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:: 11/jun/2025 . 0:13

NOS TEMPOS DA “MARIA FUMAÇA”

Achava bonito ver aquele trem “Maria Fumaça” parado na estação para o embarque e o desembarque dos passageiros com suas missangas e depois o maquinista da lenha dava dois ou três apitos dando sinal que era o momento da partida. As pessoas se apressavam e cada um ocupava seu lugar. Ás vezes lotava e esvaziava em outro ponto.

A molecada pongava no último vagão até um acerto ponto quando começava a acelerar, e o trem ia serpenteando como cobra entre as curvas das serras, cruzando os pontilhões, deslizando nas planícies, subindo e descendo ladeiras no som do “potoc-potoc, potoc-potoc”, ou no ritmo do “café com pão, bolacha não”.

Quando menino era o meio de transporte que mais me fascinava e até hoje guardo marcantes lembranças das viagens de Piritiba para Senhor do Bonfim, de lá para Salvador, para Rui Barbosa, Itaberaba e Iaçu.

Passava pelas cidades de Miguel Calmon, Jacobina, Caem, Pindobaçu, Saúde, Antônio Gonçalves e alguns distritos. As estações tinham arquiteturas semelhantes. Recordo das aventuras dos namoros adolescentes, dos casos e causos de passageiros e do balançar pra lá e pra cá, isto há mais de 60 anos.

Como era gostoso viajar à noite e apreciar da janela o luar a pratear o sertão, e nas estações das cidades e povoados ver aquela gente gritando para vender doces, mingaus, pamonhas, canjica, milho assado e cozido, bolos de aipim e frutas. Era aquela algazarra e todo mundo ganhava um dinheirinho.

Nos vagões de cargas iam as bruacas dos feirantes, ferros velhos, mercadorias diversas, cereais e até móveis de mudanças. Vendedores e ambulantes pegavam as feiras em diversas cidades e iam mascateado por aquele mundão entre Senhor do Bomfim a Iaçu, cerca de uns 700 a 800 quilômetros. Aquela gente praticamente morava no trem, indo e voltando para realizar seus negócios.

Lembro do Tio Quincas, um mão de vaca sovina daqueles que fazia questão de um centavo de tostão, casado com a irmã da minha mãe. Ele saia de Bonfim para Piritiba para comercializar arreios, cangalhas, reios, chapéus, celas, chocalhos, tacas, brides de cavalos e outras bugigangas.

Era gago e num saquinho de pano levava as farofas de frango, rapadura e carne seca que a tia “Ditinha” fazia. Quando acontecia viajar com ele, era tão casquinha que nem pagava um doce para mim, mal me dava um punhado de farinha. Vez ou outra se entocava na cabine do sanitário para contar o dinheiro da feira enrolado num saquinho. Nem dormia direito com medo de alguém lhe roubar.

Não podia muito vacilar porque aparecia uns ladrões e vigaristas durante a viagem para afanar os pobres passageiros, a maioria de candangos e até retirantes das secas que iam para as terras das Minas Gerais na divisa de Urandi com Espinosa. E lá ia o trem “Groteiro” no seu tic-tac ou toc-toc marrento, soltando sua inconfundível fumaça, daí o nome de “Maria Fumaça” porque era movido a lenha.

– Essa cachorra não para de latir! Deve estar com fome ou alguém bateu nela! Gritou de lá da estação da cidade de Caem um senhor em tom zangado porque uma mulher debochava do lugar e ficava rosnando “caem, caem, caem”, imitando o latido de cachorro. Aliás, muita gente fazia isso em tom de gozação quando passava em Caem. Até eu me arriscava a latir. Era só zoeira!

Com aquele fogo todo de moço novo transpirando sexo, gostava das paqueras e vez ou outra agarrava umas namoradinhas. Tascava aqueles beijos calientes. Nunca me esqueci de uma morena linda de nome Laura procedente de Cachoeira.

