:: 26/ago/2025 . 23:09
O CANGAÇO E O “CORONEL” SÓ MUDARAM DE VESTES
Quando você penetra nos estudos sobre o cangaço no Nordeste vem em sua mente uma visão do faroeste bandoleiro no oeste dos Estados Unidos, ou a guerra entre bandidos milicianos e traficantes nos morros do Rio de Janeiro e outras capitais. Numa análise mais aprofundada, o cangaço e o “coronel” só mudaram de vestes no Brasil dos tempos atuais, com armas mais sofisticadas.
Vejamos o que fala o estudioso no assunto, Luiz Bernardo Pericás em sua obra “Os Cangaceiros – ensaio de interpretação histórica”. “Em realidade, até mesmo a relação das volantes com os fazendeiros era, grande medida, parecida com a dos cangaceiros, guardadas, é claro, as proporções”.
Os poderosos de hoje, políticos, chefes do poder, grandes empresários, os corruptos dos cofres públicos e outras classes abastadas são os “coronéis” de ontem, com vestimentas diferentes. Eles saqueiam povoados, distritos e cidades. Quase sempre estão engravatados e exercem influências no eleitorado sem instrução e até no policiamento.
Pericás destaca que crimes com requintes de crueldade eram largamente praticados pelos “macacos”, como assim chamavam os cangaceiros. Até hoje a polícia mete medo nos cidadãos, tratando-os como bandidos nas abordagens contra negros e os mais pobres.
Muitos aceitam suborno e matam inocentes trabalhadores. Tem gente que tem mais pavor da polícia do que do bandido. No cangaço, o povo estava mais do lado dos cangaceiros, considerando-os como heróis justiceiros, se bem que de forma distorcida.
O autor diz mais ainda que, naquela época (meados dos séculos XIX até as primeiras décadas do XX), pequenos donos de terra eram expulsos de suas propriedades e tinham suas fazendas desapropriadas à força por “coronéis” poderosos, que se apoiavam nas armas oficiais da polícia que, muitas vezes, se tornavam amigos e compadres dos caudilhos rurais”.
Até hoje temos os grileiros de terras, principalmente no Norte e Nordeste, resultando em matanças de líderes que defendem os mais fracos. Nunca se fez uma reforma agrária na história do Brasil e a briga por terras é constante, com a impunidade dos criminosos, que recebem até a cobertura da Justiça que vende sentenças.
O escritor vai além, “de que a influência política dos “coronéis” ajudava na promoção de tenentes e capitães, dentro da corporação e no acobertamento de suas atividades ilícitas. Havia aí, de modo claro, uma relação de promiscuidade entre o poder público e o privado. Uma troca de favores”.
Essa promiscuidade continua a existir, sobretudo entre os políticos e chefetes, como o termo de “toma lá, dá cá”. Ainda existe o Quem Indica, comumente apelidado pela sigla QI.Quem quiser pode utilizar a palavra “pistolão”, que vem de pistola.
Naqueles tempos, quem não quisesse participar desse “arranjo” estaria fadado ao fracasso – assinala Luiz Pericás, que cita o caso do tenente-coronel Alberto Lopes, responsável pelas volantes baianas, em 1930. Dentre as imposições para assumir o cargo, exigiu que os chefes políticos locais não interferissem nas operações militares organizadas e lideradas por ele, de nenhum modo.
Essa exigência foi fatal para o tenente. Perdeu a vida numa encruzilhada pelas mãos de um chefe regional, justamente por não querer a ingerência dos “coronéis” em suas decisões. “Era comum, portanto, que um sargento, cabo ou oficial, comandando uma diligência de caça a cangaceiros (bandidos), desistisse da missão, por causa de inúmeros entraves antepostos pelos “coronéis” e chefes políticos regionais.
“Em períodos próximos das eleições, por exemplo, esses homens poderosos podiam espalhar boatos e fazer intrigas contra determinados oficiais das volantes que, porventura, estivessem criando “problemas”. Difamações eram frequentemente difundidas com intuito de retirar de suas áreas de influência, certos comandantes considerados inconvenientes. Quando o oficial era transferido, a relação entre “coronéis” e bandidos poderia continuar sem empecilhos”.
