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“DOS GRANDES ACONTECIMENTOS”

Nesse capítulo, Zaratustra, personagem da obra de Nietzsche fala das Ilhas Afortunadas onde fumega um grande vulcão. O povo diz que a ilha está colocada num penhasco na porta do mundo subterrâneo. Ali um navio lançou âncoras onde se encontra a montanha fumegante. Sua tripulação foi caçar coelhos quando viram um homem atravessar o ar, e uma voz pronunciou estas palavras: “Já é tempo! Não há um instante a perder! ”.

Quando olharam mais de perto viram que era Zaratustra em direção à montanha do fogo. O piloto disse: É Zaratustra que vai para o inferno. Correu o boato de que ele desaparecera sem dizer para onde. No entanto, ao fim de três dias, o povo julgava que o demônio levara Zaratustra. Os discípulos preferiram acreditar que foi Zaratustra quem levou o demônio.

Depois de cinco dias ele apareceu quando se deu o diálogo dele com o cão de fogo. Nas palavras poéticas (Nietzsche deprecia os poetas e diz que todos são mentirosos e enganadores), Zaratustra afirma que a terra tem pele e essa pele sofre enfermidades de doenças e, uma delas, chama-se homem. A outra é o cão de fogo.

“Cruzei o mar e vi a verdade” – “Assim Falava Zaratustra”. Sei da tua profundidade, cão de fogo! “De onde tiras o que vomitas”? “Bebes a água do mar e é daí que vem o sal da tua eloquência. És o ventríloquo da terra. Esses demônios são salgados, mentirosos e triviais.

“Sabeis rugir e obscurecer com vossas cinzas! Tendes as maiores bocarras e aprendestes bem a arte de fazer ferver o lodo”. Por onde andas existem coisas lamacentas e cavernosas. Tudo isso quer liberdade que é teu grito predileto, mas perdi a fé nos grandes acontecimentos, pois em torno deles existem rugidos e fumaça – disse Zaratustra.

Prosseguiu dizendo para o estrépito do inferno que os acontecimentos maiores não nos surpreendem nas horas mais ruidosas, mas nas mais silenciosas. “O mundo gravita, não em torno dos inventores de novos estrondos, mas em volta dos inventores de novos valores, em silêncio”… Que importa que uma cidade seja mumificada e que caia na lama uma estátua! Aos destruidores de estátuas, destacou ser mesmo uma loucura jogar sal no mar e estátuas na lama.

O Estado é um cão hipócrita

Sobre essa questão, Zaratustra deu um conselho para os reis, às igrejas e a todos aqueles que são fracos em idade e virtude: “Deixai-vos derrubar para volverdes à vida e para que a vós retorne a virtude”!

O cão de fogo indagou que Igreja? Que é isso? Ele respondeu que é uma espécie de Estado, mais enganosa. Cala-te, tu conheces tua espécie mais que ninguém. “O Estado é um cão hipócrita como tu que gostas de falar com rugidos e fumaça para fazer crer que sua voz, como a tua, saia das entranhas das coisas”.

De acordo com ele, o Estado quer ser a todo custo o animal mais importante da terra e consegue fazer o povo acreditar que o seja. O cão ficou louco de ciúmes, e da sua goela saíram fumaças e vozes terríveis que a cólera e a inveja poderiam sufocá-lo.

Ficou encolerizado? Então, vou falar de outro cão de fogo, cuja voz nasce no coração da terra. Seu hálito e a chuva são de ouro. Disse que ele é inimigo de teus gargarejos, de tuas erupções e da raiva de tuas entranhas. Seu ouro e seu riso, tira-os do coração da terra que é de ouro. O cão meteu o rabo entre as pernas e foi esconder-se num canto.

Sobre sua passagem voadora pelo ar, falou que ele não passava de um fantasma, de uma sombra viajante. Devo manter minha sombra em rédeas mais curtas, ou prejudicará minha reputação. Já é tempo e não há um instante a perder – assim terminou sua fala.

 

 

CARYBÉ, O ESCULTOR DOS ORIXÁS (Final)

(Chico Ribeiro Neto)

Reproduzo hoje a terceira e última parte da minha entrevista com Carybé, publicada na revista “Manchete” de 26/07/1975.

Carybé conheceu a fundo “essa cidade sagrada da Bahia, onde se reúnem todos os orixás do mundo para dar mais verdade à civilização”.

Segue a matéria:

“Carybé confessa que se deixou influenciar bastante pelo desenhista alemão George Grosz, que criticava o mundo do pós-guerra, e pelos pintores Gauguin e Van Gogh. Mas não gosta de ser chamado de pintor, de desenhista, de escultor, nada disso.