Depois de uma troca de olhares apaixonantes fomos para o final de um dos vagões. Nos travamos nos beijos e no mexe-mexe, mas na hora de bem-bom, o trem descarrilhou. Com medo de morrer, me desvencilhei da menina e cometi o desatino de pular fora dos trilhos. Por sorte, não me arrebentei todo numa ribanceira.

Ficamos nos correspondendo com cartas de amor e depois de anos nos encontramos em Salvador, mas, como estudante pobre “lascado”, não possuía condições financeiras para continuar o namoro. Nem tinha grana para dar uma saída, tomarmos umas geladas e fazermos uns chamegos. Tempos difíceis!

Certa feita, como estava sem grana, entrei no trem sem comprar a passagem. Ficava de olho no guarda sisudo com aquele quepe picotando os bilhetes. Ocorre que ele me pegou no flagra e aí o bicho pegou feio. O cara me levou para o vagão dele e queria me deixar na próxima estação antes de chegar em Piritiba, sem minha malinha de couro.

– Quebra um galho aí, seu guarda! Sou pobre estudante e estou sem dinheiro nenhum, nem para comprar um engano para o estômago.

– Não sou nenhum macaco, seu moleque, para sair por aí quebrando galho – respondeu o guarda. Comecei a chorar. Ele era um durão, mas compadeceu da minha situação, mesmo me deixando de castigo em sua cabine até chegar em Piritiba. Passou o tempo todo me dando aquele sabão e que nunca mais fizesse aquela molequeira.

Bem antes de viajar, quando fazia o primário em Piritiba, praticamente não perdia uma chegada de trem na estação. Sempre estava atrasado e, enquanto esperava, ficava encantado só em olhar aquele ferroviário de farda no toc-toc do telégrafo.

Ficava invocado com aqueles sinais no dedo da mão. Quando o “bicho” apitava era só alegria. Ia mais para pegar as malas dos passageiros, ganhar uns trocados para comprar gudes e gibis. Assim virei carregador de malas.

É, meus amigos, mas, infelizmente, tudo acabou quando as companhias e o governo federal resolveram parar com os trens de passageiros. Todo patrimônio se transformou em destroços de ferros velhos. O tempo se encarregou de destruir as estações. Só restaram as saudades.

O sucateamento começou no Governo de Getúlio Vargas, no início dos anos 50, e prosseguiu com Juscelino Kubitscheck quando decidiram dar prioridade às rodovias e atender as demandas das montadoras de automóveis. É o Brasil com seus projetos tortos jogando nosso dinheiro no ralo.

Aqui na Bahia muitas linhas foram desativadas, como de Alcobaça a Nanuque, em Minas Gerais, de Salvador a Contendas do Sincorá, passando por Cachoeira e São Felix, de Salvador para Senhor do Bomfim e de lá para Urandi, sem falar a Nazaré-Jequié, construída em 1927.

O nome trem tem sua origem do francês “trainer”, de puxar ou arrastar; do latim trahere, train, conjunto de vagões, carruagens puxadas por vagões ou por animais. Em Portugal é câmbio.

O primeiro trem surgiu na Inglaterra, em 1804, como locomotiva e, nos Estados Unidos, em 1827, onde essas máquinas desbravaram o Oeste e chegaram a ser recebidas a bala pelos fazendeiros que reagiam ao progresso e não aceitavam cortar suas terras. Os filmes de faroeste contam muito dessa história.

No Brasil a primeira linha de 14, 5 quilômetros foi construída em 30 de abril de 1854 entre Porto de Mauá e Fragoso, no Rio de Janeiro, por iniciativa do empresário Irineu Evangelista de Souza, conhecido como Barão de Mauá. Historiadores também falam da ferrovia Mauá – Petrópolis ao Porto de Estrela, em 1952, na Baia de Guanabara, com o nome de Baroneza, autorizada por D. Pedro II.





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