:: out/2025
ENTRE O ARCAICO E O MODERNO
Uma das peculiaridades nordestina é o seu misticismo religioso, que ainda perdura até hoje. Os cangaceiros não fugiam disso, mas os tempos foram se modernizando e os sertanejos de um modo geral tiveram que conviver entre o arcaico e o moderno.
Dentro desse quadro, o folclorista Câmara Cascudo descreve que o sertão achava que a chuva vinha do céu e o trovão era castigo. O sol se escondia no mar até o outro dia. “Imperavam tabus de alimentação e os cardápios cheiravam ao Brasil colonial. Mandava-se fazer uma roupa de casimira para durar toda existência”.
Luiz Bernardo Pericás, em sua obra “Os cangaceiros” falava que o sebastianismo também estava arraigado na cultura oral, tanto de místicos como de cangaceiros. O povo do interior achava que algum dia o rei de Portugal, D. Sebastião, sairia das ondas do mar com todo seu exército e entraria no sertão para salvar os nordestinos das injustiças e da miséria.
No tempo arcaico, os livros mais lidos eram Lunário Perpetuo, a Missão Abreviada, o Dicionário da Fábula e o Manual Enciclopédico. Só homens iluminados liam o Lunário. A Missão também foi muito difundida no sertão nordestino na metade do século XIX. Era a principal obra dos beatos, “profetas” e religiosos leigos.
A religião, seja a institucionalizada ou popular, utiliza os instrumentos acessíveis do contexto em que está situada. De acordo com Pericás, assim, um conjunto de tradições solidificadas determinará o sentido do normal, do aceitável, do permitido e do proibido. Os códigos morais e as leis não escritas não precisam ser impostos pela força.
No caso do sertão, o que se constatou foi uma religião vinda de fora que se impôs lentamente por meio da penetração dos colonos portugueses e mamelucos e se modificando ao longo do tempo. Qualquer elemento de fora que pudesse pôr em risco ou aparentar ser uma heresia, era rechaçado. Um exemplo disso é que os sertanejos não aceitaram levar dromedários para o Nordeste. A população se assustou quando levaram esses animais de Argel para o Ceará porque vinham acompanhados de árabes a caráter, inclusive com turbantes. Para os cristãos, eles eram inimigos hereges.
Em 1894, o missionário escocês Henry John e auxiliares chegaram a Garanhuns para pregar o evangélio. Eles foram recebidos com resistência pelo pároco local que convocou a população para perturbar e impedir a pregação. Num missa, o padre disse aos fiéis que havia chegado o satanás na cidade. Em torno de 200 cidadãos, carregando facões, foram atrás dos missionários, arrebentaram a porta de entrada do edifício onde se reuniam, destruíram o púlpito e os bancos da sala de culto.
Nas primeiras décadas republicanas, o império permaneceu entranhado nas mentes sertanejas. Em novembro de 1897, um cangaceiro emboscou uma patrulha policial, matou dois soldados e gritou vivas a Antônio Conselheiro e à monarquia. Era enorme o respeito dos cangaceiros pelos clérigos e aos santos católicos.
Conta Pericás que houve casos de padres que benzeram cacetes de jagunços antes dos combates. Padre Macário chegou a ser chefe de cangaceiros. Cangaceiros molhavam seus punhais em água benta e carregavam medalhas com imagens religiosas. O padre Mato Grosso, de Uauá-Bahia, chegou a dizer que Lampião era um enviado de Deus. Em dezembro de 1929, o “rei do cangaço” deu dia santo e feriado em Queimadas, além de ter batizado crianças e realizado casamentos.
Quase todos os cangaceiros importantes diziam ter o corpo fechado. O bandoleiro Cobra Verde garantia que Jesuíno Brilhante tinha o diabo no corpo. Apesar de toscos, os bandoleiros sabiam da existência das inovações tecnológicas e tinham noção do ambiente cosmopolita das grandes cidades. Lampião, por exemplo, se apropriava de tudo quanto era novidade, como lanterna elétrica, capa de borracha, binóculo e até garrafa térmica, para melhorar a vida do seu bando. Portanto, eles foram se adaptado ao moderno, bem como a população sertaneja.
Em sua bolsa, Lampião carregava algodão, iodo, ácido fênico, pinça, sonda, gaze e comprimidos. Por outro lado, dependendo do tratamento, preparava chás ou emplastros de pimenta malagueta com casca de angico torrada. O misticismo e o moderno passaram a conviver juntos.
Um episódio interessante foi o passeio de carro de Lampião, de Cumbe a Tucano. Ao saber que o padre César Berenguer era dono de um moderno Ford modelo T, ordenou ao clérigo que levasse ele e mais sete homens até Tucano. Os cangaceiros chegaram a transitar de automóvel, em novembro de 1929, de Capela a Nossa Senhora das Dores. Eles trocaram suas armas antigas pelas modernas.
