“PALAVRAS CRUZADAS”
Uma história real “de algum lugar das selvas da Amazônia” com boas pitadas de ficção e uma linguagem seca e concisa de frases curtas. Assim acontece o desaparecimento de um guerrilheiro do Araguaia na obra “Palavras Cruzadas”, da escritora Guiomar de Grammont.
A realidade romanceada se passa durante o regime militar brasileiro através de documentos e livros como “Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha”, dos autores Tais Morais e Eumano Silva.
Como bem comentou o jornalista e escritor Laurentino Gomes, “o enredo trata da luta da jornalista Sofia em busca do paradeiro do irmão Leonardo desaparecido nas selvas do Araguaia”… Em sua observação sobre os desvios de memória do Brasil, Laurentino diz que, ao contrário de outros países vizinhos, o nosso tem demonstrado enorme dificuldade em esclarecer os casos de tortura, prisões e assassinatos da época da ditadura.
Sobre a questão, ele cita reflexões do filósofo francês Paul Ricoeur de que o esquecimento imposto pela anistia induz a uma espécie de amnésia coletiva que impede a revisão do passado. Destaca que o Brasil é um país que por medo das verdades escondidas no passado tenta cicatrizar à força feridas ainda recentes.
O tema sobre a Guerrilha do Araguaia é impactante e até irracional entre as ambas as partes, mas a autora do livro faz uma narrativa poética e telúrica do local, ao ponto de prender o leitor que termina se adentrando pela selva ao lado dos combatentes.
Ela coloca você para conhecer aquela gente humilde; participar dos treinamentos; e ensina como conviver com a floresta e dela tirar o sustento para sobreviver, principalmente, nas lutas e nas fugas.
O diário do guerrilheiro em fuga se cruza com o da sua amada que ficou grávida na selva no desenrolar da leitura dos relatos da jornalista Sofia que luta desesperadamente para encontrar seu irmão desaparecido. O personagem em fuga ensina como encontrar jabutis depois de uma chuva. Eles aparecem debaixo de um cajueiro. A vida requer perícias, como caçar macacos para fazer uma refeição, sem o cozimento.
Sobre os vaga-lumes, era como se as estrelas descessem para brincar conosco – narra o guerrilheiro, lembrando da sua amada. “Dormi repisando na memória a canção do Guerrilheiro do Araguaia”.
Pela floresta Amazônica você vai entrando em contato com seus moradores, como o jacu, o pé de cupuaçu, os ovos de azulão, o palmito, o açaí, os pés de cacau, o carumbé, o sucuri, a anta, o veado, a nhambu e ainda aprende a fazer picadas nas matas com o facão.
Quando o diário do guerrilheiro se encontra com o da guerrilheira amada, o leitor vai percebendo tratar-se do irmão e cunhada da jornalista Sofia. A procura é desesperada para desvendar a verdadeira linha da história.
A obra é envolvente até o seu final quando Sofia se depara com a verdade e sua família entra em conflito existencial de ter que conviver com a realidade mórbida de não puder fazer o enterro do seu ente querido. O ritual da morte não é consumado.
“Imagino te encontrar vagando no escuro dos metrôs, esfomeado e sem emprego. Sem documentos, em algum país onde será sempre estrangeiro. Errante, com medo de voltar e não encontrar o que deixou. Abro a porta do quarto, uma lufada de vento varre o aposento eternamente arrumado para sua chegada”.
São visões constantes de uma família de um morto desaparecido, como em Antígona, de Sófocles: “Seu irmão jazia insepulto; ela não quis que ele fosse espedaçado pelos cães famintos ou pelas aves carniceiras”, citação da abertura do livro “Palavras Cruzadas”.












