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Não consigo entender até hoje como shows musicais de cultura de massa passaram a ser enquadrados como festivais que na década de 60, mesmo sob o encalço feroz da ditadura civil-militar, revelaram grandes artistas de renome nacional e internacional, cujas canções se tornaram eternas. Foi uma época de ouro da música popular brasileira em plena efervescência cultural, com direito a torcidas aguerridas, vais e aplausos como se estivessem em jogo seus clubes num estádio de futebol.

Os festivais da MPB nasceram em 1960 com as TVs Record, Excelsior e o Globo em parceria com o Estado da Guanabara (os FICs) com formato de concursos entre intérpretes, cantores, letristas e compositores sob o olhar competente de um júri que indicava as melhores obras das centenas e milhares que se inscreviam no certame. Foram 12 anos, de 1960 a 1972, que geraram inesquecíveis canções de críticas, protestos e sobre a realidade da vida e da sociedade.

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O mundo dos festivais foi documentado em filmes, prosas e livros. Muitos dos seus personagens criadores foram presos, torturados e exilados pela fúria opressora do regime ditatorial. É um capítulo da nossa história que deve ser conhecido pelas gerações de jovens que hoje são triturados pela cultura de massa nominada de forma deturpada de festivais.

Mesmo sabendo que serei contestado em minha posição, atrevo-me a falar um pouco sobre os festivais da MPB e os clássicos musicais que marcaram e ainda marcam nossas vidas. Estas relíquias preciosas foram registradas em velhos vinis chamados de “bolachões” que os guardo e conservo até hoje em meu espaço cultural com muito carinho.

As músicas vencedoras dos festivais marcaram o sucesso nas carreiras de grandes poetas e artistas brasileiros como Geraldo Vandré (o Bob Dylan nordestino), Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Jobim, Venicius de Morais, Baden Powell, Edu Lobo, Marcos Valle e tantos outros, cujas canções até hoje arrastam públicos, inclusive de jovens.

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O primeiro evento teve a iniciativa da TV Record, em 1960, coordenado por Theófilo de Barros, sendo vencedora a música Pescador, de Newton Mendonça. Os festivais se tornaram também espaço de promoção para Jair Rodrigues, Nara Leão, Paulinho da Viola, Francis Hime, Adilson Godoy, Elis Regina, Gutemberg Guarabyra, Cynara, Cybele, Gal Costa e um monte de sucessos nos anos seguintes.

Com criação de Solano Ribeiro, inspirado no Festival de San Remo (Itália), a TV Excelsior fez o seu 1º Festival Nacional da MPB, em março de 1965, no Cine Astória (Rio de Janeiro) e contou com a música Sonho de Carnaval (Chico Buarque – 20 anos) interpretada por Geraldo Vandré que também concorreu com Hora de Lutar. Estes dois titãs da música popular foram os reis dos festivais da época.

Neste Festival venceu Arrastão (Edu Lobo e Venicius) na voz de Elis Regina. O 2º lugar ficou para Valsa do Amor Que Não Vem (Venicius e Baden) na voz de Elizeth Cardoso, e o 3º para Eu Só Queria Ser (Vera Brasil).

O 2º Festival Nacional da Excelsior aconteceu em junho do ano seguinte e Porta Estandarte, de Vandré e Fernando Lona, nas vozes de Airto Moreira e Valeniza da Silva (Tuca) foi a vencedora. O 2º lugar ficou com Inaê, de Maricene Costa e Vera Brasil. Em 3º Chora Céu, de Luiz Roberto e Adylson Godoy. Gil e Torquato Neto concorreram com Rancho da Rosa Encarnada.

No mesmo ano de 1966 foi também realizado o 2º Festival Nacional da TV Record e deu na cabeça empate técnico entre Disparada (Geraldo e Theo Barros), na voz de Jair Rodrigues, e a Banda, de Chico na voz de Nara Leão. De Amor e Paz (Adauto Santos e Luiz Carlos Paraná, na voz de Elza Soares) ficou em 2º lugar. Em terceiro ganhou Canção para Maria, de Paulinho da Viola e José Carlos Capinam, na voz de Jair Rodrigues.

Em 1967 o 3º Festival da Record, um dos mais históricos do Brasil que rendeu até um documentário sobre o assunto, deixou como legado a música Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, em 1º lugar. Ganhou em 2º Domingo no Parque, de Gil, e Roda Viva, de Chico, em 3º lugar, ficando Alegria, Alegria, de Caetano na 4º posição. O evento teve a participação de Vandré com a canção Ventania.

No 4º Festival da Recordo, em 1968, São Paulo Meu Amor, de Tom Zé, ficou em 1º lugar. Em 2º Memórias de Marta Saré, de Edu Lobo e Giafrancesco Guarnieri. Saiu vencedora em 3º lugar, Divino Maravilhoso, de Gil e Caetano na voz de Gal Costa. Vandré participou também com Bonita, em parceria com Hilton Acioli.