Boatos hoje montados por políticos poderosos levam o nome bonito inglês de “fake news”, ou falsas notícias para se ganhar um pleito e derrubar o adversário oposto. No mundo do crime e do tráfico, ainda perpetua a relação promíscua entre políticos inescrupulosos e bandidos, naquele tempo, cangaceiros do cangaço.
O soldo das tropas volantes daquela época era, em geral, mais baixo do que ganhava a média dos cangaceiros bandidos. Traficante hoje pode até ter vida curta, mas ganha bem mais que um soldado e até um oficial, quando ele é sério e honesto.
A corrupção e a desonestidade estavam presentes nas corporações. Uma das formas do soldado ou oficial completar seu salário era roubar os pertences dos cangaceiros após os combates. Não são todos, mas muitos policiais usam dessa prática em abordagens e apreensões ilícitas.
O “CANGAÇO E SUAS ORIGENS” ABRIU OS TRABALHOS DO SARAU A ESTRADA
Em nova casa e com a participação de cerca de 40 pessoas entre artistas, professores, jovens estudantes, novos convidados e interessados pela cultura, o tema “Cangaço e suas Origens” abriu os trabalhos do Sarau A Estrada. Foi mais uma noite memorável onde todos se sentiram à vontade para expressar seus pensamentos e ideias.
O evento foi realizado no Espaço Cultural do mesmo nome, na Avenida Sérgio Vieira de Melo, no último sábado (dia 23/08/2025), num clima de muita confraternização e troca de conhecimento que sempre norteou o sarau nesses 15 anos de existência.
Sob a organização da comissão formada por Cleu Flor, Alex Baducha, Dal Farias e Eduardo Moraes, o cantor, compositor, músico e poeta Dorinho Chaves abriu as cantorias com melodias relacionadas ao assunto, intercaladas com a declamação de poemas, em sua grande maioria autorais, e contação de causos.
Foi uma noite de violada também com Manno Di Souza, Baducha, Vamberto e outros artistas que soltaram suas vozes no ritmo da música popular brasileira, sobretudo nordestinas. Foi uma noite reservada para o nosso Nordeste, rico em tradições e mistérios.
Num ambiente de descontração e amizade, a cultura foi o ponto central das discussões na troca de ideias durante o sarau que varou madrugada a dentro, depois de um certo tempo parado devido a mudança do seu espaço.
Apesar de ainda adolescente, o sarau colaborativo, onde os participantes contribuem com petiscos e bebidas, sem contar com um fundo criado para sua manutenção, tem vida longa e percorreu obstáculos para sobreviver.
Durante esse período (começou como Vinho Vinil), o sarau já produziu uma série de trabalhos, como CDs, DVDs, vídeos de textos poéticos, apresentação em público no Teatro Carlos Jheovah e foi homenageado com o troféu Glauber Rocha, indicação do Conselho Municipal de Cultura, com entrega solene pela Câmara de Vereadores.
Em sua nova etapa, agora está sendo registrado oficialmente em cartório como entidade de direito, com condições de criar parcerias com outros órgãos públicos e privados visando ampliar seus horizontes.
Não se trata de uma festa cultural fechada, tanto que o sarau está com o propósito de abrir suas portas para estudantes de escolas para engajá-los no universo da cultura como atores de debates diversos. O mais longevo de Vitória da Conquista, ao longo desses anos, o Sarau a Estrada vem fazendo cultura e marcando sua presença na sociedade.
Como carro-chefe, sempre abrimos os trabalhos com o tema nas áreas da cultura, da educação, social e também da política, tanto que não seja de cunho partidário. Já discutimos sobre literatura, história da música brasileira, os movimentos de 1968, Graciliano Ramos, Castro Alves, Escravidão, cinema, império romano, a civilização dos sumérios, a península ibérica, forró, escritores nordestinos e tantos outros.