“Na profissão, sou como as mulheres de certas nacionalidades: faço tudo”.

Como não se inclui numa categoria profissional única, não dá a menor bola para a crítica. E acha até que a crítica podia perfeitamente deixar de existir. Paradoxalmente, Carybé crítica a chamada arte de vanguarda:

“Você vai a uma bienal e vê certas coisas que deveriam estar num parque de diversões. Quando alguém faz um livro, sabe pelo menos que aquilo é um negócio para ser lido. Mas quando um sujeito empalha um porco para que serve isto? Uma coisa que se faz para destruir depois não pode ser coisa feita com amor. É apenas para balançar o coreto. Dizem que é para agredir. Mas para que agredir? Ocorre com a pintura de vanguarda o que ocorre com o tal do ‘som novo’. Fazer som…Se aparecesse uma cor nova chamada ‘zup’, por exemplo, seria esplêndido. Mas o espectro está aí mesmo, tremendamente definido. E rico.”

Realista e sensato, Carybé não tem preconceitos contra artistas novos que o procuram:

“O chato é chato em qualquer idade. Tem cada velho chato por aí. Mas também tem cada jovem. Quando você vê que o rapaz ou a moça tem lenha para queimar, aí é ótimo. Mas às vezes chegam por aqui umas mocinhas de família rica que, não sabendo que rumo tomar, resolvem dar para pintoras. Aí, já viu.”

Ogã da mãe de santo Senhora, já falecida, do candomblé do Axê Opô Afonjá, Carybé é de uma honestidade profissional absolutamente exemplar. Apesar de profundamente instruído nos mistérios do candomblé quando resolveu fazer o primeiro painel dos orixás (“porque não existia ainda em nenhum lugar uma iconografia completa dos santos do candomblé”), passou o tempo todo consultando Mãe Senhora, Mãe Menininha de Gantois, Olga do Alaketu e outras autoridades. Até então, só havia representações esculturais ou gráficas de entidades como Exu, Ogun, Iemanjá e poucas outras.

Carybé personalizou os 29 orixás do culto, pondo um carinho particular no seu protetor, que é Oxossi, deus da caça e da floresta. Tem prêmios de Buenos Aires, da Bienal de São Paulo, já ilustrou livros de Jorge Amado, Rubem Braga, Gabriel Garcia Marques, uma edição de alto luxo de “Macunaíma”, “As Mil e Uma Noites”, tem um painel na Galeria Torre Boston, em Buenos Aires (um painel de três andares), outro na Galeria Belgrano, também em Buenos Aires, e executou os dois grandes murais do Aeroporto Presidente Kennedy, em Nova Iorque, “coisa alegre, muito alegre, para tirar o nervosismo de quem vai pegar avião.”

Amigo íntimo de Jorge Amado, que vê praticamente todos os dias, Carybé nunca quis saber da Europa:

“Cidade grande, com vida intelectual nos cafés e botequins, não tem a força (axé) do altiplano da Bolívia e do Peru, nem a vitalidade profunda dessa cidade sagrada da Bahia, onde se reúnem todos os orixás do mundo para dar mais verdade à civilização.”

(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)

 

 

 

 

 

 

TROCARAM O GONZAGÃO PELO SAFADÃO

O Nando do Cordel, menos mal, mas é um grande músico da MPB e compositor para outras ocasiões, como festas natalinas. Pior foi colocar Amado Batista para se apresentar no São João de Vitória da Conquista e, em alguns lugares, trocaram o forró autêntico do Gonzagão pelo lixo do Safadão, com sofrências e outros ritmos misturados. Tudo porcaria. Agora mesmo, na festa do São Pedro, o “Ita/Pedro”, de Itabuna, a prefeitura está anunciando, descaradamente, para o público, shows de pagode e sertanejo. Nas redes sociais, acompanhei muitas mensagens e vídeos de protesto contra o que as prefeituras estão fazendo com o nosso tradicional São João nordestino, destruindo a nossa cultura, para ganhar audiência com esses cantores de massa alienada. Os promotores das nossas festas juninas dizem que é disso que o povo gosta e aí injetam mais veneno, ao invés de contribuir para estimular e manter nossa tradição do forrobodó. Ouvi um vídeo clamando que acabaram com o São João de Caruaru, Arco Verde (Pernambuco) e Sergipe. Ainda se salva o de Campina Grande, na Paraíba. É verdade que teve bandas de forró pé de serra, mas, a maioria da terra que tocou nos palcos pequenos nos intervalos dos artistas contratados a peso de ouro, sem falar nos superfaturamentos e nos subornos por debaixo do pano. O Ministério Público e outros órgãos que controlam esse setor precisam acabar com essa pouca vergonha, principalmente em anos de eleições quando os prefeitos que mais “choram” falta de recursos para educação e a saúde, gastam os “tubos”. Nessa época aparece a bufunda, a grana.

