ENTRE O ARCAICO E O MODERNO
Uma das peculiaridades nordestina é o seu misticismo religioso, que ainda perdura até hoje. Os cangaceiros não fugiam disso, mas os tempos foram se modernizando e os sertanejos de um modo geral tiveram que conviver entre o arcaico e o moderno.
Dentro desse quadro, o folclorista Câmara Cascudo descreve que o sertão achava que a chuva vinha do céu e o trovão era castigo. O sol se escondia no mar até o outro dia. “Imperavam tabus de alimentação e os cardápios cheiravam ao Brasil colonial. Mandava-se fazer uma roupa de casimira para durar toda existência”.
Luiz Bernardo Pericás, em sua obra “Os cangaceiros” falava que o sebastianismo também estava arraigado na cultura oral, tanto de místicos como de cangaceiros. O povo do interior achava que algum dia o rei de Portugal, D. Sebastião, sairia das ondas do mar com todo seu exército e entraria no sertão para salvar os nordestinos das injustiças e da miséria.
No tempo arcaico, os livros mais lidos eram Lunário Perpetuo, a Missão Abreviada, o Dicionário da Fábula e o Manual Enciclopédico. Só homens iluminados liam o Lunário. A Missão também foi muito difundida no sertão nordestino na metade do século XIX. Era a principal obra dos beatos, “profetas” e religiosos leigos.
A religião, seja a institucionalizada ou popular, utiliza os instrumentos acessíveis do contexto em que está situada. De acordo com Pericás, assim, um conjunto de tradições solidificadas determinará o sentido do normal, do aceitável, do permitido e do proibido. Os códigos morais e as leis não escritas não precisam ser impostos pela força.
No caso do sertão, o que se constatou foi uma religião vinda de fora que se impôs lentamente por meio da penetração dos colonos portugueses e mamelucos e se modificando ao longo do tempo. Qualquer elemento de fora que pudesse pôr em risco ou aparentar ser uma heresia, era rechaçado. Um exemplo disso é que os sertanejos não aceitaram levar dromedários para o Nordeste. A população se assustou quando levaram esses animais de Argel para o Ceará porque vinham acompanhados de árabes a caráter, inclusive com turbantes. Para os cristãos, eles eram inimigos hereges.
Em 1894, o missionário escocês Henry John e auxiliares chegaram a Garanhuns para pregar o evangélio. Eles foram recebidos com resistência pelo pároco local que convocou a população para perturbar e impedir a pregação. Num missa, o padre disse aos fiéis que havia chegado o satanás na cidade. Em torno de 200 cidadãos, carregando facões, foram atrás dos missionários, arrebentaram a porta de entrada do edifício onde se reuniam, destruíram o púlpito e os bancos da sala de culto.
Nas primeiras décadas republicanas, o império permaneceu entranhado nas mentes sertanejas. Em novembro de 1897, um cangaceiro emboscou uma patrulha policial, matou dois soldados e gritou vivas a Antônio Conselheiro e à monarquia. Era enorme o respeito dos cangaceiros pelos clérigos e aos santos católicos.
Conta Pericás que houve casos de padres que benzeram cacetes de jagunços antes dos combates. Padre Macário chegou a ser chefe de cangaceiros. Cangaceiros molhavam seus punhais em água benta e carregavam medalhas com imagens religiosas. O padre Mato Grosso, de Uauá-Bahia, chegou a dizer que Lampião era um enviado de Deus. Em dezembro de 1929, o “rei do cangaço” deu dia santo e feriado em Queimadas, além de ter batizado crianças e realizado casamentos.
Quase todos os cangaceiros importantes diziam ter o corpo fechado. O bandoleiro Cobra Verde garantia que Jesuíno Brilhante tinha o diabo no corpo. Apesar de toscos, os bandoleiros sabiam da existência das inovações tecnológicas e tinham noção do ambiente cosmopolita das grandes cidades. Lampião, por exemplo, se apropriava de tudo quanto era novidade, como lanterna elétrica, capa de borracha, binóculo e até garrafa térmica, para melhorar a vida do seu bando. Portanto, eles foram se adaptado ao moderno, bem como a população sertaneja.
Em sua bolsa, Lampião carregava algodão, iodo, ácido fênico, pinça, sonda, gaze e comprimidos. Por outro lado, dependendo do tratamento, preparava chás ou emplastros de pimenta malagueta com casca de angico torrada. O misticismo e o moderno passaram a conviver juntos.
Um episódio interessante foi o passeio de carro de Lampião, de Cumbe a Tucano. Ao saber que o padre César Berenguer era dono de um moderno Ford modelo T, ordenou ao clérigo que levasse ele e mais sete homens até Tucano. Os cangaceiros chegaram a transitar de automóvel, em novembro de 1929, de Capela a Nossa Senhora das Dores. Eles trocaram suas armas antigas pelas modernas.