“O CANGAÇO E SUAS ORIGENS”
Dessa vez, colocamos na mesa a discussão sobre “O Cangaço e suas Origens”, assunto este desenvolvido pelo jornalista e escritor Jeremias Macário. Existe uma vasta literatura sobre esse fenômeno que nasceu no Nordeste miserável a partir de meados do século XIX, como “Os Cangaceiros”, do acadêmico Luiz Bernardo Pericás, “O Cangaceiro, o Homem, o Mito”, de Sérgio Augusto de Souza Dantas, “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello, “Lampião, Senhor do Sertão”, de Élise Grunspan-Jasmin, “O Mundo Estranho dos Cangaceiros”, de Estácio de Lima, dentre tantos outros.
Na introdução, Macário deu uma visão geral sobre o Nordeste do meado do século XIX, quando nasceu o movimento do cangaço, e primeiras décadas do século XX, destacando os aspectos sociais, econômicos e político da época.
Era uma região pobre e bem mais miserável onde era dominada pelos coronéis, senhores de engenhos, fazendeiros e políticos poderosos. Era uma terra de ninguém onde a justiça e a lei eram as armas. Quem tinha mais posses e dinheiro mandava.
Em resumo, o cangaço nasceu daquele sistema cruel onde o homem pobre era escravo do seu patrão, espoliado como se fosse uma mercadoria qualquer. Por vingança de assassinato de um familiar, revolta das condições de miséria, falta de justiça aos menos favorecidos, brigas por terras, a opção era o cangaço, que vem de canga de carros-de- bois, utensílios velhos e apetrechos.
Com o tempo, o cangaço tornou-se uma espécie de empreendimento para seus líderes, como Antônio Silvino (1897-1914), Sinhô Pereira, Antônio Brilhante, Lampião, Corisco, José Bahiano e tantos outros, que se aliavam aos coronéis amigos, políticos, comerciantes ricos e poderosos para praticar a vindita contra opositores e realizar seus saques em povoados e cidades do Nordeste.
Heróis, bandidos ou justiceiros? Estavam mais para bandidos marginais, mas não gostavam de assim serem chamados. Na falta da justiça, faziam justiça ao seu modo, protegendo uns e matando outros. No entanto, mesmo diante de tantas perversidades, o povo miserável e ignorante tinha fascínio pelos cangaceiros que percorriam vários estados nordestinos e eram perseguidos pelas milícias ou volantes, ainda mais violentos com a população.
Quando se fala em cangaço, as pessoas logo lembram de Lampião, o mais estudado e pesquisado pelos escritores – disse Jeremias, ao acrescentar que ele foi muito mistificado e divulgado pela imprensa, como se tivesse sido o único governador do sertão.
Existiram outros que marcaram época, como o próprio Antônio Silvino, antecessor de Lampião, talvez mais cruel que, ferido de morte pelas volantes, se entregou em 1914 e ficou preso por mais de 20 anos na Casa de Detenção de Recife. Morreu num casebre de Campina Grande em desgraça.
Antônio Silvino serviu de inspiração a Lampião que brincava de cangaceiro quando ainda era menino e se tornou o símbolo maior do cangaço, que teve seu auge na primeira década dos anos 1900 e terminou em 1940, após a morte de Virgulino Ferreira da Silva, em 1938, na Gruta do Angico, em Sergipe.
Os cangaceiros detestavam os soldados, chamados por eles de “macacos”, mas em seus grupos mantinham regimes parecidos. Descreve o estudioso Luiz Bernardo Pericás, em sua obra “Os Cangaceiros”, que o “homem” constituiu vários locais de “recrutamento”, entre os quais a fazenda Paus Pretos, do “coronel” Petrolino, para receber com segurança os foragidos e perseguidos da polícia. A fazenda Três Barras foi transformada em “escola de guerra” e campo de treinamento militar.