A FELICIDADE NOS PÉS
(Chico Ribeiro Neto)
Par ou ímpar? Vai ser quatro na linha e um no gol. Deu ímpar, é você quem escolhe.
Vai começar o “baba” em cima dos paralelepípedos da Rua Gabriel Soares, no pé da Ladeira dos Aflitos, em Salvador. Uma trave era formada por um poste e uma pedra. Do outro lado do “campo” a outra trave tinha duas pedras. É início da década de 60. Tenho uns 12 anos.
A duração do “baba” era medida por tempo ou por gols. “Quem tomar o primeiro gol sai” era a lei quando havia outros times esperando. Muitas vezes não tinha duração, a gente jogava até cansar.
Sem juiz, o “baba” era apitado pelos próprios jogadores. “Não foi gol, não, a bola foi alta”. “Alta uma porra!” Não havia o travessão e bola alta ou gol era questão de interpretação. O VAR estava longe.
O “baba” era interrompido quando um idoso ou mulher com criança precisava atravessar a rua. “Para a bola”, “parou, parou”, gritava logo alguém. Parava também quando passava um carro, um Citroen preto ou um DKW Vemag.
O “baba” era interrompido também pela Polícia Militar, após telefonemas dos nossos vizinhos preocupados com seus jardins e vidraças. A gente corria com medo, mas os policiais só queriam a bola. Mas havia sempre outra de reserva.
Preparado pra bater a falta. Até que a bola saiu alta, quase é gol, mas a cabeça do dedão ficou lá no paralelepípedo. Joelho ralado era quase todo dia.
O jogador ruim era um “arranca-toco” que só sabia “dar nó (drible) de carroceiro”. Igualmente ruim era o dono da bola, geralmente escalado pra “pegar no gol”. Ninguém podia reclamar muito do seu desempenho, senão ele pegava a bola e ia embora.
Se der uma “dor de facão”, aquela “pontada aguda e lancinante na lateral do abdômen”, coloque umas três folhas verdes na cintura que passa logo. A zorra complicou na área e o zagueiro “deu um São João” (chutaço pra cima) pra aliviar a defesa.
Aquele cara tomou um “banho de cuia” (chapéu) da porra e o outro foi reclamar de falta. “Futebol é pra homem, porra!”
Quando havia muitas faltas dos dois lados era dado o grito de guerra: “O baba virou!” Era a senha pra se bater à vontade e as faltas estavam suspensas. Salve-se quem puder.
Aos domingos, a gente pulava o muro do Instituto Feminino, no Politeama, para jogar na quadra. Uma tranquilidade, pois não passava carro nem vinha a PM tomar a bola.
Fomos jogar contra o time do Politeama, 5 na linha e 1 no gol. Botamos logo 1 x 0 no começo. Aí nosso zagueiro deu uma raspada em André Catimba (mais tarde ídolo do Vitória e do Grêmio), que se estatelou no chão. Aí o bicho pegou. André já tinha fama de brigão e eles tinham o time e a turma em volta nos ameaçando. Nós éramos cinco, apenas o time.
Aí, toda bola dividida com André, o zagueiro saía de baixo e Catimba fazia o gol. Tomamos 8 x 1, mas saímos sem tomar porrada.
Chego na janela e lembro dos gritos de “olha o baba!” Era a hora de arregimentar os amigos para aquela festa em torno da bola. Uma aventura mágica, feliz e eterna. “Foi gol, porra!”
(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)
O FLAGELO DAS SECAS E O SENSO ÉTICO
Entre a segunda metade do século XIX (1877) até meados do século XX (1932/35), principalmente, as secas no agreste nordestino, ao lado do cangaço bandido, ceifaram a vida de milhares de pessoas. Os governantes foram omissos e pouco fizeram para minimizar esse flagelo mortal. Mesmo assim, poucos sertanejos se renderam ao banditismo do cangaço. Em seu livro “Os Cangaceiros”, o pesquisador Luiz Bernardo Pericás narra cenários de horror, onde demonstra que a maioria preferia morrer que cair na criminalidade. Sobre essa questão, o autor descreve que ”é bom lembrar que a maioria da população sertaneja, apesar da miséria, exploração e falta de emprego, não ingressou no cangaço. Em alguns casos, quando havia épocas de secas intensas, de fome e de miséria, muitos retirantes pobres chegaram ao ponto de vender as próprias roupas do corpo e fazer o percurso do Sertão cearense à capital completamente nus, só para que pudessem ter dinheiro para comprar alimentos. Outros flagelados optavam pelo suicídio a cogitar se tornar bandoleiros. Havia também aqueles que chegavam a comer ratos, cães, gatos, insetos, couro de boi e até mesmo a matar e comer crianças”. Na intensa estiagem de 1932, cerca de 220 mil operários trabalharam como contratados do Ifocs (espécie de Dnocs daquela época) no Sertão, mas não existem indícios de que alguns daqueles homens tenham se incorporado aos bandos de cangaceiros. “A índole e o senso ético da maioria dos nordestinos não permitiam que decidissem entrar na marginalidade, mesmo em situações extremas”.
