestinas,
Vou voando como pássaro aguerrido,
Neste Nordeste querido,
Único neste universo,
No sangue do meu sentimento,
Como do escravo seu lamento,
Da mãe África a enxugar suas lágrimas,
Nos porões negreiros,
Para ser trono dos estrangeiros.
Por essas trilhas nordestinas,
Do Maranhão a Paraíba,
Do Pernambuco a Piauí,
Sergipe e a velha Bahia,
Das Alagoas e o potiguar,
Nas farturas das frutas e do pequi,
Cada estado em seu lugar,
No imposto de sangue,
Na vindita da canga,
Justiça de armas nas mãos,
Astutos canibais dos matutos,
Vejo muita luz e energia,
Nesses rostos sofridos,
De José e Maria.
FIBROMIALOGIA, CAFÉ E O SETOR IMOBILIÁRIO NA TRIBUNA LIVRE DA CÂMARA
Há meses, por motivos pessoais, não frequentava as sessões da Câmara de Vereadores de Vitória da Conquista. A feira de conversas paralelas continua a mesma na plenária e também entre os parlamentares, atrapalhando o aproveitamento dos trabalhos.
Quem vai à Tribuna Livre pouco é ouvido diante do barulho. A leitura da ata poderia ser eliminada porque ninguém consegue escutar praticamente nada. O que se percebe é uma falta total de educação e disciplina. Será que as pessoas vão ali para fazer negócios ou trocar fofocas? Será uma tradição cultural nova que eu desconheça?
Ainda está se discutindo a transferência federal da área do aeroporto velho para o município. Certa vez comentei que naquele local deveria ser construído o Centro Administrativo Municipal para desafogar o centro da cidade. Bem, é só a opinião de um cidadão.
Antes de abrir as discussões da pauta do dia (27/08/2025), várias pessoas falaram na Tribuna Livre, com destaque para críticas à administração da prefeita Sheila Lemos. Como representante do Sindicato Municipal dos Professores, Allysson Mustafá falou da volta às escolas, dizendo que muitas funcionam precariamente.
No entanto, ele focou na questão salarial entre os professores públicos e os de colégios particulares, existindo uma grande defasagem para estes últimos. Citou, por exemplo, que um professor público ganha cerca de 28 reais por hora/aula, enquanto que o de ensino pago chega a 12 reais.
De acordo com Mustafá, o de ensino privado é contratado por horas/aulas. “É uma situação precarizada na educação e existe uma desvalorização explícita que precisa ser corrigida”.
A cafeicultora e pintora Valéria Vidigal também usou da palavra para anunciar a Semana do Café em sua fazenda, no município de Barra do Choça, de 12 a 14 de setembro. Disse que esse encontro, realizado há 16 anos, é o maior do Norte e Nordeste. Dentro do evento será realizada a Feira Literária do Café e lembrou os 300 anos da lavoura no Brasil.
O café, segundo Valéria, é a segunda maior bebida consumida no mundo e, aproveitou a ocasião, para informar que o encontro contará com os melhores palestrantes do Brasil. Entre outras atividades, ocorrerá cursos de culinária. Enquanto falava, Valéria chegou a dar uma parada para pedir silêncio por parte da plateia.
Maria Aparecida usou a Tribuna Livre para tratar da questão da fibromialgia, uma doença que provoca muitas dores e outros incômodos nas pessoas. Ela cobrou da administração municipal que disponibilize médicos multidisciplinares, fisioterapeutas e vale transporte integral para os portadores dessa doença.
Aparecida fez críticas veladas ao abandono da saúde no município e disse que os médicos chegam a fazer deboches quando uma pessoa chega no consultório e fala que tem problemas de fibromialogia. “Não temos um espaço para realizarmos nossas reuniões e a Prefeitura não tem nos dado a devida atenção que merecemos. Em Conquista a saúde é um descaso”.
Quem também criticou a administração municipal foi o corretor Antônio, ao apontar que, devido à cobrança de impostos ilegais, fora da realidade do mercado, está ocorrendo uma queda na comercialização de imóveis em Conquista.