CANÇÃO DA NOITE

Autoria do jornalista e escritor Jeremias Macário

Sou navegante solitário,

Interior de mim mesmo,

Da terra que me gerou,

Para viver nesse aquário,

Entre o ódio e o amor,

E nem todo mundo

É feliz aqui,

Do ir e do vir,

Nesse açoite

Da canção da noite.

 

A canção da noite,

Me transporta,

Para o vale silvestre,

Ao encontro do mestre.

 

Sou canção da noite,

Das criaturas noturnas,

Fantasma do conhecer,

Que me traz dor e sofrer.

 

Na canção da noite,

Sou fluxo e refluxo,

Morte que se arrasta,

Como ladra macabra,

Que se torna soberana,

Como sua espada tirana.

 

A canção da noite,

É sepulcro dos companheiros,

Que se foram cedo,

Levando nosso enredo.

 

É insondável

O que os olhos não penetram,

E me afogo,

No insaciável,

Da fonte que jorra,

Desejos amantes cantantes.

 

Na canção da noite,

Das estrelas cintilantes,

Vagalumes celestiais,

De luzes vagantes,

Que me indagam o porquê

Da existência do ser.

 

Ao cruzar as montanhas,

A canção da noite,

Me leva em suas entranhas

Para morar em seu luar,

Bem longe desse lugar.

 

 

 

 

A MULHER RENDEIRA E O ERUDITO

Depois de tanto fuçar nos estudos filosóficos, teológicos, da ciência, ler milhares de livros e colocar seu conhecimento e sabedoria acima da cabeça dos outros, o erudito foi acometido pelo vírus do sofrimento e da dor.

Não conseguiu desvendar os enigmas e os mistérios que nos cercam as origens planetária, do criador da vida, do infinito e o que há além da morte. Ele estava sendo consumido pelos próprios pensamentos, vivendo em compartimentos empoeirados. Suas pequenas máximas não alcançavam a fé.

Então, resolveu sair por aí pelo Nordeste para ouvir os mais humildes, os artesãos, os poetas, os cordelistas, repentistas e as expressões culturais do povo mais simples com suas crendices. Em suas andanças, no sertão mais agreste e profundo nordestino, terminou por se encontrar com uma velha senhora rendeira de bilros, que também sabia fiar, pacientemente, seu tecido naquele antigo tear que nos tempos atuais chamam de geringonça.

Por alguns instantes ficou embasbacado, boquiaberto ao ver a habilidade daquela mulher com os bilros e os fios entre os dedos das mãos no compasso certo com os pés no pedal, num ritmo perfeito da fiação, bem diferente do seu cérebro intrincado e confuso.

Deu um bom dia, ou boa tarde, sei lá, e cumprimentou a senhora em voz baixa, meio sem jeito, com receio de atrapalhar seu trabalho. Ao sentir sua inquietação, e ao olhar aquele senhor de barba de intelectual, aparência fina e educado, como é costume da gente do interior, a rendeira a ele se dirigiu:

– Pode falar, seu doutor, não fique aí parado. Seja bem-vindo à nossa renda e ao tear, profissões originárias e tradicionais das mulheres imigrantes portuguesas açorianas, mas que está se acabando com o tempo. As jovens agora só querem ir para as cidades de celular na mão.

– Como a senhora aprendeu essa arte tão preciosa e admirável de confeccionar fios que se entrelaçam, sem se embaralhar? – Indagou o doutor.

– Ah, seu doutor, tudo isso vem desde minha tataravó, que passou para minha bisavó e daí para minha avó, minha mãe e eu foi a única das sete filhas que aprendeu esse ofício de rendar. Ela contou a história de dona “Santinha”, Maria Amélia Furtado, a primeira rendeira famosa por essas redondezas. Tudo indica que ela era do Ceará.

O erudito, homem do querer esmiuçar, quis saber de mais coisas e até pediu desculpas se não estava atrapalhando sua obra. Poderia confundir sua ágil mão. Por um momento, ficou a matutar como o complicado se tornava simples e com resultados concretos no final, diferente das suas indagações filosóficas que paravam em algum ponto, confusas e sem respostas. Sua rotina era um quebra-cabeça.

