“LÁGRIMAS AZUIS – MEMÓRIAS”
Em rodas de amigos, bate-papos, saraus e encontros diversos quando as pessoas me perguntam aonde nasci sempre respondo que em Mairi (antiga Monte Alegre) e em Piritiba, mas também em Amargosa, Salvador e Vitória da Conquista, na Bahia.
– Mas, como assim, cara?
Aí tento explicar que Mairi é a terra-mãe biológica onde uma parteira da roça me pegou numa fazendinha que nem sei mais seu nome. Foi o lugar onde a maior parte dos meus familiares e parentes, os Macários, os Almeidas e os Lisboas construíram e solidificaram suas bases.
Em Piritiba, que no final dos anos 40 e início dos 50 ainda pertencia ao município de Mundo Novo (olha a confusão!), foi aonde meus pais, vindos de mudança de Mairi, me registraram. Sempre lavradores, venderam uma terrinha para comprar outra. Piritiba, onde me criei e fiz o primário, me adotou como filho.
Amargosa, no Seminário Nossa Senhora do Bom Conselho, me deu a formação ginasial e parte do clássico durante seis anos, de 1962 a 1968. Em Salvador foram mais de 20 anos entre a universidade (Faculdade de Comunicação/Jornalismo) e a base profissional. Vitória da Conquista me deu o título de cidadão e mais raízes para o crescimento no jornalismo. Aqui tomei gosto e inventei seguir carreira solo de escritor.
Bem, confesso que nem eu mesmo entendi esse “nariz de cera” para falar da nova edição do livro “Lágrimas Azuis – Memórias”, da professora licenciada em Letras pela Uneb (Jacobina), Iraci Pacheco Pedreira. Acho que foi para também dizer do orgulho de ter nascido nesta terra de Mairi, embora, por circunstâncias familiares da época, ter partido ainda criança para outras plagas, sem levar no embornal seu valioso registro de nascimento. Tenho essa frustração.
Sem mais delongas, li a nova edição de “Lágrimas Azuis” e digo que a obra literária de Iraci Pacheco não se reporta apenas às memórias familiares, mas também é história de Mairi e região; é documentário; é autobiografia e reportagem sociológica quando fala da seca do sertão, dos hábitos, dos costumes e da cultura popular do interior.
Para confirmar e provar a minha análise sobre o trabalho de Iraci, destaco alguns trechos da carta do sr. Colbert Torres da Silva onde comenta que a autora fez bem narrar sobre as feiras semanais, que além de um mercado a céu aberto, elas eram também ponto de encontro de toda sociedade do município. Só retifico, sr. Colbert, que as feiras ainda são ponto de encontro, mesmo com a internet e as redes sociais.
Como disse Colbert, a escritora fala no seu livro sobre casamentos, tropeiros, ciganos e boiadeiros, “figuras que tiveram papel saliente em todo interior do Brasil e também aí em nossa Bahia”. A entrada de Lampião no município, em 1933, citada por Iraci, quando muita gente fugiu para o mato, também é história que ouvi dos meus pais e os mais antigos.
Versos e pensamentos de grandes escritores, poetas e compositores, como Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, Zé Dantas, Patativa do Assaré, Dom e Ravel, Tim Maia, Alceu Valença, Zé Ramalho, Jorge Amado, Hélio Pólvora (jornalista e escritor), Renato Teixeira, Gilberto Gil e tantos outros são mencionados nos capítulos do seu livro, a exemplo de “Raízes” que fala das lembranças dos ancestrais, caso do seu bisavô Calixto Pereira Pacheco, homem rico e todo poderoso, dono do povoado de Várzea da Roça, que guardava dinheiro num saco, no forro do seu grande casarão.
Gostei muito dos provérbios do seu bisavô, das recordações dos seus pais, Madalena de Oliveira Pacheco e Pacífico Assis Pacheco, características familiares e dos causos e casos das viagens pelo Brasil a fora. Como não poderia apreciar sua narrativa simples e deliciosa em “A Vida nas Fazendas” se minha origem veio do campo onde observei os costumes e os hábitos do povo simples da zona rural. Como adorava as conversas do meu pai com seus amigos e compadres até altas horas da noite! Saudades!
Fiquei também encantado com o capítulo “Os Tropeiros, os Ciganos e os Boiadeiros”. Sua narração me fez voltar ao tempo de menino na roça vendo passar nas estradas os tropeiros e as boiadas, pernoitando em nosso rancho. Dos ciganos, lembro meu pai brigando com eles que invadiam as roças de milho pra pegar as espigas, fruto do seu trabalho com muito suor.
