Partimos pela manhã rumo a Anápolis para conhecer a Goiás Velha ou Velho (distante mais de 100 quilômetros), à cidade dos fogaréus da quinta-feira da Semana Santa (279 anos de tradição) e terra da grande poetisa Cora Coralina. A minha ansiedade estava mais ligada à artista e ao casario histórico, tombado pela Unesco em 2001 como patrimônio mundial.

Antes de chegarmos paramos no mirante bem estruturado (não é este armengue que estão construindo no Cristo da Serra do Periperi de Vitória da Conquista), para apreciarmos as belas paisagens cheias de montanhas cobertas pelas florestas. De lá avistamos a cidadezinha encravada nos morros e aproveitamos para as fotos. É prazeroso viajar.

Uns contam (são estórias orais) que a vila foi criada por garimpeiros rebeldes vindos de Minas Gerais que ali se instalaram à procura de ouro. Para os guias de turismo, foram os bandeirantes paulistas que alcançaram aquelas serras dos papagaios e das aratacas. Era o auge do ouro.

Na verdade, a história narra que a cidade de Goiás, hoje conhecida como Goiás Velho (Velha) foi a primeira capital do estado até 1937 e surgiu da existência de um vilarejo chamado Arraial de Santana (lá está erguida até hoje a Igreja de Santana), fundado em 1727 por Bartolomeu Bueno, filho de Bartolomeu Bueno da Silva, o bandeirante Anhanguera, vindo de São Paulo.

 

Nascido no apogeu da mineração do século XVIII, o arraial foi elevado por D. Luiz de |Mascarenhas a Villa Boa de Goyaz, no ano de 1739, em homenagem ao bandeirante e aos índios goyazes ou guaiás, que quer dizer indivíduo igual ou semelhante. Dez anos depois, em 1749, a Villa foi elevada à capital da província de Goiás. A cidade se desenvolveu entre morros ao longo do Rio Vermelho.

Vamos deixar um pouco de história de lado e descrever as nossas impressões como visitantes forasteiros. De início, senti um povo um tanto fechado, embora educado, logo na primeira recepção na casa onde residiu a poetisa Cora Coralina. Era por volta das 12 horas e estava fechando para almoço (coisas do nosso Brasil). A atente não procurou muito papo e nem perguntou quem éramos.

No primeiro contato considerei um absurdo ser uma associação privada (a gestão deveria estar a cargo da prefeitura ou de uma instituição pública de ensino) que administra o patrimônio. De forma impositiva colocou taxa única de dez reais para visitação, desrespeitando a lei federal que obriga cobrar meia para pessoas idosos, deficientes ou estudantes.

Tentei argumentar ao defender meus direitos e explicar que não estava correto (a lei teria que ser cumprida e ninguém reclama), como também proibir fotografar seu ambiente sob o argumento de direito de imagem quando já se tornou público). Essa de taxa única é uma usurpação e confesso que foi a primeira vez que vi essa arbitrariedade sem uma interferência do Ministério Público ou de outros órgãos de defesa do consumidor. Culpa também do consumidor da arte.

Procurei não me irritar para não estragar minha viagem de conhecimento cultural. Para não perder tempo, fomos até o prédio antigo, no mesmo estilo da nossa Rio de Contas, na Chapada Diamantina, onde funcionou a Câmara e a delegacia, que se transformou em Museu das Bandeiras. Alguns cartazes explicativos anunciavam “Pessoas Escravizadas. Prisão. Liberdade?”, “Cotidiano na Prisão”, “Sentenças  e a Força” e “Nasce um Museu das Ruínas da Cadeia”.

Além das cadeias separadas onde eram presos os homens e as mulheres que infringiam as leis da época (mulher que tentava estudar), com penas pesadas (chibatadas e torturas contra os escravos), inclusive com condenações de mortes por enforcamento, o edifício abriga também exposições de arte, como da Triz de Oliveira Paiva, intitulada “Minha Alma Sofre em Casa de Argila ou como Pensar a “Terra”.

