(Chico Ribeiro Neto)

Republicar crônica é igual a café requentado, mas essa que reproduzo hoje, pulicada no jornal “A Tarde” em 22/8/1990, ainda conserva um bom gostinho. Vamos a ela:

Sem pegar o ônibus circular, mas andando no bonde da lembrança, faço um percurso do Grande Grande à Sé, uma trajetória de infância, amor e fé.

No Campo Grande vejo as tardes fogosas do Dois de Julho, quando as meninas recém-tomadas banho balançavam os rabos-de-cavalo dentro de meus olhos. Zezéu, um candidato, pertencia a uma turma do Campo Grande e um dia quase brigamos com eles. Coisa de turma de rua, onde qualquer assobio errado era motivo de chamar pra porrada.

Muita coisa ainda vem do Campo Grande, como as festas dançantes do Cruz Vermelha ou a cerveja no “Brasa”, mas já estou passando pelo Forte São Pedro, onde a feira mudou pro outro lado. Já não se tropeça mais em peixe, e foi ali uma vez que comprei carne de cavalo por carne-de-sol. Quando botei na frigideira espumou tudo. Vem a antiga Manon – onde se tomava um suco de laranja de madrugada, era um acontecimento – e chego perto da Mercês, defronte ao 239, velho pensionato onde cheguei com seis anos e acordava com os primeiros bondes. Dobrando uma esquina caía no Politeama, bom lugar pro “baba” e onde uma vez quase ganhamos pra “Escolinha”, time que tinha o futuro André Catimba, já catimbeiro.

Aproxima-se o Rosário, que, talvez por ser pequeno, sempre achei um trecho tranquilo. A maior lembrança do Rosário é a banca de maçã na esquina. Logo adiante, o Clube Comercial, de grandes festas, coração palpitante ao dançar com as primas que me ensinavam os primeiros passos. Festa de radiola, parou, tem que virar o disco.

Lá vem a Piedade. Um pouco antes dela, a Igreja de São Pedro, em cuja esquina comprava os “catecismos” de Zéfiro, um delicioso pecado mortal. A turma da Piedade, à qual pertencia meu irmão mais velho, Luiz, e eu nem podia chegar perto: “Vá pra casa que tá na hora”. Boa de briga, a turma da Piedade acontecia no clube Fantoches, mas aprontava mesmo era sábado de noite e domingo de tarde, na própria praça. Muitos da turma já eram conhecidos dos policiais: “Você de novo!”

Instituto Histórico, onde fazia pesquisas às 2 horas da tarde, morrendo de sono. Um pouco adiante, a loja das “Mil Meias”, um nome mais ou menos assim, e então a esquina da “Primavera”, sorvete da Kombi do sino. Exatamente defronte à Florensilva, do lado de cá, um murinho que sempre teve encanador.

Defronte ao Relógio de São Pedro a pensão de Dona Quinquinha, grande escadaria que nos levava em cheio a um quadro de Iemanjá. Eu já acordava no coração da cidade. Era escovar os dentes, descer e entrar no ritmo. Foi ali, perto do Relógio, que brilhou uma namorada de Carnaval.

Antes de pegar o caminho do São Bento, uma paradinha junto a um banco em volta da árvore. Ali ficava o velho que nos vendia pedaços de filme para olhar de monóculo.

Rua do Paraíso, onde trabalhei na Tipografia São Bento, dobrando folhas de missal, e depois o Ginásio de São Bento, onde fiquei cinco anos, sendo um do antigo quinto ano com “prova de admissão”. Vêm as imagens do ginásio: jambo roubado, tamarindo, o “baba” de tarde, a coca sorvida de um só gole e o quebra-queixo comprado na Avenida Sete para distrair a fome.

Desço a Ladeira de São Bento e sinto medo de cair no chão, empurrado pelos foliões do primeiro trio elétrico que vi. Já contaminado, fazer o balão na Carlos Gomes e depois voltar com o trio até os Aflitos, suado e feliz. O Campo Grande leva o Carnaval e a Carlos Gomes traz de volta. Antes, subíamos até a Sé.

Sempre pensei no dia em que aquelas bolas do Edifício Sulacap iam descer a Ladeira da Montanha. A lembrança do pastel chinês no início da Carlos Gomes e da “Winchester”, loja de armas, ambos destruídos para alargar a rua. A Montanha dos primeiros amores, o caminhão que servia comida na madrugada (grande lombo!) e os camelôs do peixe-elétrico. Poucos, na verdade, poucos mendigos.

Logo depois vinha o prédio de “A Tarde”. Ainda não sabia o trabalho que dava para produzir notícia e nem que um dia ia para dentro dela. Achava bonito aqueles caras de papel na mão e sempre agitados. Subo a Ajuda jogando as pernas devagar, escorregando nas lembranças. Aliás, ali sempre tinha um pouco de água escorrendo de algum lugar.

Lembro do primeiro ônibus “frescão” que a Vibemsa colocou e da rodomoça falando pelo microfone, lá na Vitória: “Senhores passageiros, bom dia. Os senhores estão a bordo de uma rodonave da Vibemsa que deverá fazer o percurso Barra-Praça da Sé em aproximadamente 15 minutos. Boa viagem!”. Você se sentia num Boeing.

Vejo a padaria onde comprava doce de jenipapo em tirinhas e vai chegando a Praça da Sé, Bar Brasil, Cine Excélsior, amendoim torrado com areia, laranja descascada, abará azedo, música alta e meu ônibus chegando.

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