–  Não atrapalha não, seu doutor! Aqui a gente já faz tudo de olhos fechados, sem errar os pontos das linhas nos lugares certos. Pode ir falando que escuto. Passo o dia todo aqui sentada, no meu silêncio interior, que nem ouço o barulho dos humanos, só o canto dos pássaros e o gado berrando na cacimba quando bate a seca e a falta de água.

O erudito quis saber de mais detalhes sobre seu trabalho, quais fios usava, se não era cansativo, estressante e se aquilo dava algum sustento para a família, isto é dinheiro, “bufunfa”, grana.

– Aqui é uma terapia de vida e me sinto bem e feliz com isso. Faço com amor. Nada de estresse e cansaço! Evita a gente ficar pensando em besteiras. Nem me preocupo com o tempo e até entro pela noite com o nosso velho lampião. Normalmente utilizamos os fios de linho, algodão, seda, viscose e outros mais.

– Quanto a renda das rendas, seu doutor, dá para sobreviver e não passar fome com a venda de colchas, lençóis, fronhas, redes, blusas e outras peças artesanais que alguém compra ou levamos para as feiras das cidades. Tudo isso já é um outro processo depois da fiação no bilro e no tear.

Curioso, como todo estudioso do pensar e do saber, o doutor quis ver o produto final, que ele não consegue quando se depara com as dúvidas sobre Deus e outros mistérios existenciais e espirituais. Em sua mente, os temas e assuntos sempre estão além da sua cabeça. Mesmo assim, o mestre erudito acha entender de tudo.

A mulher rendeira o levou para uma sala apertada e mostrou suas rendas bem trabalhadas, feitas com todo carinho e dedicação, sem mistérios.

Ele ficou extasiado a olhar as rendas e bordados. Com as mãos, sentiu aquela textura fina, os traçados, os fios a deslizar e o cheiro do tecido em suas narinas.

Repentinamente bateu um estalo em sua cabeça, e o erudito propôs comprar toda produção da rendeira, e olha que nem pechinchou preço.  O mais inesperado é que ele terminou por fazer uma parceria com a rendeira para adquirir seus produtos.

Depois daquela longa conversa experimental e prática, do hotel retornou para a capital e lá resolveu deixar tudo, inclusive sua cátedra como professor. Montou uma loja de rendas artesanais nordestinas com o nome “Mulher Rendeira”, para divulgar aquela cultura secular, ou porque não, milenar.

Passou a ser mais feliz, alegre, emotivo e baniu o sofrer. Deixou seus colegas estupefatos e sem entender aquela brusca mudança de atitude.

A mulher rendeira continuou a rendar, com toda paciência do mundo, e até melhorou de vida como fornecedora do novo cliente comerciante que garantiu a si mesmo não explorar sua mão-de-obra, ou de fada da artista da renda. “Olê, mulher rendeira,/olê mulher rendar,/me ensina a fazer renda/que te ensino a namorar”…

 

 

O FEMEAPÁ

Carlos González – jornalista

O carioca Sérgio Porto exerceu nas décadas de 50 e 60 várias atividades. Foi jornalista, escritor, teatrólogo e compositor. Uma das suas maiores criações como cronista do jornal “Última Hora” foi o “Festival de Besteiras que Assola o País”, o “Febeapá”, que ele assinava como Stanislaw Ponte Preta, cuja característica era criticar, com humor refinado, a ditadura militar e o moralismo social. Nos dias de hoje, Sérgio, se estivesse entre nós (morreu em setembro de 1968, com 45 anos), certamente teria idealizado o “Femeapá” – “Festival da Mentira que Assola o País”.

O criador das “Certinhas do Lalau” (concurso que reunia vedetes do teatro rebolado) elegeria Jair Bolsonaro como o principal protagonista das mentiras que, nos últimos anos, difundidas nas redes sociais, têm destroçado lares e amizades, incutido a desinformação de forma odiosa entre a população inculta, fácil de enganar, e sendo intolerante com a governança do país e o relacionamento entre os três poderes. Mentiroso e negacionista, ele tinha prometido “se recolher” se perdesse as eleições de 2022.

Provavelmente, Bolsonaro não teria passado mais de 30 anos como membro do baixo claro, entre sete mandatos como deputado federal e quatro como vereador da cidade do Rio de Janeiro, se no dia 16 de junho de 1988 o Superior Tribunal Militar (STM) – a maioria dos seus membros fora nomeada pela ditadura militar de 1964 a 1985 – não tivesse feito vista grossa para os planos terroristas do capitão Jair Messias Bolsonaro, absolvendo-o por nove votos a quatro. Cinco meses antes, em primeira instância, os juízes pediram, por unanimidade, a expulsão do militar “por ter praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe”.