Era comum, segundo Pericás, o uso dos nomes de guerra por diferentes cangaceiros. Para confundir a polícia e homenagear os marginais tombados em combate havia dois cangaceiros com o nome Esperança; três Sabiás; quatro Beija-Flor; dois Pitombeiras; três Asa Branca; dois Cocadas; Três Pai Velho; dois Moita Braba; três Marceca; quatro Ponto Fino, e assim por diante.
No período lampiônico, os cangaceiros desenvolveram um sistema de alarme parecido com o utilizado por Lucas de Feira, o “demônio negro”, na primeira metade do século XIX, na Bahia. Na época, Lucas montava uma rede feita de cipó com um chocalho na ponta, próxima do seu esconderijo. Servia como aviso de aproximação de inimigos.
Lampião, que aperfeiçoou o cangaço, começou a dividir seu bando em “subgrupos”, em “pelotões” semiindependentes, que agiam por conta própria, mas que se uniam ao núcleo principal quando eram requisitados. Chegou a possuir de seis a dez falanges de criminosos.
Para esconder as marcas de pegadas, os cangaceiros sempre andavam em filas indianas, com Lampião sempre à frente. Em períodos de chuva, andavam sobre pedras, dentro de riachos ou pulavam de um lado para o outro nos caminhos de terra seca. Em alguns momentos, eles usavam alpercatas “reviradas”, com o calcanhar em posição contrária. Eram verdadeiros curupiras. Essa tática havia sido utilizada por João de Souza Calango, no final do século XIX.
Suas indumentárias se assemelhavam aos dos vaqueiros, com trajes mais elaborados, que mantinham sua funcionalidade militar, mas se destacavam pela quantidade de ornamentos, como medalhas e moedas. O chapéu de couro já era usado em épocas anteriores. Duas cartucheiras se cruzavam no peito dos salteadores, levando cerca de 129 balas de fuzil. Carregavam um revólver ou pistola, punhais e dois a quatro bornais. O peso completo das roupas, do dinheiro roubado e dos equipamentos em geral chegavam a cerca de 30 quilos. As armas eram modernas, fabricadas nos Estados Unidos, na Alemanha e na Bélgica.
De acordo com Pericás, um dos motivos para a longevidade da “boa” recordação dos cangaceiros seria sua contraposição às volantes dos governos que praticavam roubos, espancamentos e assassinatos como os cangaceiros. Como transgrediam as leis, ficavam com uma aparência negativa perante às comunidades sertanejas. A população via nos cangaceiros o oposto das volantes, aqueles que lutavam pela ordem.
Dos amigos de infância de Virgulino, os meninos que brincavam de guerrilha, alguns o seguiram e outros se tornaram adversários. Uns viraram “bandidos” e outros “macacos”. O mais ferrenho inimigo de Lampião foi José Saturnino, companheiro de meninice, no Vale do Pajeú, membro da família Nogueira que, com outras famílias, como os Feraz, se incompatibilizaram com os Ferreiras. Diz um jornalista que se Virgulino fosse chefe de uma volante, os Ferraz, apelidado de Flor (Manuel Flor) formariam um bando de cangaceiros. O clã dos Flor foi um dos mais aguerridos “caçadores” de cangaceiros. José Flor, compadre de Lampião, fazia parte da Força Volante. No sertão haviam dois “partidos, o do cangaço e o da polícia.
Como foi dito acima, o tema é vasto e carece de mais estudos e pesquisas porque existem muitos mitos e lendas que precisam ser esclarecidos no campo da verdade. Alguns escrevem sob o manto dos boatos do povo, sem se aprofundar nas pesquisas investigativas.
É preciso que se entenda que o Nordeste não é somente fome, miséria e cangaço. A região é rica com suas diversidades culturais únicas no Brasil, inclusive com escritores, poetas e artistas de renome nacional e internacional, sem contar sua força na economia, na indústria e no comércio.
Tudo isso e muito mais foi o nosso sarau do último sábado, dia 23 de agosto de 2025, onde muitos ensinaram e também aprenderam na troca do saber. Debates, cantorias, declamação de poemas, acompanhados de comidas, umas geladas e vinho, nos levaram por uma viagem ao mundo mágico da cultura.
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