OS FESTIVAIS INTERNACIONAIS

Organizado pelo Grupo Globo (Augusto José Marzagão) e Estado da Guanabara, os Festivais Internacionais da Canção tiveram sete edições entre 1966 a 1972 quando foram enfraquecidos interrompidos pela censura da ditadura civil-militar.

No 1º FIC de 66, Saveiros, de Dori Caymmi e Nelson Motta, na voz de Nana Caymmi, foi a música vencedora. O 2º lugar coube a Vandré e Tuca, com Cavaleiro e a 3ª colocada Dia das Rosas, de Luiz Bonfá e Maria Helena Toledo, na voz de Maysa.

O 2º FIC foi em 67 que deu o 1º lugar para Apareceu a Margarida, de Gutemberg Guarabyra. Travessia, de Milton Nascimento e Fernando Brant, foi a 2ª colocada e a 3ª canção vencedora foi Carolina, de Chico, na voz de Cynara e Cybele (Quarteto em Cy).

Numa conversa com Roberto Menescal (um dos precursores da Bossa Nova), em defesa da frente única da MPB, Vandré chegou a insistir que todos tinham de fazer música participante. “Os militares estão prendendo e torturando. A música tem de servir para alertar o povo”. Menescal respondeu que a música não foi feita para alertar coisa nenhuma e quem alerta é corneta de regimento.

No ano dos intensos movimentos estudantis e sociais em protesto contra a ditadura civil-militar, o 3º FIC de 1968 foi o mais polêmico de todos e recebeu 30 mil pessoas no Maracanãzinho. Os generais tentaram coibir letras que fizessem propaganda da guerrilha. Vandré (Caminhando) e César Roldão Vieira, com América, América eram vistos como perigosos.

Mesmo com toda censura e pressão, o júri não se intimidou. Sabiá, de Tom Jobim e Chico, na voz de Cynara e Cybele, uma música difícil de cantar, sagrou-se em 1º lugar, mas recebeu uma tremenda vaia da plateia com direito a tomate no representante da rainha Elizabeth II. Dori Caymmi teve de arrastar Jobim por debaixo do palco com ajuda de um rapaz da TV Globo. “Peguei um fusca deixando mulher e filhos para trás”.

Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando), de Vandré ficou em 2º lugar, mas foi considerada a campeã moral, só que marcou a glória e a ruína do compositor, empurrando-o para um exílio forçado no Chile e depois na Europa (França). Na época, Milôr Fernandes considerou a canção como o hino nacional. “É a nossa Marselhesa”.

Com as vaias e críticas contra Sabiá, Vandré tentou acalmar a multidão dizendo que a vida não se resumia em festivais, elogiando os talentos de Chico e Tom Jobim. Antes do evento, o general Sizino Sarmento advertiu que Caminhando e América, América (César Roldão) não poderiam sair vencedoras. A partir daí, Vandré tornou-se maior inimigo das forças armadas. Um oficial bradou que a música era um achincalhe.

O 3º lugar ficou com Andança, de Edmundo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós, na voz de Beth Carvalho e Golden Boys. Marcos Valle e seu irmão Paulo Sérgio participaram do evento com uma música sobre a passeata dos 100 mil e contra a ditadura. Teve ainda Proibido Proibir, de Caetano, que fez um longo discurso debaixo de vaias quando tentou calar a boca da torcida dizendo “vocês não estão entendendo nada”.

Com o AI-5 e o início dos anos de chumbo, a realização do 4º FIC de 1969 foi cercada por forças militares como forma de impedir a liberdade de expressão. Sem canções de protesto, ganhou em 1º lugar Cantiga para Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, com Evinha (Trio Ternura). Em 2º lugar, Juliana, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. A 3ª colocada foi Minha Marisa, de Fred Falcão Medeiros. Foi o Festival dos nomes de mulheres.

O nível das letras descambou para o ôba-ôba e o 5º FIC, em 1970, teve como vencedora BR-3, de Adolfo Gaspar, na voz de Tony Tornado. No 6º FIC de 1971, Kyrie, de Paulinho Soares e Macedo Silva, na voz de Evinha, foi a campeã. Em 1972 no 7º FIC, Fio Maravilha, de Jorge Benjor, com Maria Alcina ficou em 1º lugar.

A partir de 69/70 a música popular brasileira foi engolida pela cultura de massa com o domínio das gravadoras multinacionais onde os artistas eram rotulados e catalogados conforme o estilo de trabalho de cada um. O lucro passou a ser a bola da vez e quem não se enquadrava no esquema era tido como maldito e colocado à margem do sistema.