O capítulo que juntou insurreição com traição foi ao ar em 3 de setembro de 1986 com a publicação na revista “Veja” de um artigo assinado por Bolsonaro, reclamando dos baixos soldos pagos aos praças (soldado a aspirante) e oficiais subalternos (tenente e capitão). O crime de insubordinação lhe rendeu 15 dias de prisão. Um ano depois a mesma revista publicou uma entrevista, ilustrada com um croqui do funcionamento de uma bomba, com o ex-presidente detalhando um plano para espalhar o terror nos quarteis e no sistema de abastecimento de água do Rio.

A imprensa mentiu

Trinta e dois anos depois da audiência, no STM, o jornalista Luiz Maklouf Carvalho conseguiu o áudio das cinco horas da sessão secreta. Em seu livro “O Cadete e o Capitão” (Editora Todavia) ele relata em 700 páginas a negativa de Bolsonaro a todas as acusações; a pressão impositiva na sala do Tribunal do general Newton Cruz (apontado por crimes contra a humanidade durante a ditadura e mentor do atentado ao Riocentro em 1981) e do general João Figueiredo (último presidente do regime militar); a defesa – “meus comandados sempre têm razão” – do ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves.

Maklouf mostra que os participantes dedicaram grande parte da sessão para insultar a imprensa, que havia se livrado três anos atrás dos grilões da censura imposta pelos militares golpistas. A repórter Cássia Maria, que ouviu Bolsonaro em quatro encontros, com a presença de testemunhas, foi chamada de famigerada. A “Veja” foi classificada como “um reduto de judeus argentinos em busca de dinheiro”.

Para o escritor, não resta dúvida que a aversão dos militares à imprensa ajudou a absolver Bolsonaro, que ganhou notoriedade entre cabos e sargentos, que o elegeram vereador pela cidade do Rio, e sete mandatos em Brasília. Os votos que ele e sua clã receberam foram digitados nas urnas eletrônicas, cuja segurança contestou e nunca provou, ao revelar ser um mau perdedor em 2022.

Maklouf acredita que um dia virão à tona as atividades dos 11 anos passados pelo tenente Bolsonaro na caserna, nos últimos anos da ditadura. Sabe-se, apenas, que ele servia numa unidade de Artilharia e da sua amizade com o general Newton Cruz, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI). Após despir a farda, na condição de parlamentar e presidente, sempre exaltou as figuras dos torturadores que agiam nos porões da ditadura, e continua negando que o Brasil viveu 21 anos sob um regime de exceção.

Após tomar posse na Presidência da República, Bolsonaro incentivou a criação, não oficialmente, do “Gabinete do Ódio”, vinculado ao Palácio do Planalto. Sob a orientação dos filhos, os “fakes news” passaram a abarrotar as redes sociais, sendo as notícias aceitas como verdade por 89,77% dos eleitores bolsonaristas, segundo a organização Avaaz, exercendo uma influência muito grande no resultado do pleito presidencial de 2018. Contrapondo-se à desinformação, os jornais criaram uma seção de esclarecimento aos leitores.

Em abril, a Câmara dos Deputados rejeitou a proposta que tinha o objetivo de impedir os “fakes news”. Para Giovanni Cerini (PL-RS), “a iniciativa visa inviabilizar o projeto eleitoral de Bolsonaro”. Mais uma das muitas imoralidades patrocinadas por esse nosso Legislativo. Outros atos pusilânimes (anistia às irregularidades, inclusive financeiras, cometidas pelos partidos políticos; a condenação de crianças estupradas e a generosidade com os estupradores; e a proibição das delações premiadas) estão na pauta do Congresso para serem discutidos após o recesso do meio do ano.

Com Bolsonaro, 1º de abril é todo dia. A dedução é do site “Aos Fatos”, cujos pesquisadores checaram que em 1.185 dias de governo o ex-presidente deu 5.145 declarações falsas ou distorcidas, acolhidas por uma plateia de gente fanática e fundamentalista, que defende uma pauta de costumes semelhante a imposta pelo Talibã aos afegãos.

O jornalista Ruy Castro, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), escreveu em sua coluna na “Folha”, “que Bolsonaro tem processos e acusações suficientes para enjaulá-lo por 500 anos. Isso ainda não aconteceu porque a Justiça tem de seguir o seu curso “normal”. Vitorioso na eleição ou no golpe, implantaria uma ditadura que nos faria sentir saudade dos militares”.