“A Prefeitura está fazendo avaliações arbitrárias. Dentro da Secretaria da Fazenda existem pessoas desclassificadas para o trabalho”. Como exemplo, Antônio citou que num imóvel no valor de 300 mil reais a prefeitura faz cobranças em cima de 600 mil. “Isto é anticonstitucional. A administração está agindo na ilegalidade no setor imobiliário e a categoria está indignada com o que está ocorrendo”.
Depois os pronunciamentos de representantes da sociedade, os trabalhos prosseguiram com as falas dos vereadores, como de Bibia que destacou as cinco tribunas livres. Manifestou-se em favor da CPI que irá investigar os descontos que as entidades, órgãos e sindicatos fizeram na folha dos aposentados, chamando-os de ladrões.
Edivaldo Ferreira se referiu à última sessão sobre a denúncia feita pela sua colega Viviane Sampaio sobre o uso de violência contra crianças e adolescentes em casas de acolhimento. Assinalou que a prefeitura vem investigando os fatos e todas ações seguem as diretrizes do estatuto das crianças.
O parlamentar Hermínio Oliveira falou sobre o encontro nacional do café organizado por Valéria Vidigal. Lembrou que o polo cafeeiro em Vitória da Conquista começou na década de 1970 e que a cultura impulsionou o desenvolvimento do município.
O CANGAÇO E O “CORONEL” SÓ MUDARAM DE VESTES
Quando você penetra nos estudos sobre o cangaço no Nordeste vem em sua mente uma visão do faroeste bandoleiro no oeste dos Estados Unidos, ou a guerra entre bandidos milicianos e traficantes nos morros do Rio de Janeiro e outras capitais. Numa análise mais aprofundada, o cangaço e o “coronel” só mudaram de vestes no Brasil dos tempos atuais, com armas mais sofisticadas.
Vejamos o que fala o estudioso no assunto, Luiz Bernardo Pericás em sua obra “Os Cangaceiros – ensaio de interpretação histórica”. “Em realidade, até mesmo a relação das volantes com os fazendeiros era, grande medida, parecida com a dos cangaceiros, guardadas, é claro, as proporções”.
Os poderosos de hoje, políticos, chefes do poder, grandes empresários, os corruptos dos cofres públicos e outras classes abastadas são os “coronéis” de ontem, com vestimentas diferentes. Eles saqueiam povoados, distritos e cidades. Quase sempre estão engravatados e exercem influências no eleitorado sem instrução e até no policiamento.
Pericás destaca que crimes com requintes de crueldade eram largamente praticados pelos “macacos”, como assim chamavam os cangaceiros. Até hoje a polícia mete medo nos cidadãos, tratando-os como bandidos nas abordagens contra negros e os mais pobres.
Muitos aceitam suborno e matam inocentes trabalhadores. Tem gente que tem mais pavor da polícia do que do bandido. No cangaço, o povo estava mais do lado dos cangaceiros, considerando-os como heróis justiceiros, se bem que de forma distorcida.
O autor diz mais ainda que, naquela época (meados dos séculos XIX até as primeiras décadas do XX), pequenos donos de terra eram expulsos de suas propriedades e tinham suas fazendas desapropriadas à força por “coronéis” poderosos, que se apoiavam nas armas oficiais da polícia que, muitas vezes, se tornavam amigos e compadres dos caudilhos rurais”.
Até hoje temos os grileiros de terras, principalmente no Norte e Nordeste, resultando em matanças de líderes que defendem os mais fracos. Nunca se fez uma reforma agrária na história do Brasil e a briga por terras é constante, com a impunidade dos criminosos, que recebem até a cobertura da Justiça que vende sentenças.
O escritor vai além, “de que a influência política dos “coronéis” ajudava na promoção de tenentes e capitães, dentro da corporação e no acobertamento de suas atividades ilícitas. Havia aí, de modo claro, uma relação de promiscuidade entre o poder público e o privado. Uma troca de favores”.
Essa promiscuidade continua a existir, sobretudo entre os políticos e chefetes, como o termo de “toma lá, dá cá”. Ainda existe o Quem Indica, comumente apelidado pela sigla QI.Quem quiser pode utilizar a palavra “pistolão”, que vem de pistola.