Tivemos o privilégio de conhecer a obra de Triz (não conhecia), uma mostra para o Museu das Bandeiras. Ela materializa a um só tempo a maneira de cena de um crime e de uma espécie de sítio arqueológico. “Minha Alma Sofre em Casa de Argila” instaura ainda o que se poderia compreender como um entrelugar, em que se encenam negociações morfológico-matéricas. “Terra roubada. Terra usurpada. Terra da usura. Terra da morte e morte da terra” – segundo o apresentador da exposição, Marco Antônio Vieira.

Conhecemos a catedral que estava em reforma e a grande praça (lembrei da Rua Grande, em Conquista que foi destruída) com um chafariz antigo. Num formato de aldeia, em torno dela as casas coloniais ainda bem conservadas. Nas pequenas lojinhas de artesanato e lembranças, algumas com grandes bonecos mascarados do tradicional fogaréu da Semana Santa.

Finalmente fomos até a casa da poetisa que já estava aberta ao público. Mais uma vez questionei a taxa única imposta, e um funcionário reconheceu que eu estava certo. Lá dentro, os pertences de Cora Coralina, sua chácara, uma pequena mostra de arte e grandes fotografias sobre as enchentes que arrasaram a cidade em 2012.

Cora se chamava Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, um dos maiores nomes da literatura e se revelou para o Brasil com certa idade avançada. Naquela época era proibido as mulheres escrever ou publicar algum livro. Ela nasceu em 20 de agosto de 1889, ano da Proclamação da República, portanto há 135 anos, na cidade de Goiás. Era filha do desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães, nomeado por D. Pedro II, e de Jacinta Luísa do Couto Brandão.

A poetisa cursou apenas até a terceira série do curso primário, mas escreveu poemas e contos desde aos 14 anos. Nessa época, contrariando os costumes, publicou, em 1908, no jornal de poemas, “A Rosa” com algumas amigas. Em 1910 veio o conto “Tragédia na Roça”, lançado no “Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás”, usando o pseudônimo de Cora Coralina.

De acordo com “Artpoesia”, livreto do poeta baiano José da Boa Morte, o rei das feiras literárias baianas, que o apelidei de Zè da Travessia, em 1911, Cora fugiu com o advogado divorciado Cantídio Tolentino Bretas, indo morar em Jaboticabal, no interior de São Paulo. Como dá para se notar, era uma mulher evoluída e determinada para seu tempo.

Em 1922 foi convidada para participar da Semana de Arte Moderna, mas foi impedida pelo marido. Depois da morte do esposo, em 1934, foi doceira para sustentar os quatro filhos. Embora continuasse escrevendo, viveu por muito tempo da sua produção caseira. Se dizia mais doceira que escritora. Em 1934 chegou a trabalhar também como vendedora de livros. Em 1936 muda-se para Andradina, onde começa a escrever para o jornal da cidade.

Em 1956 voltou para sua cidade natal onde, em 1959, aos 70 anos, decidiu aprender datilografia para preparar seus poemas e entrega-los aos editores. Em 1956, com 75 anos, Cora conseguiu realizar o seu sonho de publicar o primeiro livro “O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais”. Em 1970, tomou posse da cadeira número 5 da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. O interesse do grande público pela poetisa se deveu aos elogios do poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1980.

Em Goiás Velha ainda visitamos o Instituto Biapo, um casarão que se tornou numa galeria de artes e uma espécie de museu sobre a história da cidade. O Instituto também foi vítima das enxurradas de 2012. Lá estava sendo exposta a obra do artista, galerista e arquiteto Fernando Madeira, cuja obra “Mudança” me fez refletir sobre vários pontos.

Como já era tarde e a fome bateu, fomos almoçar no pequeno mercado popular de Goiás, bem arrumado e aconchegante. Com uma comidinha bem caseira, tivemos o privilégio de receber as visitas das aratacas vindas das serras em torno da cidade. Achei que fossem papagaios, mas meu filho Caio, que morou um bom tempo no Amazonas, me corrigiu.

Claro que estava também acompanhado da minha esposa Vandilza Silva Gonçalves, sempre não perdendo um lance nas fotos do seu celular. Pegamos estrada de volta para Anápolis, numa viagem encantadora, na base do bate e volta, para não gastar muita grana, coisa escassa na nossa praça.