 

 

CONVERSA DE CACHORROS

Antigamente os cachorros eram praticamente todos iguais e não tinham esse tratamento especial de hoje (nem todos). Não existiam lojas de Pet Shop e eram raros os veterinários para cuidá-los. Hoje, muitos têm até psicólogos, terapeutas e são melhores tratados que milhares de humanos. No entanto, os cachorros de rua continuam por aí abandonados e ao relento, mas se livraram das carrocinhas malvadas que eram um tormento e chororô.

Tem ainda o cachorro do rico e do pobre, o nordestino e o valentão feroz. Um dia essa cachorrada resolveu se reunir para bater aquele papo sério e contar os seus problemas, vantagens e histórias, como ocorre entre humanos, inclusive crianças, jovens e adultos, uns mais abastados e outros da pobreza. Cachorro também tem divisão de classes e é até marxista comunista.

No encontro, o primeiro a abrir a boca foi o cachorrinho (a) de madama e soltou seu escárnio e desprezo com seus irmãos de rua. Com toda aquela etiqueta e pose de privilegiado foi logo falando.

– Vocês vivem por aí sujos, pulguentos, comendo restos e sobras de comidas que dão, dormindo nas calçadas, marquises e no frio, fazendo suas “vergonhices” trepando até em público. Levam até chutes e pontapés desses brutos. Muitas vezes são até envenenados por importunações.

– Eu tenho casa confortável, como do bom e do melhor, vestido (a), sou vacinado, tenho meu veterinário e a madama me faz aquele carinho gostoso que excita até meu pingolinho. Ela toma banho nu comigo que me deixa doidão. Sou chamado de filho e que faço parte da família. O dono também faz aquele chamego e tem mais: tenho nome de gente famosa, de filósofo, poeta e celebridades. Ah, ganho festa de aniversário com bolos, decoração, velas, presentes e parabéns.

O cachorro (a) rico metido a besta esnobou o quanto pode, mas saiu de lá um vira lata peduro atrevido e outros amigos e começaram a jogar duro contra o serelepe boçal de raça estrangeirada de nomes complicados.

– Vocês não passam de uns manipulados objetos, brinquedos de diversão nas mãos dessas peruas e babacas da elite nojenta. São usados para pura diversão. Sua turma não tem liberdade de correr ruas e avenidas, não sabe se virar para sobreviver e nunca aprendeu atravessar uma rua na faixa certa, sem ser atropelado pelos carros.

Do grupo apareceu outro e disse mais umas boas de olho em riste fazendo tremer os intrometidos. Jogou duro! Como diz no popular, soltou os cachorros nos riquinhos perfumados.

– Experimentam sair por aí pelas cidades e logo serão mortos e massacrados. Vocês só sabem viver em apartamentos ou casas fechadas entre quatro paredes com horário marcado para sair para cagar e mijar fora. Nem têm o direito de transar com o parceiro ou a parceira que quer. O casamento e combinado. Aqui nossa comunidade é socialista onde um ajuda o outro e andamos em bando. A nossa prosa é bem mais interessante que essa conversa mole e fresca de burguês.

No meio da fuzarca, entrou outro de uma raça diferente esquisita e começou aquele bate boca acirrado. Pura baixaria! Os vira-latas chegaram juntos e encararam com dentes cerrados, com intenção de bater forte e partir para a briga. Foi aquela algazarra, e os mauricinhos e patricinhas murcharam as orelhas.

O cachorro nordestino, como cabra da peste, não deixou por menos com uma peixeira do lado.

– Qual é! Quer encarar? Vocês nem sabem nem o que é fome e ser retirante de lugar em lugar. Nosso couro é duro como de jacaré e somos bons de porrada, arretados e não temos medo de fantasmas. Sabemos caçar e já andamos até no cangaço. Botou para quebrar.

Nisso, entraram dois valentões, um rottweiler e outro pit bull, daqueles tipos guarda-costas e leões de chácaras, rosnando como feras selvagens com garras dentárias de estranguladores.

– Ei, vocês todos aí, vamos acabar com essa putaria, com essa pouca vergonha, coisa de cachorrada. Melhor ir circulando cada um para seus lugares, bando de fanfarrões! Querem apanhar?

Interessante! Em nossa sociedade brasileira acontecem coisas semelhantes no aspecto social e comportamental humano. Os mais fortes de poder são os que mandam e obedecem quem tem juízo.

CANTO NOTURNO, A CANÇÃO PARA DANÇAR E A CANÇÃO DO SEPULCRO

Com tons poéticos e filosóficos, Nietzsche, em “Assim Falava Zaratustra,” diz que é insondável o que os olhos não podem penetrar e nele me afogo. A sabedoria e a vida se parecem. Têm seu anzol de ouro.