Naqueles tempos, quem não quisesse participar desse “arranjo” estaria fadado ao fracasso – assinala Luiz Pericás, que cita o caso do tenente-coronel Alberto Lopes, responsável pelas volantes baianas, em 1930. Dentre as imposições para assumir o cargo, exigiu que os chefes políticos locais não interferissem nas operações militares organizadas e lideradas por ele, de nenhum modo.
Essa exigência foi fatal para o tenente. Perdeu a vida numa encruzilhada pelas mãos de um chefe regional, justamente por não querer a ingerência dos “coronéis” em suas decisões. “Era comum, portanto, que um sargento, cabo ou oficial, comandando uma diligência de caça a cangaceiros (bandidos), desistisse da missão, por causa de inúmeros entraves antepostos pelos “coronéis” e chefes políticos regionais.
“Em períodos próximos das eleições, por exemplo, esses homens poderosos podiam espalhar boatos e fazer intrigas contra determinados oficiais das volantes que, porventura, estivessem criando “problemas”. Difamações eram frequentemente difundidas com intuito de retirar de suas áreas de influência, certos comandantes considerados inconvenientes. Quando o oficial era transferido, a relação entre “coronéis” e bandidos poderia continuar sem empecilhos”.
Boatos hoje montados por políticos poderosos levam o nome bonito inglês de “fake news”, ou falsas notícias para se ganhar um pleito e derrubar o adversário oposto. No mundo do crime e do tráfico, ainda perpetua a relação promíscua entre políticos inescrupulosos e bandidos, naquele tempo, cangaceiros do cangaço.
O soldo das tropas volantes daquela época era, em geral, mais baixo do que ganhava a média dos cangaceiros bandidos. Traficante hoje pode até ter vida curta, mas ganha bem mais que um soldado e até um oficial, quando ele é sério e honesto.
A corrupção e a desonestidade estavam presentes nas corporações. Uma das formas do soldado ou oficial completar seu salário era roubar os pertences dos cangaceiros após os combates. Não são todos, mas muitos policiais usam dessa prática em abordagens e apreensões ilícitas.
O “CANGAÇO E SUAS ORIGENS” ABRIU OS TRABALHOS DO SARAU A ESTRADA
Em nova casa e com a participação de cerca de 40 pessoas entre artistas, professores, jovens estudantes, novos convidados e interessados pela cultura, o tema “Cangaço e suas Origens” abriu os trabalhos do Sarau A Estrada. Foi mais uma noite memorável onde todos se sentiram à vontade para expressar seus pensamentos e ideias.
O evento foi realizado no Espaço Cultural do mesmo nome, na Avenida Sérgio Vieira de Melo, no último sábado (dia 23/08/2025), num clima de muita confraternização e troca de conhecimento que sempre norteou o sarau nesses 15 anos de existência.
Sob a organização da comissão formada por Cleu Flor, Alex Baducha, Dal Farias e Eduardo Moraes, o cantor, compositor, músico e poeta Dorinho Chaves abriu as cantorias com melodias relacionadas ao assunto, intercaladas com a declamação de poemas, em sua grande maioria autorais, e contação de causos.
Foi uma noite de violada também com Manno Di Souza, Baducha, Vamberto e outros artistas que soltaram suas vozes no ritmo da música popular brasileira, sobretudo nordestinas. Foi uma noite reservada para o nosso Nordeste, rico em tradições e mistérios.
Num ambiente de descontração e amizade, a cultura foi o ponto central das discussões na troca de ideias durante o sarau que varou madrugada a dentro, depois de um certo tempo parado devido a mudança do seu espaço.
Apesar de ainda adolescente, o sarau colaborativo, onde os participantes contribuem com petiscos e bebidas, sem contar com um fundo criado para sua manutenção, tem vida longa e percorreu obstáculos para sobreviver.
Durante esse período (começou como Vinho Vinil), o sarau já produziu uma série de trabalhos, como CDs, DVDs, vídeos de textos poéticos, apresentação em público no Teatro Carlos Jheovah e foi homenageado com o troféu Glauber Rocha, indicação do Conselho Municipal de Cultura, com entrega solene pela Câmara de Vereadores.
