Não adianta muito o orgulho de ter um mar como o da Baia de Todos os Santos com todo seu potencial de recursos naturais se seus habitantes não têm educação para preservá-los. Assim é Salvador que também perdeu sua memória cultural e está, simplesmente, destruindo seu patrimônio histórico, seus monumentos e seu encantamento que já atraiu milhões de turistas estrangeiros e visitantes brasileiros.

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Li na semana passada, num jornal da capital, o comentário do produtor cultural Demitri Ganzelevitch onde desabafa dizendo que o próprio soteropolitano se encarrega de depredar as belezas da terra. Fala de uma cultura perdida e cita azulejos e pedras portuguesas de praças e passeios que foram substituídos por placas de concreto. Na minha visão, nos últimos anos a capital saiu do iluminismo para as trevas.

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Um estudo do Inema (o instituto que cuida do meio ambiente) revela que, em 2016, Salvador só teve duas praias 100% propícias para o banho, e olha que elas estão fora do perímetro urbano. O aeroporto internacional de Salvador que, por desgraça política teve seu nome do “Dois de Julho” retirado, foi classificado como o pior do país.

As areias e as águas das praias estão fétidas e escuras, cheias de coliformes fecais porque os rios das Pedras, Jaguaribe, Paraguai, Camarujipi e outros que passam perto ou cortam a capital estão contaminados e poluídos por esgotos domésticos. Em Salvador, 20% das residências não têm esgotamento sanitário.

Morei 23 anos em Salvador e ainda tive a felicidade de pegar o resto dos bons tempos entre o final da década de 60 ao final dos anos 80. Não se trata de saudosismo, mas de valorização dos bens culturais e naturais. A Rua Chile ainda era um charme com suas boates, cafés, a loja Adamastor, a primeira escada rolante das Americanas e a famosa mulher de roxo. A boate Clock, no Contorno, e o Anjo Azul, no Dois de Julho, eram pontos de encontros de boêmios, artistas, políticos e intelectuais em plena efervescência cultural.

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No Centro Histórico dos seculares casarões, hoje escorados por estacas de madeiras e caiando aos pedações, as noites eram aprazíveis e se andava sossegado no tempo em que Salvador ainda transpirava cultura desde o final dos anos 40 do século passado quando despontava firme no horizonte a Universidade Federal da Bahia. Logo mais, o reitor Edigar Santos fez surgir novas ideias progressistas através dos cursos de artes plásticas, filosofia, teatro e abertura de centros de discussões.

No tempo da Geração Mapa com Glauber Rocha, João Carlos Teixeira Gomes, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Matos, da arquiteta Lina Bardi, do tropicalismo, do cinema novo e de tantos outros acontecimentos e movimentos culturais, Salvador foi ao olimpo das criações artísticas e intelectuais. Hoje Salvador vive a era do já teve Jorge Amado, Caribé, Mário Cravo, Pierre Verger, Juarez Paraíso, Calazans Neto, Roberto Pires, escolas de samba, grandes salas de cinema, bienais e festivais.

Ah, e o carnaval popular das marchinhas, das letras ricas de sentido com sonoridades musicais, dos blocos soltos das mortalhas, das máscaras, dos cantos diversos das canções poéticas dos grandes compositores da MPB e das brincadeiras onde todos participavam com harmonia! Todo esse encanto e magia, nem a ditadura militar conseguiu tirar por completo.

Agora, o que temos é um lixo de carnaval do axé, do pagode, do arrocha, da lambada e de outros gêneros misturados com letras de baixo nível, apelativas e de duplo sentido onde se coloca a mulher como objeto do sexo. Nesta festa dos horrores dos marombados e sarados, o empoderamento da mulher se mede através dos rebolados das bundas e das pernas nuas, e todos tiram os pés do chão com uma simples ordem vinda lá dos trios ensurdecedores.

Só um grupo fatura e o resto não passa de plebe ignara que fica com as migalhas do asfalto apertado do bate cotovelos, empurrões e tapas. Os gringos acham tudo exótico e caem dentro como se estivessem num paraíso da perdição de beijos, apertos e transas sexuais. É o açoite do chicote no lombo de quem mandou dar na capital mais barulhenta do mundo.

Sobre esta indústria carnavalesca da exclusão social e da concentração de renda onde só os mesmos lucram, a banda musical Scambo retratou muito bem a realidade atual da nossa Salvador numa de suas canções: “Festa sacana feita por gente com grana que ganha muita grana/Manipulando a cultura/Muitos artistas aceitam esses senhores pra não/Ficarem longe dos refletores/(…) Não vou tirar meus pés do chão”.

É uma Salvador de belas orlas marítimas, de um traçado singular, de um sincretismo sem igual, de uma mistura de cores, mas que perde dia-a-dia sua memória nas pichações e destruição de seus monumentos e equipamentos. Os sanitários públicos são barbaramente quebrados por vândalos que passam levando tudo pela frente e deixando um rastro de sujeiras. Tudo isso está longe de ser de verdade uma cidade turística.

Salvador pode ser bonita pela sua baia vista do alto, mas dentro de si guarda uma triste feiura marcada pelas profundas desigualdades sociais desde os tempos da chegada do primeiro governador Thomé de Souza. Toda esta exclusão secular gerou um tremendo quadro de revolta interminável que transformou Salvador numa Triste Bahia.