ESCRAVIDÕES
Blog Refletor TAL-Televisión América Latina
De Orlando Senna
Indicado por Itamar Aguiar
Ninguém sabe quando e onde teve início o crime da escravidão, do ser humano roubar a liberdade de outro, transformando-o em uma ferramenta de trabalho ou para qualquer uso (militar e sexual entre eles). Na Antiguidade era um costume considerado normal, uma prática considerada inerente à nossa espécie, um direito. Foi a base da economia de todas as civilizações daquela época, da China, índia, Mesopotâmia, Grécia, Egito e da riqueza e poder do Império Romano. Os antigos hebreus e árabes tinham escravos, mencionados na Bíblia e no Alcorão. Na Idade Média a prática era tida como o único formato econômico capaz de manter o equilíbrio social e os europeus e asiáticos souberam que a escravidão também era praticada, há milênios, pelas tribos da África e da América pré-colombiana.
Essa informação inspirou uma nova modalidade para o grande negócio: a escravidão racial. Antes os escravos eram os nativos de países ou regiões invadidos e dominados por outros povos. Agora não precisava invadir e dominar, era só capturar pessoas. A escravidão racial mostrou-se super vantajosa para os comerciantes europeus de escravos: milhares de chineses e milhões de africanos foram aprisionados e vendidos na Europa e nas Américas (bom negócio também para os comerciantes de escravos da África e da China). A aplicação da escravidão racial com os nativos das Américas, ditos indígenas, não deu muito certo porque eles estavam em seu território e, por isso, sabiam escapar do terrível destino.
Essa situação e essa “legitimidade” da escravidão só foi repensada no século XVIII, a partir do Iluminismo europeu, movimento cultural que buscava a racionalidade individual, a independência de pensamento (“ter coragem para fazer uso da própria razão”, escreveu Kant) e resultou no florescimento de ideias e forças progressistas. Entre elas uma forte militância abolicionista que levou os países europeus a proibir a escravidão.
Esta semana algumas instituições brasileiras celebraram o 127º aniversário da Lei Áurea, a abolição total da escravidão no Brasil assinada pela Princesa Isabel, Regente do Império, em 13 de maio de 1888. Vale a pena celebrar e vale também a pena lembrar que o Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão, sob intensa pressão da Inglaterra para que fizesse isso. Calcula-se em cerca de quatro milhões os escravos trazidos da África para o Brasil. Além da longevidade (quase quatro séculos), outra característica do regime escravocrata brasileiro é que foi abolido pouco a pouco: primeiro a proibição do tráfico, depois a alforria dos filhos das escravas (Ventre Livre), depois a dos escravos sexagenários.
Esse passo a passo ocasionou o surgimento das Casas de Reprodução, de fábricas de escravos: galpões com dezenas de mulheres negras cuja obrigação era engravidar e parir sem parar, sendo “cobertas” a cada dez ou onze meses por escravos saudáveis e fortes, escolhidos a dedo, os garanhões. Cito esse aspecto na tentativa de passar uma ideia do horror daquela sociedade, daquele tempo.
Horror é a deixa para voltar ao nosso tempo. Durante os séculos XIX e XX todos os países proibiram a escravidão, o último foi a Mauritânia, em 1981. Todos menos um: o Sudão. Nesse país africano e islâmico, membro da ONU, da Liga Árabe e da União Africana, continua sendo legal fazer, ter, comprar e vender escravos. É como um enclave cultural da Idade Média no século XXI. Outro aspecto horripilante da atualidade é que a escravidão, embora proibida e coibida, continua existindo na ilegalidade em vários países, principalmente na Ásia e na África mas também em bolsões americanos, como a escravidão rural no Brasil (cerca de 20 mil trabalhadores foram libertados pelas polícias federal e estaduais desde o ano 2000), e europeus, como a escravidão sexual operada na região dos Bálcãs, envolvendo nos últimos anos 140 mil mulheres.
Para terminar, em dezembro do ano passado a ONU informou que cerca de 21 milhões de pessoas “estão sujeitas a formas modernas de escravidão, que atinge principalmente mulheres e crianças”. Às vezes fica difícil, mas é o jeito, concordar com o poeta romano Terêncio, “sou um homem, nada do que é humano me é estranho”. Em latim soa melhor: “homo sum, nihil humani a me alienum puto”.
Por Orlando Senna
Orlando Senna nasceu em Afrânio Peixoto, município de Lençóis Bahia. Jornalista, roteirista, escritor e cineasta, premiado nos festivais de Cannes, Figueira da Foz, Taormina, Pésaro, Havana, Porto Rico, Brasilia, Rio Cine. Entre seus filmes mais conhecidos estão Diamante Bruto e o clássico do cinema brasileiro, Iracema. Foi diretor da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños e do Instituto Dragão do Mar, Secretário Nacional do Audiovisual (2003/2007) e Diretor Geral da Empresa Brasil de Comunicação – TV Brasil (2007/2008). Atualmente e presidente da TAL – Televisão América Latina e membro do Conselho Superior da Fundacion del Nuevo Cine Latinoamericano.
Itamar Pereira de Aguiar nasceu em Iraquara – Bahia; concluiu o Ginásio e Escola Normal em Lençóis, onde foi Diretor de Colégio do 1º e 2º graus (1974/1979); graduado em Filosofia, pela UFBA em 1979; Mestre em 1999 e Doutor em Ciências Sociais – Antropologia – 2007, pela PUC/SP; Pós Doutor em Ciências Sociais – Antropologia – em 2014, pela UNESP campus de Marília – SP. Professor Titula da Universidade Estadual do Sudoeste do Estado da Bahia – UESB; elaborou com outros colegas os projetos e liderou o processo de criação dos cursos de Licenciatura em Filosofia, Cinema e Audiovisual/UESB.