Em sua nova etapa, agora está sendo registrado oficialmente em cartório como entidade de direito, com condições de criar parcerias com outros órgãos públicos e privados visando ampliar seus horizontes.
Não se trata de uma festa cultural fechada, tanto que o sarau está com o propósito de abrir suas portas para estudantes de escolas para engajá-los no universo da cultura como atores de debates diversos. O mais longevo de Vitória da Conquista, ao longo desses anos, o Sarau a Estrada vem fazendo cultura e marcando sua presença na sociedade.
Como carro-chefe, sempre abrimos os trabalhos com o tema nas áreas da cultura, da educação, social e também da política, tanto que não seja de cunho partidário. Já discutimos sobre literatura, história da música brasileira, os movimentos de 1968, Graciliano Ramos, Castro Alves, Escravidão, cinema, império romano, a civilização dos sumérios, a península ibérica, forró, escritores nordestinos e tantos outros.
“O CANGAÇO E SUAS ORIGENS”
Dessa vez, colocamos na mesa a discussão sobre “O Cangaço e suas Origens”, assunto este desenvolvido pelo jornalista e escritor Jeremias Macário. Existe uma vasta literatura sobre esse fenômeno que nasceu no Nordeste miserável a partir de meados do século XIX, como “Os Cangaceiros”, do acadêmico Luiz Bernardo Pericás, “O Cangaceiro, o Homem, o Mito”, de Sérgio Augusto de Souza Dantas, “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello, “Lampião, Senhor do Sertão”, de Élise Grunspan-Jasmin, “O Mundo Estranho dos Cangaceiros”, de Estácio de Lima, dentre tantos outros.
Na introdução, Macário deu uma visão geral sobre o Nordeste do meado do século XIX, quando nasceu o movimento do cangaço, e primeiras décadas do século XX, destacando os aspectos sociais, econômicos e político da época.
Era uma região pobre e bem mais miserável onde era dominada pelos coronéis, senhores de engenhos, fazendeiros e políticos poderosos. Era uma terra de ninguém onde a justiça e a lei eram as armas. Quem tinha mais posses e dinheiro mandava.
Em resumo, o cangaço nasceu daquele sistema cruel onde o homem pobre era escravo do seu patrão, espoliado como se fosse uma mercadoria qualquer. Por vingança de assassinato de um familiar, revolta das condições de miséria, falta de justiça aos menos favorecidos, brigas por terras, a opção era o cangaço, que vem de canga de carros-de- bois, utensílios velhos e apetrechos.
Com o tempo, o cangaço tornou-se uma espécie de empreendimento para seus líderes, como Antônio Silvino (1897-1914), Sinhô Pereira, Antônio Brilhante, Lampião, Corisco, José Bahiano e tantos outros, que se aliavam aos coronéis amigos, políticos, comerciantes ricos e poderosos para praticar a vindita contra opositores e realizar seus saques em povoados e cidades do Nordeste.
Heróis, bandidos ou justiceiros? Estavam mais para bandidos marginais, mas não gostavam de assim serem chamados. Na falta da justiça, faziam justiça ao seu modo, protegendo uns e matando outros. No entanto, mesmo diante de tantas perversidades, o povo miserável e ignorante tinha fascínio pelos cangaceiros que percorriam vários estados nordestinos e eram perseguidos pelas milícias ou volantes, ainda mais violentos com a população.
Quando se fala em cangaço, as pessoas logo lembram de Lampião, o mais estudado e pesquisado pelos escritores – disse Jeremias, ao acrescentar que ele foi muito mistificado e divulgado pela imprensa, como se tivesse sido o único governador do sertão.
Existiram outros que marcaram época, como o próprio Antônio Silvino, antecessor de Lampião, talvez mais cruel que, ferido de morte pelas volantes, se entregou em 1914 e ficou preso por mais de 20 anos na Casa de Detenção de Recife. Morreu num casebre de Campina Grande em desgraça.