Na noite, falam mais alto todas as fontes que jorram, e minha alma também jorra. Todas as canções dos amantes despertam na noite. Minha alma é uma canção de um homem que ama. Em mim há uma coisa insaciável que é o desejo de amar e fala a linguagem do amor. Sou noite e, se não fosse, minha solidão seria estar rodeado de luz.

O filósofo compara as estrelas cintilantes como vagalumes celestiais e expressa que ficaria cheio de ventura em receber vossa luz, mas vivo em minha própria, absorvendo as chamas que de mim brotam.

Para ele, a mão que nunca se cansa de dar tem uma sorte maldita. Ó eclipse do meu sol! Ó desejo de desejar! Ó fome devoradora na saciedade. Em sua visão, há um abismo entre dar e receber. Aquele que sempre dar corre o risco de perder o pudor. Aquele que reparte sem cessar acaba por calejar as mãos e o coração.

“Meus olhos já não se arrasam de lágrimas ao ver a vergonha dos que imploram. Minha mão endureceu demais para experimentar o tremor das mãos cheias”. Mais adiante, fala que muitos sóis gravitam no espaço vazio. Sua luz diz a tudo o que é obscuro.

Como tempestade, voam os sóis por suas órbitas. É a maneira deles de viajar. Só as criaturas noturnas tiram vosso calor do luminoso. Tudo é gelo em torno de mim e minha mão se queima ao tocar o gelo. Se é noite, por que hei de ser luz, ter sede do noturno e solidão. É noite e falam todas as fontes que jorram. Minha alma é também uma fonte borbulhante. Despertam todas as canções dos que amam. Minha alma também é uma canção que ama.

Em canção para dançar, Nietzsche afirma ser advogado de Deus perante o diabo que é o espírito do peso. No vale, quando as donzelas veem Zaratustra, elas param, mas ele manda prosseguir. Diz ser selva e noite de árvores sombrias, mas quem não se amedrontar, encontrará sob meus ciprestes coroas de rosas.

“Saberá também encontrar o pequenino Deus preferido das donzelas dançarinas. Está junto da fonte, tranquilo, de olhos fechados. Ele pede que as dançarinas não se zanguem com sua presença, se contra o pequeno Deus ando tanto irritado. Ele pode gritar e chorar.

Da sabedoria, sempre estamos sedentos dela e não nos saciamos. Olhamos através de seu véu, sempre versátil e obstinada. Pode ser má e falsa e me afoga no insondável. Ela diz: Tu queres, tu desejas, tu amas! E só por isso elogias a vida.

De acordo com sua filosofia, ninguém pode responder pior do que quando diz a verdade à sua sabedoria. “Eu nada amo mais profundamente do que a vida”…

Por que? Para que? Onde? Como? Não é uma loucura viver ainda. É a noite que assim me interroga. Perdoai-me a tristeza.

Na canção do sepulcro, ele fala de uma ilha taciturna onde lá estão os sepulcros da sua juventude. Vos todos, olhares de amor, momentos divinos! Como vos desvanecestes depressa! Penso hoje em vós como em meus mortos.

Dos mortos prediletos, afirma chegar a si um suave perfume que alivia seu coração e faz correr as lágrimas. Esse perfume comove o coração do navegante solitário.

Nietzsche fala dos fugitivos que morreram para ele. Sou ainda o herdeiro e a herança de vosso amor onde florescem as virtudes silvestres de todas as cores. Não fugistes de mim e nem eu de vós. Não somos culpados reciprocamente de nossa infidelidade.

Eu te amaldiçoou, oh morte soberana que abreviastes minha eternidade, como se interrompe um som na fria noite. “Matastes as visões e os prodígios mais caros da minha juventude. Tirastes de mim meus companheiros de jogo, os espíritos bem-aventurados. Em memória deles, deposito esta coroa e esta maldição.

“Para mim todos os seres devem ser divinos. Me assombrastes com imundos fantasmas. Na sabedoria da minha juventude, todos os dias devem ser sagrados para mim. Assim me falava outrora a sabedoria de minha juventude. Afasta de mim tua sombra fantasmagórica”.

“Outrora eu suspirava por bons presságios e então lançastes em meu caminho uma monstruosa coruja. Como cego percorri caminhos felizes e neles lançastes vossas imundices. Envenenastes meu melhor mel e o zelo de minhas melhores abelhas”.

Zaratustra reclama que a morte entoou para seus companheiros uma surda e lúgubre melodia. Cantor assassino, instrumento da maldade, tu, que eras o mais inocente. Eu estava pronto para a mais bela dança e tu com teus sons mataste meu embalo. No final da sua conversa, ele diz que onde há sepulturas há ressurreições.

