Quando você penetra nos estudos sobre o cangaço no Nordeste vem em sua mente uma visão do faroeste bandoleiro no oeste dos Estados Unidos, ou a guerra entre bandidos milicianos e traficantes nos morros do Rio de Janeiro e outras capitais. Numa análise mais aprofundada, o cangaço e o “coronel” só mudaram de vestes no Brasil dos tempos atuais, com armas mais sofisticadas.

Vejamos o que fala o estudioso no assunto, Luiz Bernardo Pericás em sua obra “Os Cangaceiros – ensaio de interpretação histórica”. “Em realidade, até mesmo a relação das volantes com os fazendeiros era, grande medida, parecida com a dos cangaceiros, guardadas, é claro, as proporções”.

Os poderosos de hoje, políticos, chefes do poder, grandes empresários, os corruptos dos cofres públicos e outras classes abastadas são os “coronéis” de ontem, com vestimentas diferentes. Eles saqueiam povoados, distritos e cidades. Quase sempre estão engravatados e exercem influências no eleitorado sem instrução e até no policiamento.

Pericás destaca que crimes com requintes de crueldade eram largamente praticados pelos “macacos”, como assim chamavam os cangaceiros. Até hoje a polícia mete medo nos cidadãos, tratando-os como bandidos nas abordagens contra negros e os mais pobres.

Muitos aceitam suborno e matam inocentes trabalhadores. Tem gente que tem mais pavor da polícia do que do bandido. No cangaço, o povo estava mais do lado dos cangaceiros, considerando-os como heróis justiceiros, se bem que de forma distorcida.

O autor diz mais ainda que, naquela época (meados dos séculos XIX até as primeiras décadas do XX), pequenos donos de terra eram expulsos de suas propriedades e tinham suas fazendas desapropriadas à força por “coronéis” poderosos, que se apoiavam nas armas oficiais da polícia que, muitas vezes, se tornavam amigos e compadres dos caudilhos rurais”.

Até hoje temos os grileiros de terras, principalmente no Norte e Nordeste, resultando em matanças de líderes que defendem os mais fracos. Nunca se fez uma reforma agrária na história do Brasil e a briga por terras é constante, com a impunidade dos criminosos, que recebem até a cobertura da Justiça que vende sentenças.

O escritor vai além, “de que a influência política dos “coronéis” ajudava na promoção de tenentes e capitães, dentro da corporação e no acobertamento de suas atividades ilícitas. Havia aí, de modo claro, uma relação de promiscuidade entre o poder público e o privado. Uma troca de favores”.

Essa promiscuidade continua a existir, sobretudo entre os políticos e chefetes, como o termo de “toma lá, dá cá”. Ainda existe o Quem Indica, comumente apelidado pela sigla QI.Quem quiser pode utilizar a palavra “pistolão”, que vem de pistola.

Naqueles tempos, quem não quisesse participar desse “arranjo” estaria fadado ao fracasso – assinala Luiz Pericás, que cita o caso do tenente-coronel Alberto Lopes, responsável pelas volantes baianas, em 1930. Dentre as imposições para assumir o cargo, exigiu que os chefes políticos locais não interferissem nas operações militares organizadas e lideradas por ele, de nenhum modo.

Essa exigência foi fatal para o tenente. Perdeu a vida numa encruzilhada pelas mãos de um chefe regional, justamente por não querer a ingerência dos “coronéis” em suas decisões. “Era comum, portanto, que um sargento, cabo ou oficial, comandando uma diligência de caça a cangaceiros (bandidos), desistisse da missão, por causa de inúmeros entraves antepostos pelos “coronéis” e chefes políticos regionais.

“Em períodos próximos das eleições, por exemplo, esses homens poderosos podiam espalhar boatos e fazer intrigas contra determinados oficiais das volantes que, porventura, estivessem criando “problemas”. Difamações eram frequentemente difundidas com intuito de retirar de suas áreas de influência, certos comandantes considerados inconvenientes. Quando o oficial era transferido, a relação entre “coronéis” e bandidos poderia continuar sem empecilhos”.

Boatos hoje montados por políticos poderosos levam o nome bonito inglês de “fake news”, ou falsas notícias para se ganhar um pleito e derrubar o adversário oposto. No mundo do crime e do tráfico, ainda perpetua a relação promíscua entre políticos inescrupulosos e bandidos, naquele tempo, cangaceiros do cangaço.

O soldo das tropas volantes daquela época era, em geral, mais baixo do que ganhava a média dos cangaceiros bandidos. Traficante hoje pode até ter vida curta, mas ganha bem mais que um soldado e até um oficial, quando ele é sério e honesto.

A corrupção e a desonestidade estavam presentes nas corporações. Uma das formas do soldado ou oficial completar seu salário era roubar os pertences dos cangaceiros após os combates. Não são todos, mas muitos policiais usam dessa prática em abordagens e apreensões ilícitas.