Antônio Silvino serviu de inspiração a Lampião que brincava de cangaceiro quando ainda era menino e se tornou o símbolo maior do cangaço, que teve seu auge na primeira década dos anos 1900 e terminou em 1940, após a morte de Virgulino Ferreira da Silva, em 1938, na Gruta do Angico, em Sergipe.
Os cangaceiros detestavam os soldados, chamados por eles de “macacos”, mas em seus grupos mantinham regimes parecidos. Descreve o estudioso Luiz Bernardo Pericás, em sua obra “Os Cangaceiros”, que o “homem” constituiu vários locais de “recrutamento”, entre os quais a fazenda Paus Pretos, do “coronel” Petrolino, para receber com segurança os foragidos e perseguidos da polícia. A fazenda Três Barras foi transformada em “escola de guerra” e campo de treinamento militar.
Era comum, segundo Pericás, o uso dos nomes de guerra por diferentes cangaceiros. Para confundir a polícia e homenagear os marginais tombados em combate havia dois cangaceiros com o nome Esperança; três Sabiás; quatro Beija-Flor; dois Pitombeiras; três Asa Branca; dois Cocadas; Três Pai Velho; dois Moita Braba; três Marceca; quatro Ponto Fino, e assim por diante.
No período lampiônico, os cangaceiros desenvolveram um sistema de alarme parecido com o utilizado por Lucas de Feira, o “demônio negro”, na primeira metade do século XIX, na Bahia. Na época, Lucas montava uma rede feita de cipó com um chocalho na ponta, próxima do seu esconderijo. Servia como aviso de aproximação de inimigos.
Lampião, que aperfeiçoou o cangaço, começou a dividir seu bando em “subgrupos”, em “pelotões” semiindependentes, que agiam por conta própria, mas que se uniam ao núcleo principal quando eram requisitados. Chegou a possuir de seis a dez falanges de criminosos.
Para esconder as marcas de pegadas, os cangaceiros sempre andavam em filas indianas, com Lampião sempre à frente. Em períodos de chuva, andavam sobre pedras, dentro de riachos ou pulavam de um lado para o outro nos caminhos de terra seca. Em alguns momentos, eles usavam alpercatas “reviradas”, com o calcanhar em posição contrária. Eram verdadeiros curupiras. Essa tática havia sido utilizada por João de Souza Calango, no final do século XIX.
Suas indumentárias se assemelhavam aos dos vaqueiros, com trajes mais elaborados, que mantinham sua funcionalidade militar, mas se destacavam pela quantidade de ornamentos, como medalhas e moedas. O chapéu de couro já era usado em épocas anteriores. Duas cartucheiras se cruzavam no peito dos salteadores, levando cerca de 129 balas de fuzil. Carregavam um revólver ou pistola, punhais e dois a quatro bornais. O peso completo das roupas, do dinheiro roubado e dos equipamentos em geral chegavam a cerca de 30 quilos. As armas eram modernas, fabricadas nos Estados Unidos, na Alemanha e na Bélgica.
De acordo com Pericás, um dos motivos para a longevidade da “boa” recordação dos cangaceiros seria sua contraposição às volantes dos governos que praticavam roubos, espancamentos e assassinatos como os cangaceiros. Como transgrediam as leis, ficavam com uma aparência negativa perante às comunidades sertanejas. A população via nos cangaceiros o oposto das volantes, aqueles que lutavam pela ordem.
Dos amigos de infância de Virgulino, os meninos que brincavam de guerrilha, alguns o seguiram e outros se tornaram adversários. Uns viraram “bandidos” e outros “macacos”. O mais ferrenho inimigo de Lampião foi José Saturnino, companheiro de meninice, no Vale do Pajeú, membro da família Nogueira que, com outras famílias, como os Feraz, se incompatibilizaram com os Ferreiras. Diz um jornalista que se Virgulino fosse chefe de uma volante, os Ferraz, apelidado de Flor (Manuel Flor) formariam um bando de cangaceiros. O clã dos Flor foi um dos mais aguerridos “caçadores” de cangaceiros. José Flor, compadre de Lampião, fazia parte da Força Volante. No sertão haviam dois “partidos, o do cangaço e o da polícia.