NÃO ESPEREM MAIS POR MIM
Poema de autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário
O velho elefante,
Cansado e ofegante,
Se escora numa frondosa árvore,
Sente ser chegado seu fim;
Manda seu rebanho seguir em frente,
E diz não esperem mais por mim.
Quando o zunir do vento
Chicotear minha alma,
Ferir e dilacerar meu passado,
E o passo ficar mais lento,
Trocar o não pelo sim,
Digo que sigam em frente,
E não esperem mais por mim.
Quando o futuro encurtar meus planos,
O amanhã anunciar menos anos,
As flores murcharem em meu jardim,
Sigam em frente, gente!
E não esperem mais por mim.
ESTUDANTES VISITAM ESPAÇO CULTURAL
Pela primeira vez em sua história, um grupo de 31 estudantes do primeiro Fundamental, do Instituto Euclides Dantas (Escola Normal), visita o Espaço Cultural a Estrada onde há 15 anos é realizado o Sarau A Estrada, para um bate-papo sobre cultura, literatura, ditadura e outros assuntos.
A iniciativa partiu da professora Maria José Elita que veio acompanhada do poeta, compositor e músico Manno Di Souza que, na ocasião, intercalou o momento de conversação com cantorias da música popular brasileira e falou da importância da revitalização da cultura em Vitória da Conquista, lembrando os antigos festivais de músicas autorais que projetaram muitos artistas na cena musical da cidade, da região e da Bahia.
A visita aconteceu na manhã do dia primeiro de outubro de 2025, das nove às 11 horas, e os jovens, na faixa dos 14 aos 17 anos, foram recebidos pelo jornalista e escritor Jeremias Macário e a também professora anfitriã Vandilza Silva Gonçalves.
Depois da fala da professora Maria José sobre a importância dos jovens vivenciarem na prática, fora das salas de aulas, o conhecimento e o saber num espaço cultural com livros e outros objetos de arte, o jornalista Macário deu as boas-vindas aos estudantes, contou sua trajetória de vida e seus trabalhos na área literária e da cultura.
Além de fazer um resumo sobre seus livros publicados, como Terra Rasgada, A Imprensa e o Coronelismo no Sudoeste, Uma Conquista Cassada, Andanças e sua obra de textos poéticos Na Espera da Graça, Jeremias discorreu sobre a situação da cultura em Conquista e a necessidade de se juntar forças para fortalecer a cultura.
Os jovens se mostraram interessados sobre os principais fatos históricos da ditadura no Brasil e seus impactos na cidade, culminando com a cassação do prefeito José Pedral Sampaio naquela época, exatamente no dia seis de maio de 1964. Outros temas foram abordados sobre literatura e como se faz para escrever e editar um livro.
Outra questão em debate durante um papo descontraído com os estudantes foi sobre a necessidade de cada um conhecer a história e suas origens onde vive, no caso específico de Vitória da Conquista. O assunto leitura constante de escritores, visando o desenvolvimento do conhecimento e do saber das pessoas, também esteve em pauta durante a visitação.
Como não poderia deixar de ser, Manno e Macário falaram do Sarau A Estrada e seu formato de debates, cantorias de viola, declamação de poemas, contação de causos e a troca de ideias, com a participação de artistas, professores, intelectuais e outras pessoas interessadas pela cultura.
Na oportunidade, foi comunicada a ideia da realização de saraus nas ruas, praças e avenidas como forma de integração com a comunidade, levando cultura para o povo, bem como reivindicar do poder público maior atenção para o setor, incluindo aí a abertura dos equipamentos do Teatro Carlos Jheovah, do Cine Madrigal e Casa Glauber Rocha.
A visita desses jovens da Escola Normal foi um marco e o primeiro passo do Sarau A Estrada para que as portas também sejam abertas para outros estudantes e não fique restrito ao um público de artistas e professores.
A intenção dos estradeiros da cultura é que os nossos jovens se engajem nessa discussão, representando mais força aos nossos eventos, que são realizados de dois em dois meses. A partir de agora, o Espaço Cultural a Estrada está aberto a outras visitações dessa natureza.
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