“O CORONEL” E SACERDOTE “PADIM CIÇO”
Com seu cangaço, sua terra árida catingueira, seus coronéis, suas culturas popular e acadêmica, escritores, repentistas, trovadores, poetas, cantores, músicos e compositores de reconhecimento nacional e mundial, suas lendas e mitos, o Nordeste tem também seus personagens controversos e polêmicos estudados e pesquisados por historiadores. A literatura é vasta sobre o assunto e as versões sobre essas pessoas são as mais diversas, muitas delas contraditórias e paradoxais.
Um deles é o “coronel” e sacerdote Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço” (1844-1934), o todo poderoso e até hoje venerado como santo em sua terra de Juazeiro do Norte. Estive lá visitando sua estátua e quem se atrever falar mal dele entre seus fiéis e romeiros poderá ser linchado e até morto.
Não chegou a ser canonizado, mas tem seus devotos de fé e, quando alguém se ver em “maus lençóis”, logo apela para sua proteção. A maioria faz suas promessas e confessa ter recebido dele suas graças. Uns dizem que ele foi injustiçado, visto como pai dos pobres e desvalidos do Nordeste. Outros que não passou de mais um oligarca aproveitador e oportunista.
Em 1894 o Vaticano afastou o padre de suas funções sacerdotais devido ao “milagre da hóstia” que teria sangrado na boca da beata Maria de Araújo, no ano de 1889. A Igreja Católica questionou o tal “milagre”, considerado como um “embuste” e fanatismo religioso. Em 1896 teve que deixar Juazeiro do Norte sob pena de ser excomungado.
Depois da suspensão, o sacerdote ingressou na política e tinha Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro Lampião, como seu grande admirador. Era amigo dos grandes coronéis da região e tudo isso só fez irritar mais ainda a Igreja.
Um fato curioso é que o padre chegou a ir ao Vaticano para buscar uma absolvição diretamente com o papa Leão XIII. Segundo pesquisadores, ele foi reabilitado, mas permaneceu suspenso. Ficou até o fim da vida usando sua batina e assistindo as missas como um leigo. Contam que “Padim Ciço” permaneceu obediente aos preceitos da sua Igreja e até intercedia em orações a favor do papa.
Para o teólogo cearense José Luis Lira, o padre Cícero representa uma figura emblemática dessas idiossincrasias entre uma postura dogmática da Igreja e a devoção popular. Essa devoção a “Padim Ciço”, depois do seu afastamento, só fez crescer e se tornou lucrativa ao longo dos anos.
Décadas após, a própria Igreja que o afastou lhe concedeu oficialmente o perdão, em 2015, no pontificado do Papa Francisco, abrindo caminho para sua beatificação, cujo processo foi aberto em 2022. Ele chegou a receber o título de “Servo de Deus”. O levantamento, escritos, obras e suas virtudes foram concluídos neste ano de 2025 e enviados ao Vaticano. Por que essa reviravolta da Igreja?
Do outro lado, de acordo com historiadores, como Luiz Bernardo Pericás, autor do livro “Os Cangaceiros – ensaio de interpretação histórica”, o “Padim Ciço” era uma mistura de sacerdote, político e “coronel”. No final da sua vida possuía trinta sítios, dezesseis prédios, um quarteirão e uma avenida de casas, cinco fazendas com gado, assim como uma mina de cobre.
“Tinha ao seu redor um séquito de fiéis, o qual ajudava com esmolas, preces e palmatórias, fiéis esses que, por seu lado, também o apoiavam incondicionalmente. Era provavelmente um dos mais ricos senhores rurais do Cariri cearense de sua época”.
Ainda, segundo ele, tinha relações estreitas com comerciantes, coronéis e políticos poderosos da região. O próprio “Padim” chegou a dizer certa vez que, em Juazeiro do Norte, ele era prefeito, a Câmara, o juiz, o delegado, o comandante, a polícia e o carcereiro. Na verdade, ele tinha o poder político, social e econômico em sua mão, fazendo parte de uma oligarquia.