Como foi dito acima, o tema é vasto e carece de mais estudos e pesquisas porque existem muitos mitos e lendas que precisam ser esclarecidos no campo da verdade. Alguns escrevem sob o manto dos boatos do povo, sem se aprofundar nas pesquisas investigativas.
É preciso que se entenda que o Nordeste não é somente fome, miséria e cangaço. A região é rica com suas diversidades culturais únicas no Brasil, inclusive com escritores, poetas e artistas de renome nacional e internacional, sem contar sua força na economia, na indústria e no comércio.
Tudo isso e muito mais foi o nosso sarau do último sábado, dia 23 de agosto de 2025, onde muitos ensinaram e também aprenderam na troca do saber. Debates, cantorias, declamação de poemas, acompanhados de comidas, umas geladas e vinho, nos levaram por uma viagem ao mundo mágico da cultura.
NAS DIVERSIDADES DAS ESTRADAS
A Bahia é um estado nordestino que cabe dentro da França e é maior do que muitos outros países, com suas diversidades culturais, de clima e solo, na maior parte semiárido, mas temos outros biomas como o cerrado, a Mata Atlântica, a ciliar, de cipó e dentro dela a bela Chapada Diamantina.
Sair de Vitória da Conquista, beirando Minas Gerais, cortando estradas até Juazeiro, pouco mais de 800 quilômetros, no norte da Bahia, divisa com Pernambuco, é conhecer essas diversidades e gente diferente.
Atravessar a Chapada, a partir de Ituaçu, com sua Gruta da Mangabeira, passando por Barra da Estiva, Mucugê, do Cemitério Bizantino, Andaraí e Rui Barbosa é entrar em terras estrangeiras e o mesmo que fazer uma desintoxicação mental.
Depois você passa por Baixa Grande, Mairí, Várzea da Roça, São José do Jacuípe, Capim Grosso, Senhor do Bonfim e em Juazeiro você toma a benção ao “Velho Chico, ou rio Opará, rio-mar em tupi-guarani. Nele se faz o descarrego de banho em suas águas, como diz o meu amigo professor Itamar Aguiar.
O mais cruel nessas estradas para quem vai de carro próprio é aturar as centenas de quebra-molas. Em alguns deles passei no pulo do gato. Cada povoado tem dois ou três lhe esperando e muitos sem a sinalização. É só construir uma casa às margens da estrada e lá vem o quebra-mola. Se fosse contar daria para mais de 300.
O nosso sertão está seco com aquela paisagem cinzenta onde só se ver os engaços e bagaços das árvores, com exceção do verde do mandacaru, o nosso símbolo de resistência que representa a coragem do homem nordestino.
Em alguns locais só choveu no último dezembro e a água está escassa. O mais encantador dessa paisagem árida de chão estorricado é que, quando batem as chuvas, de repente, em questão dias, tudo fica florido, dando vida à fauna e à flora, com sua exuberância e fartura que não se tem em outro lugar.
No retorno você vem cortando outras estradas e cidades, como Antônio Gonçalves, Pindobaçu, Saúde, Caem, Jacobina, Miguel Calmon, Piritiba e Mundo Nova, conversando e assuntando o comportamento das pessoas.
É uma viagem para reaver parentes e velhos amigos, mas também para contar e ouvir causos e estórias daquele povo simples, bem diferente da capital ou dos grandes centros urbanos, metidos a bestas e “civilizados”.
Onde se chega é bem recebido, se come e se dá boas gargalhadas que espantam os problemas do dia a dia. Vi um veículo tipo lata velha rebocando uma caminhonete nova, um motoqueiro puxando um cavalo pelo cabresto e um velho fazendo malabarismos.
Em Piritiba, onde me deu régua e compasso, conheci um poeta de 99 anos e declamamos alguns versos que falam do sertão. O município elegeu a primeira prefeita da sua história, desde a sua emancipação.
Nas prefeituras, ainda persiste o velho assistencialismo. Numa delas, um bocado de gente na porta, cada um com seu pedido, um mais esquisito que outro, para o prefeito ou a prefeita.
