A MORTE É SOBERANA
– Lá vem você com este assunto triste e macabro – disse um amigo meu quando falávamos sobre questões existenciais, vida na terra, origens e seus mistérios que nem a ciência é capaz de desvendar.
– Sei que quase ninguém gosta de tratar do tema e até faz de conta que ela não existe, principalmente os ricos e poderosos que fazem suas maracutais, usurpam dos direitos dos outros, roubam, corrompem, só pensam em se empanturrar no dinheiro e nas coisas materiais como se fossem eternos – respondi.
O filósofo Nietzsche, que morreu louco, dizia que a morte é como uma serpente que se arrasta como uma ladra e depois se torna uma soberana. Se comentamos e louvamos tanto a vida e ela está sempre presente na literatura, na poesia, na música e nas artes em geral, por que não discutir também sobre a morte? A morte só existe porque existe vida.
A vida tem seus aperreios e glórias, talvez tanto quanto a morte. Quer queira ou não, ela está sempre presente entre nós até com nomes esquisitos dados pela mídia, como curva da morte, trevo da morte, encruzilhada da morte e por aí vai. Meu amigo deu até risadas com isso, mas não é coisa para se rir.
Não quero entrar aqui no cerne filosófico e teológico da sua existência, do onde viemos, o que somos e para onde vamos. Isso nos leva à loucura do indesvendável do ser e só paramos na fé e na religião, nos conformando com o pouco que temos, uma prova das limitações do conhecimento e do saber.
Por medo, ou sei lá qual motivo, muitos acham que não se deve falar dela para não dar azar, não trazer maus espíritos. Foi mais ou menos nesse pensar que meu amigo procurou se desvencilhar desse papo sobre a soberana.
– Qual é cara, vamos conversar sobre coisas boas! Como sou chato continuei a dizer para ele que, como a vida, a morte tem seus imprevistos, suas artimanhas e se apresenta de várias maneiras e faces. A imagem que temos dela é de uma alma penada vestida de branco com uma máscara no rosto e uma foice na mão.
Ninguém gostaria de se encontrar com ela para bater uma prosa. Fala sério! Quando alguém a ver, tenta cortar por fora, mas não tem jeito, ela está por aí como enigma e mistério e cada religião a define da sua maneira. Os espíritas, por exemplo, dizem que ela não existe e que é só uma passagem para a vida.
Os cristãos católicos e evangelhos mandam tratá-la com resignação e orientam passar a vida se preparando para ter uma boa morte. Não sabia que ela era boa, mas uma traiçoeira que nos tira o prazer de vida, do curtir, do construir e do criar.
Em algumas civilizações ela é festejada com pompas, danças, música e rituais alegres na crença de que ela é vida e espírito ancestral que vai viver em outra parte, até nas florestas e nas montanhas.
Tem aquela história do barqueiro Caronte grego, filho de Érebo, que transporta os mortos por uma moeda para a outra margem do rio turvo. Ninguém consegue ver o seu rosto. Essa ideia mitológica pode ter vinda dos povos egípcios ou mesopotâmios. A moeda é um óbolo de Caronte (forma de pagamento) colocada na boca dos mortos antes do enterro. O rio dividia o mundo dos vivos do mundo dos mortos.
Tem gente que quando está naquela angústia, naquele sufoco, com graves problemas para resolver, numa fase depressiva, na pobreza, na fome, na prisão e onde nada dá certo, pede até que ela venha logo. Nessas ocasiões, aí é que ela não vem mesmo e se faz de pirracenta malvada. Não dá liga e vai dar seus passeios por outras bandas.
Já imaginou como ela tem várias maneiras de se apresentar! Às vezes é súbita e ligeira. Chega logo cedo nas crianças e jovens, sem pedir licença e causa muito sofrimento e dor. Outras vezes deixa você ficar bem velho e depois lhe joga num leite de uma cama a penar, em casa ou num hospital.
Na vida, é preciso também ter a arte de enganá-la. Quando ela bater em sua porta, não atenda ou diga que está muito ocupado numa atividade, como a escrever um poema, fazendo um texto sobre ela, enchendo seu ego, um conto, um romance, uma peça teatral, um roteiro de cinema ou outra atividade qualquer e convença a retornar outro dia.
Vá protelando o quanto puder, mesmo sabendo que a soberana é persistente e nunca vai desistir. Um, dia chegará sua hora. Existem situações, porém, que são os próprios homens e mulheres que atalham o natural e se tornam próprios mentores da soberana, quando na ira e na violência tiram a vida do outro.
O Estado, por exemplo, o monstro dos monstros, é a própria morte ou faz um pacto com ela e parte para o extermínio. As guerras são feitas em nome dela por ambição, ganância e poder. É, fiquei falando só, porque meu amigo não me aturou e caiu fora.