Depois de tanto fuçar nos estudos filosóficos, teológicos, da ciência, ler milhares de livros e colocar seu conhecimento e sabedoria acima da cabeça dos outros, o erudito foi acometido pelo vírus do sofrimento e da dor.

Não conseguiu desvendar os enigmas e os mistérios que nos cercam as origens planetária, do criador da vida, do infinito e o que há além da morte. Ele estava sendo consumido pelos próprios pensamentos, vivendo em compartimentos empoeirados. Suas pequenas máximas não alcançavam a fé.

Então, resolveu sair por aí pelo Nordeste para ouvir os mais humildes, os artesãos, os poetas, os cordelistas, repentistas e as expressões culturais do povo mais simples com suas crendices. Em suas andanças, no sertão mais agreste e profundo nordestino, terminou por se encontrar com uma velha senhora rendeira de bilros, que também sabia fiar, pacientemente, seu tecido naquele antigo tear que nos tempos atuais chamam de geringonça.

Por alguns instantes ficou embasbacado, boquiaberto ao ver a habilidade daquela mulher com os bilros e os fios entre os dedos das mãos no compasso certo com os pés no pedal, num ritmo perfeito da fiação, bem diferente do seu cérebro intrincado e confuso.

Deu um bom dia, ou boa tarde, sei lá, e cumprimentou a senhora em voz baixa, meio sem jeito, com receio de atrapalhar seu trabalho. Ao sentir sua inquietação, e ao olhar aquele senhor de barba de intelectual, aparência fina e educado, como é costume da gente do interior, a rendeira a ele se dirigiu:

– Pode falar, seu doutor, não fique aí parado. Seja bem-vindo à nossa renda e ao tear, profissões originárias e tradicionais das mulheres imigrantes portuguesas açorianas, mas que está se acabando com o tempo. As jovens agora só querem ir para as cidades de celular na mão.

– Como a senhora aprendeu essa arte tão preciosa e admirável de confeccionar fios que se entrelaçam, sem se embaralhar? – Indagou o doutor.

– Ah, seu doutor, tudo isso vem desde minha tataravó, que passou para minha bisavó e daí para minha avó, minha mãe e eu foi a única das sete filhas que aprendeu esse ofício de rendar. Ela contou a história de dona “Santinha”, Maria Amélia Furtado, a primeira rendeira famosa por essas redondezas. Tudo indica que ela era do Ceará.

O erudito, homem do querer esmiuçar, quis saber de mais coisas e até pediu desculpas se não estava atrapalhando sua obra. Poderia confundir sua ágil mão. Por um momento, ficou a matutar como o complicado se tornava simples e com resultados concretos no final, diferente das suas indagações filosóficas que paravam em algum ponto, confusas e sem respostas. Sua rotina era um quebra-cabeça.

–  Não atrapalha não, seu doutor! Aqui a gente já faz tudo de olhos fechados, sem errar os pontos das linhas nos lugares certos. Pode ir falando que escuto. Passo o dia todo aqui sentada, no meu silêncio interior, que nem ouço o barulho dos humanos, só o canto dos pássaros e o gado berrando na cacimba quando bate a seca e a falta de água.

O erudito quis saber de mais detalhes sobre seu trabalho, quais fios usava, se não era cansativo, estressante e se aquilo dava algum sustento para a família, isto é dinheiro, “bufunfa”, grana.

– Aqui é uma terapia de vida e me sinto bem e feliz com isso. Faço com amor. Nada de estresse e cansaço! Evita a gente ficar pensando em besteiras. Nem me preocupo com o tempo e até entro pela noite com o nosso velho lampião. Normalmente utilizamos os fios de linho, algodão, seda, viscose e outros mais.

– Quanto a renda das rendas, seu doutor, dá para sobreviver e não passar fome com a venda de colchas, lençóis, fronhas, redes, blusas e outras peças artesanais que alguém compra ou levamos para as feiras das cidades. Tudo isso já é um outro processo depois da fiação no bilro e no tear.

Curioso, como todo estudioso do pensar e do saber, o doutor quis ver o produto final, que ele não consegue quando se depara com as dúvidas sobre Deus e outros mistérios existenciais e espirituais. Em sua mente, os temas e assuntos sempre estão além da sua cabeça. Mesmo assim, o mestre erudito acha entender de tudo.

A mulher rendeira o levou para uma sala apertada e mostrou suas rendas bem trabalhadas, feitas com todo carinho e dedicação, sem mistérios.

Ele ficou extasiado a olhar as rendas e bordados. Com as mãos, sentiu aquela textura fina, os traçados, os fios a deslizar e o cheiro do tecido em suas narinas.

Repentinamente bateu um estalo em sua cabeça, e o erudito propôs comprar toda produção da rendeira, e olha que nem pechinchou preço.  O mais inesperado é que ele terminou por fazer uma parceria com a rendeira para adquirir seus produtos.

Depois daquela longa conversa experimental e prática, do hotel retornou para a capital e lá resolveu deixar tudo, inclusive sua cátedra como professor. Montou uma loja de rendas artesanais nordestinas com o nome “Mulher Rendeira”, para divulgar aquela cultura secular, ou porque não, milenar.

Passou a ser mais feliz, alegre, emotivo e baniu o sofrer. Deixou seus colegas estupefatos e sem entender aquela brusca mudança de atitude.

A mulher rendeira continuou a rendar, com toda paciência do mundo, e até melhorou de vida como fornecedora do novo cliente comerciante que garantiu a si mesmo não explorar sua mão-de-obra, ou de fada da artista da renda. “Olê, mulher rendeira,/olê mulher rendar,/me ensina a fazer renda/que te ensino a namorar”…