Das “Santas Missões” não consigo esquecer dos frades barbudos que faziam seus sermões tiranos na Praça de Monte Alegre (Mairi) e deixavam os ouvintes católicos tremendo de medo depois de suas descrições do inferno dantesco queimando as almas dos pecadores. As procissões e as penitencias até o Monte de Santa Cruz!
Em “Os Cangaceiros e os Revoltosos”, Iraci Pacheco faz menção ao movimento revolucionário da Coluna Prestes (Luiz Carlos Prestes, Miguel Costa, Juarez Távora, Siqueira Campos, Cordeiro de Farias, Djalma Dutra e João Alberto), de 1924 a 1927, que passou pela fazenda Tabua e Monte Alegre, em 17, 18 e 19 de junho de 1926. A Coluna foi recebida com festas e banda de música.
Do livro “A Coluna Prestes na Bahia”, de Renato Luis Bandeira, a autora de “Lágrimas Azuis” pontua que Anatalino Medrado que fora sequestrado pelo movimento em Mucugê, completava nesta ocasião 48 dias em poder da Coluna, sendo libertado nesta cidade. Os homens que pretendiam derrubar o presidente Artur Bernardes foram recebidos pelo prefeito major Patrício Francelino da Silva e pelo pároco cônego Manoel Maria da Conceição.
Os cangaceiros, comandados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, passaram por perto da cidade. Os boatos de que Lampião estava próximo, segundo Iraci Pacheco, faziam com que as pessoas abandonassem suas casas e fossem dormir no mato. Lembro, como se ainda fosse hoje, minha mãe Maria Madalena contando esta história da qual também foi vítima. Lampião e Maria Bonita foram mortos na fazenda Angicos, em Sergipe, em 12 de novembro de 1938. Em suas jornadas, os cangaceiros enfrentavam o xique-xique, a macambira, o rabo de raposa, o calumbi e os animais ferozes típicos da caatinga do sertão – salienta a autora.
Comoventes suas histórias e causos sobre os vizinhos, suas emoções com a chegada das chuvas e seus sinais na visão dos sertanejos. Já sobre a seca ela derrama suas palavras de dor na medida em que o drama da estiagem penaliza o homem do semiárido. Como jornalista, fiz muitas manchetes e fotos sobre a situação dos retirantes, da fome e das cinzentas paisagens onde o único verde é do mandacaru.
Nos meus quarenta anos de atividades jornalísticas, confesso que a seca era o tema que mais me empolgava e do qual me empenhava com afinco nas conversas e entrevistas com os sertanejos, sobretudo para denunciar os descasos dos governantes que, infelizmente, persistem até hoje. A seca também me deixava depressivo ao ponto de me engalfinhar na boemia das noites.
Suas memórias também são histórias documentais como no capítulo “Mairi-cidade do Monte Alegre”, encravada nas encostas da Chapada Diamantina, quando cita sua fundação entre 1750 a 1800, liderada pelo frei Apolônio de Toddy. Cortado pelo rio Jacuípe, o município limita-se com Várzea do poço, Mundo Novo, Baixa Grande, Capela do Alto Alegre, Pintadas e Várzea da Roça. Monte Alegre de Nossa Senhora das Dores, como bem disse, foi elevada à categoria de vila e sede de município em 31 de dezembro de 1857, desmembrado do de Jacobina. A vila passou a ser cidade em 5 de agosto de 1897. Em 1944 passou a denominar-se de Mairi, aldeia de branco na tradução indígena. Recordo quando meu pai falava muito em Hermes Moreira como prefeito em 1930.
Belo seu poema em homenagem ao 5 de agosto, mas permita-me opinar que o aniversário do município deveria ser comemorado em 11 de janeiro de 1863 quando foi instalada a primeira Câmara de Vereadores. Na minha visão, é a data mais significativa de emancipação.
Deixando a história de lado, você finaliza sua obra em grande estilo, falando de si, de suas emoções na luta da vida, dos seus entes queridos (amigos, parentes, esposo), de Alício que tive a honra de conhecer e outra vez da malvada seca. Ah, guardou um cantinho lá no fundo para os maledicentes e invejosos! Além de ser uma difícil arte que você desempenha com maestria como licenciada em Letras, escrever é também uma árdua tarefa.