(Chico Ribeiro Neto)

O relógio de parede da casa de vovô Chico em Ipiaú, Bahia. O tempo mora ali e quem toma conta é o passarinho.

O RELÓGIO DE “TRISTEZA”

O melhor goleiro da turma da Rua Gabriel Soares, em Salvador, era “Tristeza”. Voava nos paralelepípedos durante os “babas”, se ralava todo mas a bola não entrava. O apelido vem do fato dele nunca sorrir.

“Tristeza” tinha um relógio de pulso que só vivia quebrando. Levava ao relojoeiro e uma semana depois o bicho parava novamente de funcionar. Um dia, depois de umas quatro idas ao relojoeiro e do bicho parar mais uma vez, “Tristeza” botou o relógio em cima do meio-fio, pegou um paralelepípedo, ergueu-o no alto, gritou “agora você não vai mais aborrecer ninguém” e jogou-o com toda força sobre o relógio quebrão.

DESPONGAR DO BONDE

Ainda peguei o bonde em Salvador. Tinha o bonde aberto e o bonde fechado. No aberto era mais fácil viajar sem pagar, porque a gente fugia do cobrador andando pelos estribos.

Eu, com uns 11 anos, e meu irmão Cleomar, com uns 13, íamos para o Cine Pax, na Baixa dos Sapateiros, que passava dois filmes de cobói. A gente pegava um bonde, saltava na Praça da Sé e descia uma ladeira vizinha à Igreja de São Francisco, que ia dar no Pax.

Era um bonde aberto. Cleomar propôs que a gente despongasse (saltar do bonde ainda em movimento)  antes do bonde fazer a curva na Praça da Sé. Eu não sabia despongar. Tem que  ter uma arte pra isso: tem que pular do bonde com o corpo inclinado para trás porque senão você cai pra frente. Pulei reto, que nem uma vara em pé, todo duro. Não deu outra: saí “catando ficha” e fui me estabacar numa velhinha, derrubando-a. Ela gritou “socorro” e só ouvi o grito de Cleomar “corre, Chico” e me piquei ainda ouvindo os xingamentos da velhinha que me freou.

DO ATO DE ESCREVER

“Remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas esperanças mais descabidas…no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto”. (Do escritor Caio Fernando Abreu).

BALCÃO DE UMA VENDA

O escritor José J. Veiga, em seu excelente livro “A Hora dos Ruminantes”, descreve na página 19 o balcão de uma venda na pequena cidade de Manarairema: “O chão precisava de vassoura, o balcão precisava de uma limpeza com pano molhado para tirar aquelas argolas do fundo de copo de cachaça, os derramados de açúcar, a gordura salgada dos pesos de carne seca, os farelos de rapadura e farinha”.

O TRATOR DO NATAL

Nunca esqueço do trator que ganhei do meu pai Waldemar quando tinha uns quatro anos, em Ipiaú. O trator soltava fagulhas enquanto andava e fiz sucesso no passeio da Rua 2 de Julho. Todo menino queria pegar no brinquedo encantador.

Natal dorme na lembrança e sempre acorda quando dezembro começa. O pisca-pisca da fachada do Shopping Barra só me lembra o trator, e dá vontade de chorar.

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