 

CARYBÉ, O ESCULTOR DOS ORIXÁS (2)

(Chico Ribeiro Neto)

Posto hoje a segunda parte da minha entrevista com Carybé, publicada na revista “Manchete” em 26/07/75.

Carybé faz uma afirmação de fé: “A força da Bahia dá mais verdade à civilização”.

Vamos ao texto:

“Carybé nasceu na cidade argentina de Lanus, de pai italiano e de mãe gaúcha de Santa Maria da Boca do Monte. Os pais tinham se casado em Missões, na Argentina, mas logo depois do casamento foram se instalar em Mato Grosso onde nasceu o filho mais velho, Arnaldo. Depois se transferiram para o Paraguai, onde nasceram mais duas irmãs. Na cidade de Pousadas, nas Missões, veio ao mundo o quarto filho, que também virou pintor.

Andarilho, o velho decidiu voltar para a Itália, onde Carybé viveu os primeiros oito anos de sua existência. Até hoje costuma relembrar que sua primeira língua foi o italiano. Depois da Primeira Grande Guerra, a família voltou para o Brasil estabelecendo-se no Rio de Janeiro, na zona da rua Pedro Américo.

Em 1929, os rapazes da família ganharam uma empreitada para a decoração do Carnaval dos três grandes hotéis da época: Copacabana Glória e o Palácio.

“Ganhamos uma verdadeira fortuna: 19 contos de réis. Aí, o velho inventou de viajar de novo e voltamos à Argentina, onde fiquei mandando crônicas e desenhos para os jornais.”

 

Carybé trabalhou em jornal durante 22 anos. Mas seu irmão curtia cerâmica e os dois começaram a fabricar louças e azulejos. Carybé entrou de forneiro depois ajudou a pintar as peças.

Em Buenos Aires, quando a barra começou a pesar, empregou-se numa fábrica de caixotes, de onde saiu com as mãos totalmente arrebentadas.

Sobre a história de seu nome, há várias versões. Como sempre, a verdadeira é a mais banal. Os dois irmãos artistas, Roberto e Hector Bernabo, eram bastante procurados. Mas sempre dava confusão quando alguém chamava um Bernabo. Hector tinha sido escoteiro quando criança, e entrou na Patrulha dos Peixes, onde ficara sendo um Carybé. Havia gostado do apelido por achá-lo sonoro e um belo dia, depois de grande, para acabar com a confusão entre os Bernabo, resolveu chamar-se apenas de Carybé. Pegou.

 

Artista inato, procurou uma vez frequentar um curso de pintura, em escola noturna que tinha professor, modelo e tudo.

“Mas achei chato, e em vez de ficar diante dos modelos posando achei melhor sair para a rua, e observar. Várias vezes fui convidado a ensinar em escolas de Belas-Artes. Numa, aceitei. Iria ensinar o quê? Nunca aprendi. Não sei fazer um quadro de uma vez. Começo apago tudo, deixo ele de castigo uns 15 dias contra a parede. Depois pego de novo, vejo o que está ruim e vou continuando. Mas acho que a escola vale, pelo menos para quem tem recursos porque fornece a ajuda de pessoas mais experientes, de eventuais orientadores.”

(Continua na próxima semana).

(Veja crônicas anteriores em leiamaisba.com.br)

 

 

 

FLORES DO MEU QUINTAL

Um quintal sem flores é como uma alma sem cores. Nos momentos de mais introspecção ou quando se sente por dentro um vazio, elas lhe transportam para um outro lado do além, até mesmo para longe do conhecer e do saber que, na maioria das vezes, trazem sofrimento e dor. Elas podem não lhe dar uma resposta para seus enigmas e mistérios existenciais da vida, mas penetram em seu espírito e o faz aquietar-se, como se fossem calmantes naturais que fazem parar o tempo do passado, do presente e do futuro. Nas flores do meu quintal ainda tenho a me visitar o beija-flor e outros pássaros que cantam, encantam e espantam meus males. Elas são como almas vivas no meu caminho solitário do desconhecido. Dizem que também sou criador porque fui gerado da terra e a ela retornarei. Flores do meu quintal que não se cansam de sorrir para mim na alegria e na solidão do meu ser. São sábias as flores do meu quintal, como se fossem canções em noites de sarau. São poesias que não fazem distinção de crenças e fés. São curas para nossas doenças e dançam suavemente ao sabor do vento, tanto faz ser do norte ou do sul, do leste ou oeste. Elas são como rainhas e vinhas do nosso sertão Nordeste, tão agreste que abriga a flor do mandacaru.

 

 

 

 

 

 

 

 





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