Conversa vai e conversa vem, uma senhora estava com um bilhete em sua mão onde pedia uma cama porque a sua havia quebrado. O pessoal que estava na fila fez aquela gozação e ela também caiu na risada.
É isso aí, cortando estradas você observa muitas coisas interessantes e também fica mais próximo da pobreza, do eleitor que sempre está sendo enganado pelas promessas de dias melhores que nunca chegam.
UM PROJETO ARROJADO EM MAÇAROCA
Tudo começou há anos num velho barracão de bode assado com farofa e uma rede para atender caminhoneiros e outros viajantes. Depois veio outro local chamado de “Folha Seca”, em homenagem a canhoteiro, do Bahia, com maior estrutura e cara de uma boa churrascaria, não somente de bode.
Ao lado, um posto de gasolina e aquele pequeno empreendedor, de nome Rosenberg Macário, “Seu Rose”, que um dia sonhou em comprar o estabelecimento, transita entre os passantes trocando sempre um dedo de prosa e apertando cada mão. “Não é fácil tocar tudo isso, lidar com gente, mas devagar chegamos lá”.
Tudo isso no distrito de Maçaroca, de pessoas humildes, em pleno sertão catingueiro nordestino baiano, distante cerca de 60 quilômetros de Juazeiro. O movimento foi crescendo e o sonho se concretizando. Adquiriu o posto e seu negócio tomou outras dimensões, com lojas artesanais, bebidas, confecções e lanchonetes.
Foi mantida a churrascaria carro-chefe que lhe deu sorte, com um reforçado café da manhã de fazer inveja. A comida bem preparada do cuscuz, aipim, carne assada, ovos e outros ingredientes é forte e dá sustança, deixando o caminhoneiro abastecido durante todo dia no volante da estrada.
Nem tudo estava concluído para o arrojado empresário Rosenberg com sua visão futurística que muitos o chamavam de doido e achavam que era jogar dinheiro fora. Para muitos, ele ia cair na falência total, como o velho posto de gasolina que entrou em decadência várias vezes nas mãos de outros donos.
O segredo é não ter medo e investir com coragem e certeza que lá na frente tudo vai dar certo. Aos poucos, “Seu Rose”, com seu jeito simples de catingueiro de se vestir e se apresentar, começou a montar uma estrutura de pousadas, chalés, áreas de lazer, placas solares, parques infantis, pequenos jardins floridos, criação de aves, plantações de árvores, flores e outras obras.
Com tudo isso, surgiu o mais pesado que foi a construção de um centro de treinamento de futebol com gramado oficial sintético, hoje requisitado por vários times quando vão jogar em Juazeiro. Ao lado um campo soçaite, área para jogar vôlei e uma academia de treinamento com equipamentos de primeira linha.
Quem passa e conhece aquela estrutura ao lado do posto, em pleno sertão árido nordestino onde cruzam bodes na movimentada BR-324 fica encantado e não o chamam mais de “maluco”, mas um visionário que deu vida e força ao pequeno distrito e emprega hoje cerca de 70 pessoas.
Quando chego lá, o meu amigo-primo irmão Rosenberg faz questão de mostrar tudo em detalhes, com aquele prazer de ter feito uma obra em cada canto daquela área de mais de cinco hectares onde antes era só agreste e hoje já está sendo um ponto de turismo e lazer.
Recentemente adquiriu dois pôneis com charretes para proporcionar lazer aos seus hóspedes e demais pessoas que visitam seu projeto, único naquelas redondezas nos confins do norte da Bahia. “Ainda tenho muito coisa por fazer, como uma lagoa nessa área” e aponta para outro lugar onde será mais um de seus sonhos a ser realizado.
Ao lado da pista berram o bode e a cabra, a rapaziada bate seu baba no campo no final de tarde, o pátio está cheio de caminhões, gente de todas culturas se cruzam e proseiam e até cantores de bandas de Salvador, Recife e de outras capitais do Norte e Nordeste têm no Centro de Treinamento e nos chalés seus pontos de apoio para apresentar seus shows em Juazeiro, Petrolina e demais cidades da região.