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:: 5/jun/2025 . 0:38

O MATUTO E O VALENTE

– Eles vivem a brigar igual a cachorro e gato, mas não se desgrudam um do outro – comentavam os moleques da rua que temiam os parceiros, um matuto e o outro visto como valente por nome de Jairo.

– Brigam entre eles, ficam sem se falar por certo tempo, mas ninguém se atreve a enfrentar os dois. Um toma as dores do outro na hora do “pega pra capar”. Eu estou fora – dizia o colega de conversa em tom de medo.

Por volta do final da década de 50, com uns 11 ou 12 anos, sai da roça a mando do meu pai para morar em Piritiba e fazer o primário. Antes disso, passei pelas mãos de várias professoras leigas – memorável recordação da professora Nina – para aprender o bê-á-bá, mas continuava um analfabeto. Fazia uns garranchos nos papéis e lia alguma coisa com dificuldade.

Era um tímido matuto roceiro magricela que foi residir na cidadezinha recém emancipada na casa do casal Nemézio e Maricas. Além de seus dois filhos, eles criavam um rapazola negro pouco mais velho do que eu, que trabalhava como escravo. Só tinha direito à comida e a uns trocados.

Seu nome era Jairo e me aliei a esta família sendo o sexto integrante numa residência um tanto apertada. Meu objetivo era estudar e, para tanto, meu pai pagava as despesas e ainda ajudava com quilos de farinha e feijão produzidos em sua roça.

Eu era um estranho do ninho e, como matuto desajeitado e desengonçado, de roupas roceiras (calça curta) comecei a ser vítima de apelidos e deboches (bullying) na escola e nas ruas entre os outros meninos da cidade.

Não só sofria bullying (na época ninguém sabia o que era isso) como apanhava como saco de pancada. Jairo era um negro magro que tinha um soco de direita, ou de esquerda, não me lembro bem, que derrubava um armário. Ninguém se engraçava com ele porque só recebia pancada.

O matuto padecia dia e noite nas mãos daqueles moleques e ninguém o temia. Era só chamar para a briga e ele saia com o rabo por debaixo das pernas como cão sarnento, Jairo não, este era o valente respeitado, pau para toda obra.

De tanto apanhar e ser ridicularizado, um dia o matuto deu um estalo maluco na cuca, ou uma sacada, e colocou na cabeça que tinha que lutar no braço com o Jairo, o mais valente. Sabia que ia tomar porrada, mas já estava calejado mesmo! Não importava a surra. Era por uma boa causa.

Numa roda de moleques, nos jogos de gude e pinhão – a intenção era que que muitos fossem testemunhas da peleja – sem motivos, o matuto começou a provocar Jairo com palavrões, inclusive de ladrão e outros termos politicamente incorreto, para os tempos atuais.

Como morava comigo na mesma casa, a princípio Jairo evitou enfrentar o matuto. A molecada não acreditava no que estava vendo. Ninguém ousava brigar com ele porque sabia que seu punho era certeiro.

Como Jairo se fez de covarde, o matuto caiu dentro e logo recebeu uma lapada que o deixou no chão. O matuto levantou, sacudiu a poeira e deu nova investida. Até que deu uns tapas aqui e acolá, mas o matuto apanhou feio. Caia e levantava.

Para não bater mais e sangrar de morte o matuto, Jairo saiu e deixou a turma. Apanhou, mas foi o dia “D” da libertação dos bullying contra o maturo.

Em pouco tempo a notícia correu nas ruas de que o matuto tinha lutado contra Jairo. A partir dali ele passou a ser o segundo mais valente da cidade. Impôs respeito e até dava ordens para os outros.

Acabaram-se as sacanagens contra ele. Se um grupo adversário de uma rua resolvesse provocar o matuto, era só Jairo encostar que todo mundo debandava. Se o matuto entrasse num entrevero, Jairo tomava as dores, e vice-versa.

Vez ou outra os dois brigavam e ficavam dias sem se falarem. O mais curioso era que ambos dormiam no mesmo quarto, e um não dirigia a palavra ao outro. Passamos a ser “inimigos”, mas amigos porque um defendia o outro nas confusões.

Em jumentos com garotes, éramos agueiros (vendedores de água), lenhadores e fazíamos outros serviços para Nemézio. Naquela época não tinha energia elétrica em Piritiba, água encanada e a maioria dos fogões era a lenha. Todo lucro ficava para o dono dos jegues.

Foi assim que o matuto encontrou uma saída para se livrar das humilhações dos atrevidos e riquinhos metidos a bestas da cidade. Quando o matuto terminou o primário foi ser sacristão de padre em Mundo Novo e depois estudar no seminário de Amargosa.

Jairo, o grande amigo valente, já era um rapaz criado, mas não dava para continuar sendo escravo daquele casal que tanto lhe explorou e não lhe deu estudos e bens.

Pobre e sem quase nada, resolveu pegar um pau-de-arara para São Paulo. Tempos depois soube que se meteu em bandidagem na capital paulista e foi assassinado, não se sabe se pela polícia, por algum comparsa traidor ou em alguma briga, pois o Jairo sempre foi “pavio curto”.

 





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